Paulo Leminski, o abre-alas da poesia e da linguagem
Curadora da Flip, Ana Lima Cecílio conta a sua relação com a obra do poeta que será homenageado na festa literária de Paraty: 'Leminski é um norte'
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Especial para o EM
Quando a gente escolhe um homenageado para a Flip, o que conta é muito mais do que a qualidade da obra – e o Brasil é um manancial de autores de qualidade inquestionável, que estão aí quase em estado de natureza, prontinhos para serem descobertos.
Ano passado, ao homenagear João do Rio (1881-1921), a celebração da obra desse que é considerado o pai da crônica, esse gênero literário que abrasileirou o ensaio inglês e que fez com que literatura de melhor qualidade chegasse aos brasileiros nas décadas de ouro, veio junto com um movimento ainda mais interessante, que é o de entender todas as conversas que o João do Rio abria: a vida nas ruas, as histórias de gente miúda, o fascínio pelos salões, a construção de um Rio de Janeiro, e de um país, portanto, que olha para um futuro em que se pretende Paris, sem deixar de estar com os pés bem fincados num passado de miscigenação, mas também de violência.
A gente viu, assim, todos esses assuntos se derramarem nas mesas da Flip, mesmo quando se discutia a guerra na Palestina ou a inteligência artificial.
O homenageado é, mais que um nome, um norte, e pensar em nomes que deem essa direção é o que estava na minha pauta, como curadora. Pessoalmente, minha história com Leminski vai de longe. “La vie en close”, reunião de poemas organizados por Alice Ruiz publicado em 1991, dois anos depois de sua morte, chegou na minha casa, pelas mãos da minha mãe, no ano do lançamento.
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Hoje, esse mesmo livro é um trapo sujo que em que se notam à primeira vista: marcas circulares de xícaras de café, gotas de vinho e outras bebidas de origens insondáveis, cruzinhas tímidas de canetas que não ousaram marcar o poema, restos ancestrais de cinza de cigarro, orelhas dobradas, sujeiras inclassificáveis, digitais próprias e provavelmente alheias, lombada salva com um durex que já não segura mais a onda e uma quantidade incalculável de apertos no coração.
Cinco anos antes de sua morte, Leminski escreveu numa carta ao amigo Regis Bonvicino, um dos correspondentes mais assíduos – ainda que a concorrência fosse acirrada, já que, poeta isolado em Curitiba, manteve conversas com escritores, artistas e jornalistas de todo Brasil, que daria um tempo na bebida porque não queria morrer “como Fernando Pessoa, de cirrose hepática, aos 44 anos”. Leminski morreu exatamente assim, de cirrose hepática, aos 44. Quanto ao Pessoa, morreu de cirrose hepática aos 47 – erro do Leminski, que assim inaugurou o oráculo premonitório do erro de si mesmo.
Eu tinha, portanto, 13 anos quando esse livro chegou na minha casa, como chegaram “Rumo à Estação Finlândia”, a biografia da Olga Benário, “História da riqueza do homem”, “A insustentável leveza do ser” e os livros que simplesmente apareciam e roubavam minha mãe nos finais de semana.
Aos 13, eu vivia naquele limbo de pré-adolescente que já tinha gabaritado a coleção Vagalume, mas que ainda não dava conta de encarar, por exemplo, um Machado por conta própria. Uma das sortes de ter nascido na década de 1970 é que não deu tempo de ter a minha ingenuidade violada pelos ditos romances Young Adult, e fui obrigada a encarar talvez mais cedo do que o recomendado os livros sérios. Aí vieram caoticamente Camus, Salinger, Dalton, Leminski.
O Leminski foi um susto, primeiro porque eu não fazia ideia de que poesia era aquilo. Entender que língua e linguagem são uma diversão, que as palavras têm caráter, que frases criam expectativas, que quebrar o que se espera de uma frase é fazer filosofia, que rima é construção de sentido, que ritmo faz ironia, que tem ato falho, trocadilho, limerique, haicai, foi descobrir que o que a gente tem primeiro na vida, que é a linguagem, é a fonte máxima da inteligência, da invenção e da diversão. E esse presente foi o Leminski que me deu.
Uma amiga do tempo da escola, quando saiu o anúncio do homenageado, me escreveu dizendo que se lembra de mim na hora do recreio no pátio do Colégio Pio XII com “aquele livro amarelo do Leminski” debaixo do braço. Amigos da faculdade lembram que eu queria enfiar uns versos do Leminski de epígrafe nos trabalhos que eu fazia deslumbrada com a Filosofia, fosse Anaxágoras ou Leibniz.
Ainda na faculdade de Filosofia, eu me apaixonei perdidamente por Schlegel, quando li a definição do que era um chiste: “o surpreendente reencontro de dois pensamentos amigos que não se viam há muito tempo” — e eu só conseguia pensar que o romantismo alemão explicava perfeitamente meu encanto pelo Leminski. Meu amigo principal, com quem morei por cinco anos, tem guardado com ele um longo conto do Leminski, “Céu embaixo”, que escrevi à mão e dei de presente a ele quando deixamos de morar juntos, numa época que a gente achava sarcástico ser meio deprimido.
Durante muito tempo eu soube de cor as cinco primeiras páginas de “Catatau”, que repito na cabeça feito um mantra quando tenho insônia ou só quando preciso me acalmar. Quando meu filho era bebê, inventei uma musiquinha com o poema “A lua no cinema” pra fazê-lo dormir. Foram infinitas vezes que o Leminski me salvou, como oráculo, como xaveco, como revelação, como risada, como deleite, troça, vingança, esperteza, dor de cotovelo, brilho, humor. Se eu gosto tanto de Palavra, em grande parte foi o Leminski que me ensinou.
Depois vieram o Bandeira e o Drummond, o Maiakóvski, o João Cabral, o Pound, o Vallejo, a Pizarnik, a Ana C., a Hilda, o Lorca, o Wally, o Torquato, o cummings, o Bananére, o Rimbaud, e a turma toda — poesia é gostoso demais, gente, acreditem.
Mas o Leminski foi um abre-alas, não só da poesia, não só da literatura, mas da linguagem. Hoje ele é um pouco como um amigo antigo, com quem ri e aprendi e descobri as coisas mais banais, mas que quando a gente se reencontra, décadas depois, a conversa continua, nós dois mais velhos e melhorados, porque sabemos olhar para o que que ainda importa, e dar risada do que a gente gosta.
Por isso eu estou tão emocionada e feliz com essa homenagem. Porque depois que a gente divulgou, eu vi muita gente comemorando, dizendo coisas muito parecidas com as que eu disse aqui, que o Leminski abre uma possibilidade de poesia, e que isso é tão bonito, e que bonito que isso está na Flip. Hoje, escrevo esse texto meio comovido demais só porque estou um pouco a menina emocionada que levava aquele livro amarelo na mochila para o Colégio Pio XII. E de meninas emocionadas, vocês sabem, o inferno está cheio.
•A versão original do texto acima foi publicada na newsletter semanal A lábia, com dicas de livros, na plataforma Substack
Razão de ser
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
(Paulo Leminski, 1944-1989)