A insônia que devora e inspira Elizabeth Hardwick
Escritora uniu as próprias memórias da vida em Nova York no século 20 com observações de personalidades como Bille Holiday em um grande livro: 'Noites insones'
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Logo na primeira página de “Noites insones”, da estadunidense Elizabeth Hardwick (1916-2017), temos um guia da memória como “problema” para a escrita: “Se ao menos fosse possível saber o que lembrar ou fingir lembrar. Tomar uma decisão, para que aquilo que se deseja das coisas perdidas se apresente. Pegá-las como uma lata da prateleira.”
E assim a narradora prossegue, como quem vai escolhendo o que levar para casa numa visita ao supermercado. Lembranças, uma após a outra, são amontoadas no “carrinho”. Nesse movimento, parece dispensar a rigidez da cronologia da “lista de compras”, que só faz sentido no concreto da vida, e toma nas mãos apenas o que é desejável recordar. E o desejável nem sempre é a melhor decisão ou a mais cômoda. O desejo trai. Mas o que fazer? É assim que lembramos.
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“Noites insones”, o título, reforça a ideia de que a estrutura do livro foi pensada para acompanhar o seu conteúdo. A insônia é uma fera disforme, que joga para o alto qualquer hierarquia. Assim, é compreensível que, na época do seu lançamento, em 1979, “Noites insones” tenha sido classificado como ficção. Mas o gênero soava impreciso, se pensarmos que autora e narradora compartilhavam os mesmos nomes, e a narrativa em nenhum momento parece tensionar qualquer diferença entre elas. E ambas compartilhavam ainda as mesmas questões biográficas.
O problema de gênero ultrapassa aqui também o mero jogo entre ficção e não ficção. Em alguns momentos, o livro parece uma coleção de cartas para um destinatário perdido ou mesmo um ensaio. E suas primeiras linhas cravam a certeza, a necessidade de fixar um marco zero, típica de uma entrada de diário: “É junho. Isto é o que decidi fazer da vida neste exato momento. Farei este trabalho de memória transformada e até mesmo distorcida e continuarei levando esta vida, a que levo hoje.” A escrita da insônia é mesmo uma fera disforme.
Após mais de duas décadas, “Noites insones” ganha nova tradução no Brasil, a cargo de Gisele Eberspacher, pela Editora Instante. Assim, Hardwick divide agora espaço com dois autores estrangeiros que ajudaram a popularizar, entre os brasileiros, o gosto por um gênero que é, por si só, uma fera disforme, a autoficção. A saber, os franceses Édouard Louis e a Prêmio Nobel Annie Ernaux. Mas é importante traçar algumas diferenças.
Hardwick não parece ter o desejo de ser vista e esmiuçada pelos leitores ou de se “reconstruída” pela literatura, como Louis. Apesar da primeira pessoa, Hardwick teima em não querer ser o assunto. Também não tem a preocupação do olhar socializante de Ernoux. Na estadunidense, existe uma compaixão com as personagens de vida errática. Entre elas, Billie Holiday.
A autora viveu um casamento de fachada com um homem gay, que se dividia entre o trabalho e a obsessão de fã pela cantora. É para Billie — já envolta na decadência que, paradoxalmente, fez dela a estrela maior — que são voltados alguns dos grandes momentos de “Noites insones”, como no trecho:
“Olhares apaixonados dizendo: Linda estrela negra, você pode me amar? A resposta: Não (...) De alguma forma, ela havia recuperado da escuridão o milagre do estilo autêntico. Era isso. Somente um tolo imaginava que era necessário amar um homem, amar alguém, amar a vida. Sua própria gente, aquela gente a seu redor, a temia. E talvez até mesmo ela muitas vezes se envergonhasse do peso do próprio espírito, que nunca cedeu ao alívio do sentimentalismo.”
“Noites insones” é, sem dúvida, uma das obras literárias estadunidenses mais importantes da segunda metade do século passado, mas Hardwick já seria um nome incontornável, mesmo que o livro jamais tivesse sido escrito. Foi uma das grandes críticas literárias e ensaístas da sua época e ajudou a fundar a New York Review of Books. Entre seus trabalhos mais importantes, “Seduction and betrayal”, estudo sobre a relação tumultuada entre mulheres e literatura e, claro, sobre os homens que se infiltram nessa equação.
Na vida pessoal, viveu um casamento de idas e vindas, e de várias traições, com o poeta Robert Lowell. Mais uma vez, sedução e traição. Sobre a relação, Hardwick dedica em “Noites insones” alguns parágrafos, no entanto deixa de lado qualquer veredito moral. Prefere o olhar investigativo do ensaio sobre o momento em que “deixou de ser um nós”:
“Marido-mulher: nenhum movimento novo a ser descoberto nessa forte tradição clássica. As discussões são como o ranger de lâminas enferrujadas, o velho motor e suas incômodas batidas. O cachorro rosna. Ele também conhece suas falas. Será que o assunto sou eu?”
Talvez a passagem de “Noites insones” que melhor tensione a necessidade de um escritor em contar uma vida, a sua vida, antes que as memórias entrem em autocombustão, esteja na passagem dedicada à mãe de Hardwick: “Nunca conheci uma pessoa tão indiferente ao passado. Era como se não soubesse quem era”. Talvez a filha não escreva para saber quem é — ela parece já saber ou não se importar mais com isso —, e sim para que algo não se perca, para que algo seja passado adiante, afinal “Bem, é uma vida. E alguns sempre ficam por perto, como sempre há alguém à noite encostado no monumento do parque.”

Trecho
(De “Noites insones”, de Elizabeth Hardwick)
“Midtown – olhe em direção ao leste, para coisas bonitas e interessantes à venda. Volte os olhos para o oeste – um emaranhado de bêbados, atores, jogadores, garçons, pessoas que dormiam o dia todo com roupas íntimas encardidas e exalavam um odor nada fresco quando vestiam ternos e chapéus marrons de aba fina para as atividades incipientes da noite. Naquela época, essas pessoas de poucas conexões transmitiam uma atitude que às vezes era densa e tola, mas passiva; os rostos nas ruas ainda não tinham congelado em uma expressão de perigo e ataque, de malícia e destemor, o brilho cristalino da morte à luz do dia.”

“Noites insones”
• De Elizabeth Hardwick
• Tradução de Gisele Eberspacher
• Editora Instante
• 144 páginas
• R$ 69,90