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"O escutador" faz instigante passeio literário pela ‘cidade dos escritores’

História do livro de um escritor envolvido em espiral de amor e mistério na BH dos anos 1950 é narrada por Carlos Marcelo em lançamento da Impressões de Minas

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Houve um tempo em que se ouviam escritores enquanto eles produziam suas histórias em série. As editoras contratavam um profissional, conhecido como escutador, que tinha a tarefa de apontar incongruências e, caso acontecesse algum imprevisto com o autor, dar continuidade e até mesmo finalizar narrativas que vendiam milhões de exemplares.


No fim dos anos 1950, uma editora brasileira contratou um jovem escutador chamado Ademir Lins para acompanhar o trabalho do escritor Aurélio Diniz. Era a época dos livros de bolso e dos folhetins, das coleções de mistérios, faroeste e ficção científica, também publicados em capítulos em jornais.

Mas o jovem contratado era ambicioso. Vindo do Norte para a chamada cidade dos escritores – seria Belo Horizonte? –, não queria ser apenas escutador, tinha a pretensão de ser um dos autores da Editora Montanhesa. E, em seu trabalho, conheceu gente renomada, como o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade.

Leitor voraz, Ademir, entretanto, apropriou-se de ideias e personagens de diversas obras e escreveu um intrigante e inusitado livro chamado “O escutador”, depois de uma paixão e um crime.


“O escutador” teve edição única em 1958 pela Montanhesa, com tiragem de mil exemplares, e fez muito sucesso. Mas nunca recebeu uma segunda edição. Tornou-se maldito por duas razões: foi rejeitado pela própria Montanhesa por causa dessa apropriação de narrativas de outras obras e ainda acusado injustamente por “um grupo de senhoras” por “afronta moral à tradição da família”. Por isso, teve uma centena de exemplares queimados, por ordem judicial, em plena Praça Sete, no coração de Belo Horizonte.


“Esta é a breve e desafortunada história do mais jovem escutador que a Montanhesa possuiu em seu quadro de profissionais das palavras”, comentou a editora Virgínia Lemos, em uma das notas incluídas à época do lançamento, em dezembro de 1958, com o subtítulo “As histórias de Ademir Lins”.


“Graças ao trabalho anônimo dessas figuras silenciosas, ocultas pela cláusula de confidencialidade em seus contratos, as expectativas de leitores e os ganhos das editoras não se frustraram até o presente momento”, contou Virgínia também após narrar em detalhes como era o trabalho de um escutador contratado pela sua editora.

Livros de autores brasileiros citados pelo ‘escutador’ Ademir Lins ao longo da narrativa ambientada nos anos 1950 na "cidade dos escritores"
Livros de autores brasileiros citados pelo ‘escutador’ Ademir Lins ao longo da narrativa ambientada nos anos 1950 na "cidade dos escritores" Reprodução


Resgate

Toda essa curiosa história descrita na página anterior é narrada pelo escritor e jornalista Carlos Marcelo, que lança “O escutador” pela editora Impressões de Minas. O lançamento será neste sábado (22/3), na Livraria Jenipapo, em Belo Horizonte. No dia 1º/4, ele conversa sobre a obra no projeto Sempre um Papo, na Biblioteca Pública Estadual.


“Foi muito estimulante unir pesquisa e ficção para descobrir uma história que me permitiu mergulhar em uma época única do Brasil, e da literatura brasileira, no século 20. De certa forma, tentei escutar o que Ademir Lins tem a dizer aos leitores do nosso século”, comenta Carlos Marcelo, jornalista do Estado de Minas e autor de livros como a biografia “Renato Russo – O filho da revolução (2009)” e os romances “Presos no paraíso” (2017) e “Os planos” (2021).


Referências


A metalinguagem, um livro dentro dele mesmo, é o grande atrativo de “O escutador”, acompanhada de muitas referências literárias que fazem um importante resgate de obras e autores que estão sumidos das livrarias e encostados nas bibliotecas. “O escutador” traz de volta aos antigos leitores e apresenta aos novos obras de diversos cânones literários mineiros, como Aníbal Machado, Cyro dos Anjos, Eduardo Frieiro, Mário Palmério, Murilo Rubião, Roberto Drummond e Otto Lara Resende – de quem é a epígrafe do livro: “Se eu não escrevesse já tinha desaparecido”.


E não deixa de agradar aos leitores com citações de livros de gigantes da literatura brasileira, cujas obras sempre ganham novas edições, como Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Pedro Nava, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles, Érico Verissimo, Campos de Carvalho, Lima Barreto e Guimarães Rosa. E ainda clássicos estrangeiros, como Eça de Queirós e Honoré de Balzac.


Esses autores e suas criações orbitam o mundo insólito de Ademir Lins na cidade dos escritores. Enquanto trabalha como escutador de Aurélio Diniz – autor, sob o pseudônimo Allan Mars, da série de ficção científica “Criaturas do sol vermelho” –, Ademir vai sonhando se tornar ele também um grande nome da literatura brasileira.


Durante um acesso de tosse diante da editora Virgínia Lemos e questionado se é tísico [tuberculoso], Ademir desconversa e diz que apenas estranhara o cheiro de tinta. Enquanto isso, ele devaneia sobre sua pretensão literária e confessa a si mesmo: “Omiti a tibieza crônica dos brônquios, não queria ser confundido com algum poeta passadista de pulmões débeis a expelir sofismas em versos românticos”.


Ademir, com certeza, pensou em célebres autores brasileiros que sofreram com a tuberculose, como Manuel Bandeira, Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Castro Alves e Cruz e Sousa.

Razão

Ademir Lins esbarra em outro empecilho para se firmar como escritor. Ao apresentar seu projeto literário ao escritor e ensaísta Eduardo Frieiro (1889-1982), já na época uma catedrática referência da escrita e um eloquente polemista, ele ouve o pensamento que o autor exprimiu em “A ilusão literária” (1941): “Teimar em ser escritor numa época em que as cousas literárias são tidas como nulas ou pouco menos que inexistentes é não ter bem conformada a razão”.


E é exatamente a perda da razão que vai ditar o destino do escutador Ademir Lins, entre desavenças sobre literatura e uma atração avassaladora por uma mulher, Estela, já comprometida. Essa paixão alucinada faz a editora Virgínia Lemos tomar uma decisão: “Depois de concluir, com o coração apertado, a leitura dos manuscritos de Ademir, outra ideia me veio à cabeça. A narrativa em tom crescente de desespero perceptível até mesmo na caligrafia progressivamente trêmula, pedia celeridade na edição. Decidi lançar ‘O escutador’ rapidamente, e com estardalhaço”. Decisão tomada, que fim levarão Ademir e “O escutador”?


Viaduto


Outra passagem interessante de “O escutador” e lastreada à realidade envolve um viaduto famoso por seus arcos – o de Santa Tereza para o leitor ou a leitora perspicaz. Ademir Lins, em sua paixão por Estela, chega a escalar os arcos do viaduto.


É uma referência ao arriscadíssimo “alpinismo urbano” de Carlos Drummond de Andrade, praticado nos anos 1920 e relatado no livro “O desatino da rapaziada”, de Humberto Werneck. “Uma noite, quando se equilibrava no ponto mais alto do arco do viaduto, Drummond recebeu voz de prisão e desafiou o guarda a ir prendê-lo nas alturas. O homem julgou mais prudente relaxar a prisão”, conta Werneck.


Essa proeza do poeta é repetida no livro “O encontro marcado”, de Fernando Sabino pelos quatro amigos, apelidados “cavaleiros do Apocalipse” – o próprio Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino. O clássico de Sabino é de 1956, portanto, dois anos antes de “O escutador”.


A aventura é crucial em “O escutador” para definir o destino de Ademir Lins, um homem que escutava demais outros autores, a editora e a si mesmo, pela razão ou pelo delírio. E intrigar o leitor. Afinal, diz Ademir em certo momento, com clara inspiração em Eduardo Frieiro: “Não raras vezes, as ficções se tornam realidade”.

“Surpreendente livro de um escritor perdido no tempo, ‘O escutador’ é uma preciosidade. Ao revelar a trajetória desventurada do jovem escutador Ademir Lins, Carlos Marcelo mostra ainda os interstícios de uma época decisiva da história de nosso país e ilumina, estrategicamente, aspectos incógnitos da literatura brasileira e de alguns de seus grandes nomes do século 20. Conta com uma edição caprichada que inclui fac-símiles (capas e manuscritos) e notas explicativas dos responsáveis pela organização e edição da obra. Por isso, ‘O escutador’ é um verdadeiro achado literário.”

Maria Esther Maciel, escritora, na apresentação de “O escutador”


Entrevista / Carlos Marcelo

“Minas Gerais é o mais literário dos estados”

Como foi o processo de descoberta de “O escutador”?


Ocorreu por meio da descoberta de uma história que se mostrou fascinante desde o início por oferecer, como não havia experimentado em meus livros anteriores, a possibilidade de unir o rigor da pesquisa com a liberdade da ficção.

Estabelecidos esses dois pilares, surgiram outras descobertas igualmente motivadoras, como as leituras de publicações – livros de bolso, jornais, revistas – dos anos 1950 e livros da primeira metade do século 20.

No final do processo, a parceria com Elza Silveira e Wallison Gontijo, da editora Impressões de Minas, foi fundamental por viabilizar a expansão da narrativa para a própria edição do livro. Capa, sobrecapa, posfácio e notas de rodapé também contam a história de “O escutador”.


A principal virtude de “O escutador” é o passeio literário que proporciona ao leitor. Qual a importância do resgate de cânones literários mineiros que não ganharam novas edições, como Otto Lara Resende, Cyro dos Anjos, Aníbal Machado, Eduardo Frieiro, Pedro Nava, Murilo Rubião...para a literatura brasileira?


Não tenho nenhuma dúvida de que Minas Gerais é o mais literário dos estados brasileiros. São tantos nomes de expressão, na prosa e na poesia, que seria impossível nomear todos. A Belo Horizonte das páginas de “O escutador” é a dos anos 1950 e aparece pela visão de um jovem recém-chegado e maravilhado pela atividade intelectual da capital a ponto de se referir a BH, em seu relato, como a “cidade dos escritores”.

É pelos olhos dele que fazemos o “passeio literário”. Ademir Lins, este jovem escutador do título do livro e que sonha ser escritor, carrega uma idolatria pelos autores brasileiros, os mineiros em especial, que leu em sua formação e tem a oportunidade, por causa do trabalho na Editora Montanhesa, de conviver com autores como Carlos Drummond de Andrade e Eduardo Frieiro.

Este último, por sinal, pode ser considerado um dos personagens de “O escutador”, porque chega a dividir mesa de bar e alertar Ademir para os percalços da carreira literária. Resgatar a verve e os vaticínios de Frieiro, autor de análises ácidas – e atualíssimas – como as que reuniu no início dos anos 1940 em “A ilusão literária”, foi uma motivação adicional para o livro.


Ao longo da leitura, somos informados que “O escutador”, o relato original de Ademir Lins publicado pela editora Montanhesa em 1958, se tornou duplamente maldito por duas razões. A primeira pela apropriação de ideias e personagens de outros escritores. A segunda pela desprezível cruzada moralista contra a obra. Existe uma linha tênue separando influência e plágio?


Certamente a linha é tênue, mas o que tento mostrar na narrativa é que o relato de Ademir Lins se tornou um livro maldito não apenas pela apropriação de trechos de obras de outros escritores e pela cruzada moralista da qual foi vítima, mas pelo próprio ‘apagamento’ da profissional do mercado editorial que decidiu pela publicação: a chefe do escutador, Virgínia Lemos, da Editora Montanhesa.

No livro, eu mostro o pioneirismo de Virgínia no comando de uma editora, fato inexistente na realidade brasileira daquela época. As posições mais importantes das casas editoriais concentradas no Rio e em São Paulo até os anos 1960 eram quase que exclusivamente reservadas aos homens: José Olympio, Ênio Silveira e tantos outros editores. O que, felizmente, tem mudado nas últimas décadas.


Ao assimilar trechos e personagens de obras literárias que leu, Ademir Lins se torna personagem de si mesmo?


De certa forma, sim. Mas prefiro enxergar Ademir, por absorver as palavras de outros escritores e tomá-las para a formação da própria identidade, como um de nós. Um leitor capaz de escutar vozes que vêm de outros livros, outros tempos, outros lugares, outras visões de mundo, outras vidas.

Trecho do livro


“Ao se despedir, já no passeio, Virgínia Lemos repassou as atribuições do trabalho e se eu estava de acordo com todas elas. Com a minha concordância, desferiu um tapa vigoroso em meu ombro.
Também quis saber a minha idade. Pareceu surpresa com a resposta.


‘Tão novo e tão cheio de esperanças...’, comentou. Perguntou, então, de onde vinha o desejo de viver da literatura. Disse que os livros haviam oferecido uma chance de mudar o meu destino, traçado pela condição de ter nascido no meio de tanta gente sofrida por ser iletrada. Que o contínuo assombro trazido pelas leituras acalmava as tormentas de minha alma. Que trazia dentro de mim uma vontade explosiva, incontrolável de escrever... Falava tão rápido que Virgínia me interrompeu.


‘Menos sofreguidão, Ademir! Meu pai sempre dizia que a vida conserva resistências que desconhecemos. Entra com cautela na civilização, senão ele te arrebenta.’


Não esqueceria as palavras de Virgílio Lemos, repetidas pela filha do editor. Mesmo sabendo que não pertenciam a ele, mas a Eça [de Queirós].”


“O escutador”
De Carlos Marcelo
• Editora Impressões de Minas
• 216 páginas
• R$ 80
• Lançamento: Hoje (22/3), das 10h às 12h, na Livraria Jenipapo (Rua Fernandes Tourinho, 241, Savassi, em Belo Horizonte).
• Sempre um Papo com o autor no dia 1º/4, às 19h30, na Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais (Praça da Liberdade, 21).

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