PENSAR

O último gigante dos livros

O escritor peruano Mario Vargas Llosa, que morreu no dia 13 de abril, revolucionou a literatura latino-americana com obras essenciais

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‘‘Em que momento o Peru se fodeu?’’

"Dedico a você meu silêncio” (“Le dedico mi silencio”) é o título do último livro de Mario Vargas Llosa, que morreu no último domingo, 16 dias depois de completar 89 anos. Embora o tema da obra, lançada em 2023 (editora Alfaguara), seja a história de um estudioso da música tradicional peruana, o nome pode ser interpretado também como uma epígrafe, uma epifania ou até mesmo um epitáfio, como uma ironia de Llosa para consumar sua consagrada trajetória literária.


Afinal, o último gigante do “boom literário latino-americano” fez silêncio para sempre e agora deixa sua obra para falar por ele. E talvez tenha pensado em dedicar seu título derradeiro à América Latina, aos leitores e, quem sabe, aos seus próprios críticos, como quem não precisa dar satisfação diante da relevância do seu legado literário e humanista.


Depois de 21 romances, duas dezenas de ensaios e incontáveis outros textos e palestras em mais de 60 anos de carreira, Vargas Llosa, como diria Guimarães Rosa, se encantou e se juntou ao panteão de outros gigantes imortais, como Gabriel García Márquez, Julio Cortázar e Carlos Fuentes, autores que revolucionaram e deram uma identidade anticolonialista à América Latina com suas narrativas que oscilam entre a denúncia de injustiças sociais e o realismo mágico.

A prosa de llosa
A prosa de llosa afp

“Inventamos as ficções para poder viver”

“A exemplo de escrever, ler é protestar contra as insuficiências da vida. Quem procura na ficção o que não tem, diz, sem necessidade de dizer, e nem de saber, que a vida tal como é não nos basta para apagar a nossa sede de absoluto, fundamento da condição humana, e que deveria ser melhor. Inventamos as ficções para podermos viver de, alguma maneira, as muitas vidas que queríamos ter, quando apenas dispomos de uma só”.


Esse trecho pertence ao célebre discurso do escritor peruano Mario Vargas Llosa quando recebeu o Nobel de Literatura em Estocolmo, na Suécia, em dezembro de 2010, mostra a importância da literatura para o processo civilizatório. Ele disse também: “Graças à literatura, às consciências que ela formou, aos desejos e anseios que inspirou, ao desencanto do real com que retornamos da viagem a uma bela fantasia, a civilização é agora menos cruel do que quando os contadores de contos começaram a humanizar a vida com suas fábulas. Seríamos piores do que somos sem os bons livros que lemos, mais conformistas, menos inquietos e insubmissos, e o espírito crítico, o motor do progresso, nem sequer existiria”.


E foi exatamente ancorado na literatura como sólido pilar, que o peruano Mario Vargas Llosa, nascido em Arequipa, em 28 de março de 1936, e morto no último domingo, 13 de abril, em Lima, construiu sua brilhante trajetória com obras essenciais – “Conversa no Catedral”, “A festa do Bode”, “Os filhotes” e “A guerra do fim do mundo”. Sua trajetória foi abalada nas últimas décadas pelo fracasso de sua aventura na política eleitoral peruana e por sua controversa adesão ao neoliberalismo excludente em nome de um conceito genérico de liberdade utópica.


Embora essa postura política tenha lançado uma grande sombra sobre a sua genialidade literária – como foi observado nas conversas nas ruas e nas redes sociais entre os seus leitores quando sua morte foi anunciada – Vargas Llosa precisa ser lembrado mesmo por sua dedicação à literatura e ao humanismo lastreado na crítica feroz às ditaduras. Ele apoiou incondicionalmente a Revolução Cubana em sua origem, em 1959, até se decepcionar com o autoritarismo de Fidel Castro e seu regime persecutório.

Durante seis décadas, vargas llosa escreveu 21 romances, dezenas de ensaios e incontáveis textos sobre os mais diversos temas, sempre em trÂNSITO ENTRE A AMÉRICA LATINA E A EUROPA
Durante seis décadas, Vargas Llosa escreveu 21 romances, dezenas de ensaios e incontáveis textos sobre os mais diversos temas afp


“Para a minha geração, e não só na América Latina, o que aconteceu em Cuba foi decisivo — um antes e um depois ideológico. Muitos, como eu, viram na gesta fidelista não apenas uma aventura heróica e generosa, de combatentes idealistas que queriam não só acabar com uma ditadura corrupta como a de [Fulgêncio] Batista, mas também construir um socialismo não sectário, que permitisse a crítica, a diversidade e até a dissidência”, escreveu Llosa no livro de ensaios “O chamado da tribo” (2018).


A dissidência com o regime foi inevitável. Veio daí, inclusive, o início de suas divergências com o amigo que admirava, o escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), que, a despeito também da grandiosidade de sua obra literária, prestou fidelidade incondicional a Fidel Castro e a outros ditadores com o argumento de lutar a qualquer custo contra o imperialismo dos EUA.


Curiosamente, a incoerência de Gabo, em apoiar ditaduras de esquerda e abominar ditaduras de direita, teve menos notoriedade pública do que a dissidência de Llosa com o seu passado revolucionário.


No discurso no Nobel, Llosa exaltou também a relevância da literatura para enfrentar regimes autoritários e religiões alienantes: “Sem as ficções seríamos menos conscientes da importância da liberdade para que a vida seja suportável e do inferno em que ela se converte quando dominada por um tirano, uma ideologia ou uma religião. Quem duvida que a literatura, além de nos levar ao sonho da beleza e da felicidade, nos alerta contra toda forma de opressão, pergunte por que todos os regimes empenhados em controlar a conduta dos cidadãos, do berço ao túmulo, a temem tanto a ponto de estabelecerem regras de censura para reprimi-la, e vigiam com tanta suspeita os escritores independentes”.


Livros queimados


A resistência de Vargas Llosa ao autoritarismo vinha da sua adolescência e refletiu em seu talento literário. As primeiras décadas de sua vida ele descreveu na autobiografia “Peixe na água” (“El pez en el água”), de 1993. O pai, Ernesto Vargas Maldonado, cumpriu uma antiga ameaça e matriculou o garoto em um colégio militar, o Leoncio Prado, em meio a uma diversidade de classes sociais. Essa experiência o inspirou a escrever o primeiro romance, aos 26 anos, “A cidade e os cachorros” (“La ciudad y los perros”), e que abriu o seu caminho para a fama. Sucesso de vendas, o livro, entretanto, acabou na fogueira. Centenas de exemplares foram queimados pelos militares no Leoncio Prado com o argumento de que maculava a reputação da escola.


O jovem Llosa despertou para o mundo ao mesmo tempo literário e político ao ter os primeiros contatos com as obras de autores como Karl Marx, Victor Hugo, William Faulkner e Jean-Paul Sartre. E também acordou para vida sexual. Aos 19 anos, se casou com Julia Urquidi, uma tia materna, 11 anos mais velha. Essa aventura amorosa inspirou o seu livro “Tia Julia e o escrevinhador” (“A tia Julia e o escrevedor”), de 1977. O totalitarismo afetou sua vida com a ditadura do general Manuel Odría no Peru, nos anos 1950, e serviu de inspiração para a sua obra mais ambiciosa, “Conversa no Catedral” (“Conversa em la Catedral”). de 1969, com a história de dois amigos, um jornalista e um ex-motorista que se reúnem no bar Catedral e falam de suas vidas e da situação política.


Enquanto tentava se firmar como escritor, Llosa teve empregos diversos, inclusive como professor de espanhol em Paris. O contato com intelectuais de esquerda o levou a apoiar a Revolução Cubana, em 1959, que depois o decepcionaria. Em 1967, houve o lançamento de “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez, ápice do “boom latino-americano”, sucesso de crítica e público. Admirado com a obra, Llosa se tornou amigo do escritor colombiano, uma relação que durou até 1976. Naquele ano, Llosa deu um soco no olho de García Márquez, supostamente, por questões passionais envolvendo sua nova mulher, Patricia Llosa. A partir dos anos 1970, Vargas Llosa, desgostoso com os rumos do socialismo, começou sua guinada à direita. O estopim foi o famoso caso Padilla, um poeta e escritor cubano banido por Fidel Castro sob acusações de “atividades subversivas.”


Longe da esquerda, Llosa ganhou holofotes como escritor reconhecido, teve ampla agenda pública mundo afora, participou de eventos diversos e aderiu, como fã de carteirinha, ao neoliberalismo patrocinado por Ronald Reagan e Margareth Thatcher, então presidente dos Estados Unidos e primeira-ministra da Grã-Bretanha, que inspiraram sua fracassada candidatura à Presidência do Peru, quando foi derrotado por Alberto Fujimori, em 1990.

Revolução narrativa

Se na vida política, Mario Vargas Llosa foi frustrado ao abandonar as ideias de esquerda com a guinada neoliberal à direta, na literatura foi um exímio contador de histórias e dos expoentes do “boom literário latino-americano” na segunda metade do século 20. Nesse caso, fez sua própria revolução com temas variados que vão das implacáveis mazelas da América Latina até o erotismo cômico. O escritor peruano, que morreu aos 89 anos no último dia 13 de abril, foi do drama semi-autobiográfico (com “A cidade e os cachorros”, seu tempo num colégio militar, e “Tia Julia e o escrevinhador”, sobre um dos seus casamentos), passando pelo biográfico (“O paraíso na outra esquina”, com a feminista Flora Tristan e o pintor Paul Gauguin como protagonistas, e “A guerra do fim do mundo”, sobre Canudos).


E ainda transitou pela trama policial (com o excelente “O herói discreto”), pelo humor erótico (com “Pantaleão e as visitadoras” e “Elogio da madrasta”), pelo simplesmente erótico (com “Cinco esquinas”) e culminou nas suas obras-primas, o “romance ao mesmo tempo político-histórico e social-humanista (“Conversa no Catedral” e “A festa do Bode”, essa sobre a ditadura de Rafael Trujillo na República Dominicana).


A revolução literária da obra de Vargas Llosa, entretanto, não está na variedade de gêneros, está literalmente nas narrativas paralelas , como em “Tia Julia e o escrevinhador” e “Cinco esquinas”. Esse último é inspirado no bairro homônimo de Lima, que entrelaça cinco histórias. Mostra um Vargas Llosa progressista com a história de duas mulheres que traem os maridos e vivem um romance tórrido, bem diferente das tramas políticas comum nas demais obras. Já “Conversa no Catedral” inova pelo experimentalismo dos diálogos intercalados entre dois amigos no bar Catedral, em Lima.


O “romance total”, narrativa em prosa longa, a exemplo de “Cem anos de solidão”, de García Márquez, é outra façanha de Vargas Llosa. O controverso “A guerra do fim do mundo”, por exemplo, mostra o fascínio do autor pela famosa Guerra de Canudos, que teve como protagonista o líder religioso Antonio Conselheiro. Entusiasmado com “Os sertões”, o clássico de Euclides da Cunha, o escritor peruano foi à Bahia fazer a sua própria versão da triste história, em 1981. Criou então uma ficção fantasiosa, com personagens caricaturais, que agrada a parte dos leitores e faz outros torcerem o nariz pelo caráter reacionário da dicotomia pobreza x elite. Vale mais como entretenimento do que como história.


Melhor do que “A guerra do fim do mundo” é a “A festa do Bode”, bem ao estilo de Vargas Llosa em denunciar ditaduras. Ele explora o grotesco regime do ditador Rafael Trujillo, apelidado de “Bode”, que governou a República Dominicana entre 1930 e 1961, quando foi assassinado. Mais uma vez, Llosa entrelaça fatos e ficção a partir de Urânia, a protagonista, filha de um apaniguado do ditador em meio a uma trama revolucionária para assassiná-lo. Aqui, Llosa se aproxima literariamente de Gabriel García Márquez, porque a trama faz lembrar duas ótimas obras do colombiano: “O outono do patriarca” e “O general e seu labirinto”.


Importante lembrar também o humor erótico em Vargas Llosa. “Pantaleão e as visitadoras” é baseado numa história real sobre o envio de prostitutas para agradar aos isolados soldados do Exército da Amazônia. O capitão Pantaleão Pantoja é surpreendido ao ser informado que comandará a inusitada missão, com a qual terá outras surpresas e muita dificuldades para lidar com as novas relações.


E ainda “Elogio da madrasta”, um dos muitos livros de Llosa que tem o personagem Don Rigoberto. Este livro hoje, possivelmente, seria considerado politicamente incorreto. Conta a história de Lucrécia, que se envolve afetivamente com o pequeno afilhado, Fonchito, filho do marido, Don Rigoberto. Eles formam um desconcertante triângulo amoroso, repleto de sensualidade e devaneios, que incomoda muitos leitores.

‘‘Em que momento o Peru se fodeu?’’

“Conversa no Catedral”, 1969

“Na política, como no amor, às vezes é melhor não saber toda a verdade.”

“A festa do Bode”, 2000

“A paixão é uma forma de loucura socialmente aceita.”

“Tia Julia e o escrevinhador”, 1977

“Havia mais verdade nos olhos do Conselheiro do que em todos os livros.”

“A guerra do fim do mundo”, 1981

A grande obra

Por Bernardo Estillac

“Da porta do La Crónica Santiago observa a avenida Tacna, sem amor: carros, edifícios desiguais e desbotados, esqueletos de anúncios luminosos flutuando na neblina, o meio-dia cinzento. Em que momento o Peru tinha se fodido?”. Assim Mario Vargas Llosa inicia o romance que ele próprio escolheria que salvaria em incêndio. “Conversa no Catedral” é, discutivelmente, o melhor livro do escritor, mas não cabe tanto debate sobre ser essa sua obra mais ousada do ponto de vista estilístico.

No livro lançado em 1969, Llosa, que se debruçou sobre tantas tragédias latino-americanas, escreve sobre uma realidade que conhece bem em “Conversa no Catedral”. E, possivelmente, esta familiaridade l he rendeu liberdade para ousar na forma como escolheu romancear Ochenio de Odría, ditadura vigente no país andino na década de 1950.


A obra começa com Santiago, um jornalista de meia-idade que opta por uma vida mais autocentrada após o descontentamento com a causa comunista peruana (familiar, não?) reencontrando um antigo funcionário de seu pai, um magnata industrial.


Eles então começam a recordar o período de repressão e corrupção desenfreadas no país, lembrado pelo primeiro do ponto de vista de um perseguido por sua profissão e ideologia. E pelo segundo, como quem passou a prestar serviços para um homem forte da ala mais truculenta da ditadura de Manuel A. Odría.


A notável capacidade de misturar ficção com fatos históricos, expor as mazelas do sistema de poder na América Latina e aliar sua narração com elementos sexuais e eróticos estão no livro, um Vargas Llosa por excelência, portanto. Mas o que torna este livro diferente é o constante trânsito no tempo em que a trama é contada, guiado pelos diálogos transpostos entre o papo dos velhos conhecidos em um bar (o Catedral do título) e os casos rememorados da década passada.

Complicado no começo, mas com um ritmo cinematográfico que torna a leitura fluida e instigante, “Conversa no Catedral” faz do arequipeño um escritor essencial não só pelo que coloca no papel, mas pela forma como o faz.

o ditador peruano Manuel A. Odría
o ditador peruano Manuel A. Odría AFP

Trecho do livro ‘‘Conversa no Catedral’’

"Sua voz lhe chega hesitante, temerosa, perde-se, cautelosa, implorando, volta, respeitosa ou ansiosa ou compungida, sempre derrotada: não trinta, quarenta, cem vezes mais. Não tinha apenas desmoronado, envelhecido, embrutecido: talvez também estivesse tísico. Mil vezes mais fodido que Carlitos ou que você, Zavalita. Já ia embora, tinha que ir embora e pede mais cerveja. Você está bêbado, Zavalita, ia chorar agorinha mesmo.

A vida não trata bem as pessoas neste país, menino, desde que ele saiu da sua casa viveu aventuras de cinema. Ele tampouco tinha sido bem tratado pela vida, Ambrosio, e pede mais cerveja. la vomitar? O cheiro de fritura, de pés e axilas sobrevoa, picante e envolvente, as cabeças lisas ou hirsutas, os topetes com gomalina e as nucas planas com caspa e brilhantina, a música da radiola emudece e volta, emudece e volta, e agora, mais intensas e irrevogáveis que os rostos saciados e as bocas quadradas e os pômulos pardos imberbes, as abjetas imagens da memória também estão ali: mais cerveja.

Não era um verdadeiro saco de gatos este país, menino, o Peru não era um quebra-cabeças fantástico? Não era incrível que os odriístas e os apristas que antes se odiavam tanto agora fossem unha e carne, menino?


O que o seu pai diria disso, menino? Falam e às vezes ouvem Ambrosio que timidamente, respeitosamente se atreve a protestar: ele tinha que ir embora, menino. Está minúsculo e inofensivo, lá longe, atrás da mesa longuíssima transbordante de garrafas e tem os olhos ébrios e apavorados. O Batuque late uma vez, late cem vezes. Um redemoinho interno, uma efervescência no coração do coração, uma sensação de tempo suspenso e de vapor.

Falam? A radiola para de trovejar, troveja outra vez. O corpulento rio de cheiros parece fragmentar-se em ramais de fumaça, cerveja, pele humana e restos de comida que giram mornos pelo ar maciço do Catedral e de repente são absorvidos por uma invencível pestilência superior: nem você nem eu tínhamos razão papai, é o cheiro da derrota papai. Gente que entra, come, ri, ruge, gente que vai embora, e o eterno perfil pálido dos chineses no balcão."

(Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht, edição da Alfaguara)

Escritor Mario Vargas Llosa dá autógrafos no sempre um papo, em belo Horizonte, em 1994
Escritor Mario Vargas Llosa dá autógrafos no sempre um papo, em belo Horizonte, em 1994 Arquivo

ELE POR ELES

Leitores diversos comentam a excelência da obra do romancista peruano e destacam livros fundamentais, como “Conversa no Catedral”, “A festa do Bode” e “Tia Julia e o escrevinhador”

“Guinada política não dialogava com a ficção arrojada”

“Eu gosto muito do Vargas Llosa, é um romancista espetacular. É uma pena que a sua obra tenha sido eclipsada nos últimos anos pela guinada muito grande dele em direção a uma centro-direita antiquada que não dialogava com a ficção arrojada que ele imprimiu em suas primeiras obras. Digo uma pena porque livraços como ‘Conversa no Catedral’ (para ser mais fiel ao título original, que se refere a um bar e não a uma igreja) são extraordinários, é uma prosa do que de melhor a literatura nas Américas já produziu. Além dos mais conhecidos, gosto muito de títulos considerados ‘menores’, como ‘Os filhotes’ e ‘Quem matou Palomino Molero?’, grandes exercícios de destreza narrativa. Ele mereceu o Nobel.”

José Eduardo Gonçalves, editor e escritor, autor do livro de contos “Pistas falsas”

“Um homem, sua aldeia e suas obsessões”

“Li meu primeiro Vargas Llosa na faculdade, foi ‘Pantaleão e as visitadoras’. Livros de comédia são considerados menores e raros no corpo da grande literatura, e ler um sul-americano colocando a virtude de um militar caxias contra a informalidade de uma instituição pretensamente rígida fez o livro – e o autor – parecer uma joia rara que se encontra por acaso andando pela rua. Llosa me mostrou, com ‘Pantaleão’, que aquilo que Tolstói falou sobre pintar a própria aldeia era comprovável na prática.

Mais conhecido por comentar o mundo em seu redor mais imediato – como o Brasil em ‘A guerra do fim do mundo’, talvez o melhor romance sobre a Guerra de Canudos, ou ‘A festa do Bode’, uma narrativa sobre a ditadura dominicana para que a palavra estupenda parece insuficiente – Llosa trazia o leitor, em seus livros menores, para perto de sua aldeia particularíssima. Livros como ‘Elogio da madrasta’ e ‘Os cadernos de Dom Rigoberto’, e o sensacional ‘Tia Júlia e o escrevinhador’ pintavam um autor repleto de obsessões sobre o desejo proibido e sobre o ofício utópico de escritor.

Llosa, em sua inventividade, queria ser como Pedro Camacho, o radiodramaturgo de Tia Júlia, um escritor que abandona tudo aquilo de sua vida que não é a literatura, mas acaba sendo como o exército de Pantaleão ou como Dom Rigoberto: um homem tradicional e metódico que se deixa entrever nas linhas miúdas de sua criação.”

Yuri Al’Hanati, crítico literário, do canal Livrada! (YouTube e Instagram)

“Em romance multifacetado, ele cartografou as estruturas do poder”

“Costumo brincar: se o Vargas Llosa analista político lesse direito os livros do Vargas Llosa escritor, um dos gigantes da literatura universal das últimas décadas, provavelmente suas opiniões no final da vida teriam sido menos condescendentes com alguns projetos de tiranos. É sobre a vida, repugnante em muitos aspectos, de um tirano que Llosa se debruçou para criar “A festa do Bode” (Alfaguara), exemplo de ficção com aspectos históricos e grande inventividade literária, campo em que o autor era mestre. O peruano elabora a sua versão para o ocaso de Rafael Leonidas Trujillo, o tal Bode, carniceiro que comandou por mais de 30 anos a ditadura na República Dominicana.

Num romance multifacetado e que exige atenção do leitor, é de se admirar a forma como Llosa nos leva para as podridões do poder. Fica na memória o capítulo em que refaz o despertar do ditador em seus últimos dias de vida, mergulhado em lembranças que contrastam com a presente decadência, com a capacidade física e poderes debilitados. Ao lhe conceder o Nobel, a Academia Sueca reconheceu a capacidade de Llosa cartografar as estruturas de poder. É o que ele faz em ‘A festa do Bode’, centrado numa figura que foi ao mesmo tempo autoridade suprema em seu quintal e títere de forças maiores que atazanam há séculos a América Latina. É um romance que merece estar em qualquer lista de grandes livros dos últimos tempos.”

Rodrigo Casarin, jornalista e crítico literário, do blog Página Cinco

“Na madrugada de BH, um papo sobre Guimarães Rosa”

“Vargas Llosa participou do Sempre um Papo em 1994. Ele havia me dito desde o início da palestra que não queria dar autógrafos. Eu retruquei dizendo que todos os autores que participavam do projeto davam autógrafos. Ele foi irredutível. Eu não vacilei. Terminou o evento, eu falei para a plateia: ‘O autor vai autografar aqui da mesa, mesmo. A fila começa pela esquerda e sai pela direita do palco’. Ele me olhou furioso, não teve como sair da história e deu autógrafos para as 500 pessoas presentes dizendo:
- Sólo la firma, sólo la firma...


Terminamos ali pelas onze da noite, saímos do Teatro Clara Nunes (que não existe mais) e eu fiquei de levá-lo ao hotel. Nesta época eu não só não tinha carro como nem sabia dirigir. Fomos os dois pra rua esperar passar um táxi. Demorou, mas chegou. E ele de tromba. Entramos no táxi e eu perguntei se ele gostava de Guimarães Rosa. A pessoa se transformou. Disse que José Guilherme Merquior, que trabalhava à época na Embaixada de Londres, o tinha aplicado de Rosa e que ‘Grande sertão: veredas’ era o maior livro já escrito.

Chegamos no Othon, engatados nas histórias de Rosa, subimos para o terraço, onde tinha um bar-restaurante e ficamos conversando até cinco da manhã, com o sol quase nascendo. Nos falamos por carta, depois, algumas vezes. Há alguns anos, um dos seus livros foi adaptado para teatro e ele participou como ator em algumas sessões. Conversei muito com sua agente literária, a lendária Carmen Balcells, para trazer o espetáculo ao Brasil com a condição que ele viesse.

Mas ficou tudo nos e-mails que ainda tenho, não evoluiu por causa da saúde do Llosa. Mas me lembro daquela madrugada como se fosse hoje. A pessoa virou um menino falando das histórias de Guimarães Rosa no ‘Grande sertão’. Não tinha registro nenhum deste evento. Até que recebi, recentemente, a foto que aí está.”

Afonso Borges, produtor cultural, idealizador do projeto Sempre um Papo

“Talento demais, vida demais”

“De forma ingrata e injusta, eu tenho recebido, nos últimos tempos, os livros de Vargas Llosa com uma espécie de indiferença. Seu ‘prime’, queria eu acreditar usando a linguagem dos meus irmãos mais novos, já passou. Depois eu os abria (os livros, não os irmãos): era mentira — ainda estava lá. No entanto, não terminei nenhum (nem ‘Cinco Esquinas’ nem ‘Tempos ásperos’). O mestre viveu tanto que seu gênio cansou; e, desmedidamente, acumulou tantas obras-primas que houve um momento em que se teve vontade de dizer: “Chega, Tío, já entendemos.” Talento demais, vida demais.


Como acontece frequentemente nas grandes obras, há em Vargas Llosa o livro que se colocaria no topo, aquele que permanecerá porque “está tudo ali”. Para mim (e para o próprio autor, como me ensina o belíssimo obituário de Philippe Lançon no (jornal) Libé Matin), esse livro seria “Conversa no Catedral”. Depois, há o livro mais impactante, que por essa razão — e por outras também — “fala com você”. Eu voto em “A Cidade e os Cachorros”, romance autobiográfico que narra a experiência de alunos em um colégio militar de Lima.


Passei sete anos em um internato militar. Neste período, o Campo Deh Momar Gary, moldou tantos aspectos cruciais — os melhores, os piores, os mutáveis — do que estou me tornando, que tenho dificuldade em falar sobre isso. Saí da escola em 2009: ainda estou me acostumando. Mas no relato das aventuras do “Círculo” no colégio Leoncio Prado, em Lima, encontrei — inquietantes, puras — algumas das sensações mais profundas da minha vida em Dakhar-Bango.


Cinquentenário do jornal do Prytanée Militar de Saint-Louis. Pedem-me um texto. “Prytanée, livro impossível” — título pomposo que escolho; nele, conto que o último livro que eu gostaria de escrever seria um romance sobre minha experiência como “criança de tropa”. Romance impossível por quatro razões. Há, é claro, uma quinta, secreta, a única verdadeira: Vargas Llosa. Sobre esse ‘tema’, já existem obras-primas: ‘O jovem Törless’, de Musil; ‘L’année de l’éveil’, de Charles Juliet; mas, acima de tudo: ‘A cidade e os cachorros’. Que necessidade haveria, depois disso? Pararei, portanto, de escrever meus livros no penúltimo. Talvez um romance sobre a tristeza de saber, em plena insônia, da morte de Mario Vargas Llosa.”

Mohamed Mbougar Sarr, autor de “A mais recôndita memória dos homens”, em sua conta no Instagram

No Salão de Concertos de Estocolmo, Llosa discursa durante a cerimônia do Nobel, em 2010
No Salão de Concertos de Estocolmo, Llosa discursa durante a cerimônia do Nobel, em 2010 AFP

Elogio da leitura e da ficção

Trechos do discurso de Mario Vargas Llosa ao receber, em 2010, o Prêmio Nobel de Literatura. “A literatura cria uma fraternidade dentro da diversidade humana e apaga as fronteiras”, disse ele.

“Minha mãe me disse que as primeiras coisas que escrevi foram continuações das histórias que lia, pois me aborrecia quando elas terminavam ou queria mudar seu final. E talvez seja isso que acabei fazendo na vida sem perceber: prolongar no tempo, enquanto crescia, amadurecia e envelhecia, as histórias que encheram minha infância de exaltação e de aventuras.”

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“Se eu mencionasse neste discurso todos os escritores aos quais devo um pouco ou muito as suas sombras nos deixariam na escuridão. São inumeráveis. Além de me revelarem os segredos do ofício de contar, eles me fizeram explorar os abismos do humano, admirar seus feitos e horrorizar-me com os seus desvarios. Foram os amigos mais serviçais, os estimuladores da minha vocação, em cujos livros descobri que, mesmo nas piores circunstâncias, há esperança, e que vale a pena viver, nem que seja só porque sem a vida não poderíamos ler nem fantasiar histórias.”

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“Algumas vezes me perguntei se em países como o meu, com poucos leitores e tantos pobres, analfabetos e injustiças, no qual a cultura era privilégio de tão poucos, escrever não era um luxo escapista. Mas essas dúvidas nunca asfixiaram minha vocação, e continuei sempre escrevendo, mesmo naqueles períodos em que o trabalho de subsistência absorvia quase todo o meu tempo. Acho que fiz a coisa certa, pois, se para a literatura florescer numa sociedade fosse preciso alcançar primeiro a alta cultura, a liberdade, a prosperidade e a justiça, isso não teria existido nunca. Ao contrário, graças à literatura, às consciências que ela formou, aos desejos e anseios que inspirou, ao desencanto do real com que retornamos da viagem a uma bela fantasia, a civilização é agora menos cruel do que quando os contadores de contos começaram a humanizar a vida com suas fábulas.”

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“Seríamos piores do que somos sem os bons livros que lemos, mais conformistas, menos inquietos e insubmissos, e o espírito crítico, o motor do progresso, nem sequer existiria. A exemplo de escrever, ler é protestar contra as insuficiências da vida. Quem procura na ficção o que não tem, diz, sem necessidade de dizer, e nem de saber, que a vida tal como é não nos basta para apagar a nossa sede de absoluto, fundamento da condição humana, e que deveria ser melhor. Inventamos as ficções para podermos viver de, alguma maneira, as muitas vidas que queríamos ter, quando apenas dispomos de uma só.”

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“Sem as ficções seríamos menos conscientes da importância da liberdade para que a vida seja suportável e do inferno em que ela se converte quando dominada por um tirano, uma ideologia ou uma religião. Quem duvida que a literatura, além de nos levar ao sonho da beleza e da felicidade, nos alerta contra toda forma de opressão, pergunte por que todos os regimes empenhados em controlar a conduta dos cidadãos, do berço ao túmulo, a temem tanto a ponto de estabelecerem regras de censura para reprimi-la, e vigiam com tanta suspeita os escritores independentes. Fazem isso porque sabem o risco que correm ao deixarem que a imaginação flua pelos livros, como quão sediciosas se tornam as ficções quando o leitor compara a liberdade que as torna possíveis e que nelas se exerce, com o obscurantismo e o medo que o pressionam no mundo real.”

‘‘Um homem não deve se deixar pisotear por ninguém nesta vida.’’

“O herói discreto”, 2013

‘‘As belas palavras virariam fumaça e jamais sairiam dos salões parisienses.’’

“O paraíso na outra esquina”, 2003


‘‘Suspirou, sobrecarregado pelos níveis de imbecilidade que o mundo padecia.’’

“O sonho do celta”, 2010

EM 1990, Mario Vargas Llosa, candidato à presidência da República, faz comício na cidade peruana de Chincha
EM 1990, Mario Vargas Llosa, candidato à presidência da República, faz comício na cidade peruana de Chincha Cris BOURONCLE / AFP

Guinada ideológica e frustração nas urnas

Por Paulo Nogueira

Mário Vargas Llosa foi um escritor consagrado e inovador – tanto que ganhou o Nobel de Literatura em 2010 – e um político controverso que deu uma guinada radical da esquerda para a direita. Passou de apoiador de Fidel Castro, que havia comandado a Revolução Cubana no fim da década de 1950, a fã do então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, e da então poderosa primeira-ministra britânica, Margareth Thatcher nas décadas seguintes.


No livro autobiográfico “O chamado da tribo" (2018), Llosa conta que a política entrou em sua vida quando ainda era adolescente. Aos 12 anos, viu o general Manuel Odría derrubar o presidente José Luis Bustamante y Rivero e impor uma ditadura no Peru. Daí, teria vindo sua inclinação para a esquerda e para as causas sociais. “Uma das grandes paixões de Vargas Llosa era a política. Ele vem de uma família em que a política fez parte de sua vida desde cedo”, afirmou o seu biógrafo, Pedro Cateriano, em entrevista à AFP.


Cateriano conta que o escritor se envolveu em atividades do movimento comunista quando era estudante na Universidade de San Marcos, na década de 1950. No fim daquela década, quando Fidel Castro derrubou a ditadura de Fulgêncio Batista, Llosa se aproximou de outros intelectuais de esquerda, como Gabriel García Márquez.


A decepção com o regime castrista veio em 1971, com o famoso caso Padilla. O poeta cubano Heberto Padilla, inicialmente apoiador da revolução, se virou contra os desmandos totalitários de Fidel e passou a ser perseguido. “Foi um período muito difícil para mim, porque me senti como os padres que penduram suas vestes e retornam a uma sociedade secular de incerteza e insegurança. Descobrindo que a democracia não era o que acreditávamos e o que a esquerda comunista reivindicava”, afirma Llosa em “O chamado da tribo”.


Daí em diante, o autor de “Conversa no catedral” se aproximou cada vez mais do liberalismo. Outro estímulo para isso foi o governo social-democrata de Alan García no Peru, que quis estatizar os bancos. Apresentando-se como líder de direita, Llosa liderou protestos contra o governo em 1987 e fundou o Movimento pela Liberdade.


Em 1990, candidatou-se à Presidência do Peru e acabou derrotado por Alberto Fujimori. Frustrado, mudou-se para Paris e se dedicou à já consagrada carreira literária, mas seguiu como crítico ferrenho de ditaduras em textos para a imprensa e entrevistas. “Se há algo a elogiar em Vargas Llosa é justamente sua ação política e, nesse sentido, ele fez muito bem ao Peru e à América Latina”, acredita Cateriano. Llosa era crítico também do populismo, segundo ele, um dos grandes males da América Latina, “a doença da democracia”, na qual ele incluiu o chavismo [regime autoritário de Hugo Chávez na Venezuela], o castrismo, a esquerda radical na Europa e a extrema direita.


Acompanhou de perto a situação política do Brasil, começando pelo apoio a Fernando Henrique Cardoso, duas vezes presidente brasileiro. Em 2018, fez uma declaração infeliz. Disse que escolher entre os candidatos a presidente Jair Bolsonaro e Fernando Haddad era como optar entre “câncer terminal e Aids”. Em 2022, Llosa criticou os candidatos Bolsonaro e Lula. “Não tenho muita simpatia por Bolsonaro. Com sua posição sobre as vacinas, ele provocou uma verdadeira catástrofe no Brasil (...) Mas jamais votaria em Lula. Ele foi um homem que corrompeu profundamente. Podemos dizer que os dirigentes peruanos se deixaram corromper [pela construtora Odebrecht]. Lula cumpriu uma função muita negativa no Peru”, criticou o escritor.

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