Leia poemas do livro de Angela Quinto
Com sete seções, 'deslinha' oferece visão caleidoscópica dos trabalhos da autora e performer paulistana e tem lançamento neste sábado (12/4) em BH
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“deslinha”
Angela Quinto
“ninguém tão suave”
deslizo na prata
flamejante
boca de lobo
meu corpo lata
sem asas pálidas
crepusculuz
na escotilha
do submundomarino
para dançar
milagres crimes
telepatias
ocasotanques
giremos querido
no arame
do circoardente
buraco do botão
casa cigana
afunda
para o alto
“o que nos foi dado saber”
nós a chamávamos de nega
era tudo o que nos foi dado saber dela
exilada de si começou
a trabalhar na casa do avô
mulher cafuza, miúda, de ossos
salientes, vivia a mascar fumo
carregava saberes na ponta dos dedos:
arear panela, quarar roupa, desatar nós
seus pés tinham a força da terra e
a dança dos bichos do mato
mistério maior era vê-la de cócoras
a olhar longe, com olhos de quem não vê
diziam que era amante do avô
que de noite se bandiava pro quarto dele
tinha mesmo intimidades é com o tempo
vivia sem pressa a pitar seu cigarro de palha
conhecedora dos ciclos, arava a terra
plantava, lidava com o fogo, andava na chuva
parecia viver num dia de domingo
em comunhão com seu corpo seu chão
mora até hoje em minha lucidez
convida-me a brincar e gargalhar como menina
desarruma a ordem dos meus dias
sussurra indecências noturnas
me encontra para eu não me perder
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“açoite”
descuido na janela aberta
aboios surdos nos sulcos da pele
tentáculos de mar sem cais
embalam vozes mortas pragas mornas
infâncias roucas
bagos de nuvens petrificam o
dormir fingido da cabeça tonta
tentada a trincar a bacia do céu
pássaros em pleno voo
entre as pernas
acesos
por um único fio de cabelo
“arrebol”
você abre tantos espaços em mim
como não te amar?
manadas de auroques atravessam meus sonhos
enquanto você afia ossos
veias duras de roer rasgam as noites do sem-fim
e você sobrevoa as estações
a luz de uma estrela cadente bate nas horas espelhadas
onde você silencia
tempestades lunares guardam o pó de chumbo
que você coloca na balança
libélulas se afogam no verde flamejante das ruínas
e você desenha a flor das minhas costelas
(ou) é você que me ama
por abrir tantos espaços em mim?
“cidade vermelha”
não há engenharia que
enterre rios azuis
não há história em
muros verdes
não há sociologia para
lamber feridas roxas
não há geografia na
língua açúcar das meninas
não há arquitetura que
esconda calçadas negras
sob nossos pés um
manso mar de sangue
“seo preá”
para saulo moreira
você pembeia
eu risco o fósforo
você derrama o mel
eu fio contas
eu estico o papel
você contorna o corpo
eu cozinho feijão
você insiste na panela
você carrega o balaio
eu pego em você
você me espera
eu te alcanço
eu canto
você chora
eu bambeio
você me oferece a mão
seo preá é quem canta
o vento sopra faz da noite dia e a sombra faz do dia noite
estamos sob outro orun
“quer”
quero ser
o guiso da cobra
que mamou nas suas tetas
quero ser
o teto desabando
pra beber o leite do céu
quero ser
o voo rasante dos
sussurros em dialeto
quero ser
a fera de pelúcia
nos picadeiros frenéticos
quero ser
os fundilhos bufados
da sua cadeira de balanço
quero ser
o mijo da pulga
na paciência dos elefantes
quero ser
a lambida falsa do destino
da princesa que não ri
quero ser
a mordida nos dedos
indecentes dos orecchiette
quero ser
sua presa que sem pressa
deseja perder-se
quero ser
a foda que
baba em nossas bucetas
quero ser
sua amante vó angela
só pra te fazer rir uma única vez
Sobre a autora e o livro
Angela Quinto nasceu em 1955 em São Paulo e tem trabalhos que transitam entre a literatura, artes visuais e performance. É autora de livros como “A linha entre o chumbo e a flor” (2015), “Fosse porque Fosse” (2022), “Livru pru kupi’i cumê” (2022), “Tocandira Trancelim” (2023), “E os cupins não foram convidados para a arca” (2024) e coautora de “Ebolição” (2023). Sobre o mais recente lançamento, “deslinha”, a autora destaca que as sete seções do livro oferecem “visão caleidoscópica” de poemas escritos entre 2017 e 2024.
“O trabalho linguístico que me dá prazer tecer está assentado nas fronteiras que a língua brasileira traça com as artes verbais dos povos originários e afrodiaspóricos, com a linguagem da rua, as línguas gerais. Um português dentro de plurilínguas, que desafia as tendências de centralização das forças colonizadoras”, destaca Angela Quinto. Ela chama atenção também para detalhes da edição: “Há um convite, aos leitores, desde a capa ao início de cada seção para que a passagem seja feita por frestas. Cortes feitos literalmente por facas gráficas, que possibilitam um gesto concreto de abertura para outros campos, novas realidades.”

“deslinha”
• De Angela Quinto
• Impressões de Minas
• 112 páginas.
• R$ 65
• Lançamento neste sábado (12/4), das 11h às 15h, com performance da autora e outros artistas no Memória Gráfica Mercado Novo (Avenida Olegário Maciel, 742, – loja 3166, corredor J, 3º andar, Belo Horizonte). No mesmo local e horário, haverá lançamento de “o teto é baixo e me espreme se não agacho”, do mineiro Marcelo BF.