PRIMEIRA LEITURA

Ouro Preto pelo olhar de Daniella Zupo

Crônica sobre a cidade histórica está em 'O dia em que encontrei Bob Dylan numa livraria de Estocolmo', novo livro da escritora, a ser lançado no dia 5 de abril

Publicidade

Daniella Zupo

“pela janela, Ouro Preto”

Algumas cidades habitam nossa memória.


Não como cartões postais ou viagens que marcaram tempos ou histórias de nossa vida, mas como paisagens interiores. Ouro Preto habita algum lugar dentro de mim. Desde a primeira visita, ainda criança, numa excursão de escola, da qual ficou a minha primeira experiência de adentrar o mistério da fé. Impossível esquecer o súbito silêncio de um ar gelado quando se entra em uma igreja pela primeira vez. A fé que invade os sentidos. Mais tarde serão talvez apenas fachadas, altares, símbolos, arquiteturas visíveis ao nosso olhar de tela, mas no corpo de uma criança a alma ainda grita sua existência.


De lá pra cá, foram inúmeras visitas, durantes festivais de inverno, passeios com amigos turistas e até mesmo um insólito passeio durante a pandemia dos dias parados, quando caminhei por uma Ouro Preto de igrejas fechadas e hotéis abertos. Quase uma armadilha para turistas: onde comer, o que visitar, onde rezar por um mundo em colapso? Um domingo caminhando dentro de um destes quadros em que duas ou três pessoas atravessam uma cidade-deserto. Mesmo quando tomada por outras gentes, festivais, por outras músicas e movimentos que criaram uma espécie de identidade paralela – de cidade das artes- sua aura de mística tristeza se mantém inviolável.


Ouro Preto é assim. É triste e bonita como uma velha senhora que espera a última neblina da noite derradeira. Caminhar por suas ladeiras durante a noite é caminhar por outro tempo, como quem atravessa um portal na névoa. Há algo de metafísico na noite de Ouro Preto. Talvez por isso seja uma cidade sem meios termos. Ou se gosta ou não se gosta. Há quem só sinta a melancolia de suas esquinas ou a tristeza de suas antigas senzalas e há quem aprecie o seu enigma.


Em Ouro Preto, anda-se com Deus em todo canto. Em suas igrejas, ladeiras, morros, minas, tapetes santos, porões, mirantes, pátios, em suas pedras, poemas, cantorias e por entre sua neblina.


E quando um sino toca, a qualquer hora, nos lembra da hora mágica no meio de tudo. Escutar os sinos de Ouro Preto como “quem abre os olhos e vê”. Estão todos lá: os inconfidentes, as musas, os escravos, os senhores e as benzedeiras. Chico Rei, Barbara Heliodora, Tomas Antonio Gonzaga, Joaquim José da Silva Xavier, Antonio Francisco Lisboa, Elizabeth Bishop, Carlos Scliar e tantos outros artistas que viveram ou frequentaram Ouro Preto, como Vinicius de Moraes que - reza a lenda - queria comprar uma casa por lá. E o ateliê de Carlos Bracher, ladeira poético de uma cidade sem tempo.


Como Dona Olimpia, a “primeira hippie do Brasil”, que desfilava pelas ruas da cidade contando historias que misturavam tempos, falando de uma nobreza perdida, de antigos amores, com suas roupas surradas e coloridas, seu chapéu florido e o indefectível cajado. “A viúva de Ouro Preto” que fala em frases cifradas. “Atrama de sua vida é feita de fantasmas que só se extinguirão no seu último dia.” (“Motivos de Ouro Preto”, Murilo Mendes).


Mas não é também a nossa vida feita de fantasmas até o momento em que a neblina transforme tudo em uma paisagem lírica, nebulosa e derradeira?


Talvez o único mistério seja haver quem pense no mistério.


Em Ouro Preto ele está por toda parte.


Tudo é arte, tudo é fé.

• O título “Pela janela, Ouro Preto” é uma referência ao poema de Elizabeth Bishop: “Under the Window: Ouro Preto”


Sobre a autora e o livro

Daniella Zupo é jornalista e escritora, diretora e roteirista da primeira websérie brasileira sobre o câncer de mama, o documentário “Amanhã Hoje é Ontem”. Também é co-criadora do podcast “As Perennials”, sobre envelhecimento feminino, e se dedica à carreira literária e ao jornalismo autoral por meio de sua newsletter e em seu próprio canal no Youtube - @daniellazupo. Lançamento da editora Miguilim, o livro “O dia em que encontrei Bob Dylan numa livraria de Estocolmo” é definido pela autora como um roadbook que faz a compilação de “relatos de viagens que cruzam continentes e sentimentos.”


No prefácio, o escritor João Anzanello Carrascoza destaca que “com singularidade e apuro literário, Daniella Zupo nos desloca, como a cidade de Kiruna, na Suécia, do lugar de leitores contemplativos ao de leitores que desfrutam, nas viagens contadas por ela, de momentos epifânicos gerados até pelo acaso. Suas observações nos movem e nos comovem para dentro de nós mesmos, este território que pisamos em silêncio ou no bojo de vivências que desenhamos na memória”, afirma o autor de livros como “Trilogia do adeus” e “Aquela água toda”. “Com este road book, Daniella nos faz sentir a experiência de viver com intensidade, alta voltagem poética e profunda compaixão por tudo que é humano, demasiadamente humano. Não nos oferece um mapa para chegarmos ao êxtase, mas nos prova que o êxtase se atinge ao caminhar”, ressalta Carrascoza.

"O dia em que encontrei Bob Dylan numa livraria de Estocolmo"
"O dia em que encontrei Bob Dylan numa livraria de Estocolmo" Reprodução

“O dia em que encontrei Bob Dylan numa livraria de Estocolmo”
• De Daniella Zupo
• Editora Miguilim
• 174 páginas
• R$ 79,00
• Lançamento no próximo sábado (5/4), às 11h, na Livraria da Rua (Rua Antônio de Albuquerque, 913, Funcionários, BH).
• Mais informações no site editoramiguilim.com.br

Tópicos relacionados:

cultura literatura pensar

Acesse sua conta

Se você já possui cadastro no Estado de Minas, informe e-mail/matrícula e senha. Se ainda não tem,

Informe seus dados para criar uma conta:

Digite seu e-mail da conta para enviarmos os passos para a recuperação de senha:

Faça a sua assinatura

Estado de Minas

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Aproveite o melhor do Estado de Minas: conteúdos exclusivos, colunistas renomados e muitos benefícios para você

Assine agora
overflay