O ministro das Relações Exteriores, embaixador Mauro Vieira, disse que é necessário fazer um esforço diplomático para evitar que a guerra de Israel contra o grupo terrorista Hamas se alastre na região. Em entrevista ao Correio, o chanceler brasileiro aponta que o risco dessa escalada é real.
“O risco de escalada e alastramento do conflito é real, é motivo de preocupação, e tem merecido toda nossa atenção”, aponta e complementa. “É preciso conter esse risco por meio da diplomacia, e é o que estamos fazendo”, disse o embaixador.
À reportagem, disse que os voos de repatriação dos brasileiros foram um sucesso até o momento e comentou a promessa do ministro das Relações Exteriores de Israel, Eli Cohen, de que os brasileiros que ainda estão retidos na Faixa de Gaza serão autorizados a cruzar a fronteira com o Egito até a próxima quarta-feira. “Estamos trabalhando, há semanas, para que o grupo de brasileiros estivesse entre os primeiros a partir da reabertura do posto fronteiriço de Rafah”, disse o chanceler.Vieira avaliou ainda o discurso que fez no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), quando disse que os países falharam “miseravelmente”. Para ele, a instituição não conseguiu dar resposta em tempo ao conflito. Quanto à proposta de resolução do Brasil para um cessar-fogo, vetada pelos Estados Unidos no Conselho, Vieira diz que só recebeu elogios quanto à atuação do país na presidência rotativa do colegiado, ao longo do mês de outubro.
“O Brasil é grande, é respeitado no mundo, e tem uma diplomacia à altura dessa importância”, diz o chanceler, ao rejeitar a crítica de que o país faz “diplomacia nanica”. Acompanhe os principais trechos da entrevista com o chanceler Mauro Vieira:
Há risco de uma escalada no conflito no Oriente Médio? Como isso afeta o Brasil?
O risco de escalada e alastramento do conflito é real, é motivo de preocupação, e tem merecido toda nossa atenção. Vários chanceleres e chefes de Estado ou governo com os quais conversei em Nova York e no Cairo me transmitiram essa preocupação. A instabilidade no Oriente Médio tem alcance global, tanto no plano político quanto no econômico, e o Brasil não estaria livre de eventuais repercussões negativas do alastramento do conflito. É preciso conter esse risco por meio da diplomacia, e é o que estamos fazendo, em coordenação com outros parceiros importantes na região e no mundo.
Quando o senhor acredita que a situação dos brasileiros em Gaza pode ser resolvida?
Estamos trabalhando, há semanas, para que o grupo de brasileiros estivesse entre os primeiros a partir da reabertura do posto fronteiriço de Rafah, que ocorreu na quarta-feira. Já falei com o chanceler do Egito em quatro ocasiões, e com o de Israel, em três. O presidente Lula falou com ambos os presidentes e com vários líderes da região, estamos totalmente mobilizados, e nossas embaixadas também estão fazendo gestões para que a questão seja solucionada o mais rapidamente possível. Desde que o posto de Rafah foi aberto para a passagem de pessoas e que começou a evacuação dos cerca de 7 mil estrangeiros retidos em Gaza, a um ritmo de 500 pessoas por dia, telefonei para os chanceleres do Egito e de Israel para reiterar o pleito dos brasileiros que esperam pela sua vez em Rafah e em Khan Yunis. Ambos me responderam que se empenharão ao máximo para resolver a situação rapidamente.
E a guerra na Ucrânia, ficou congelada?
Não, o fato de ter saído do foco prioritário da mídia não afasta a necessidade de que continuemos a buscar a paz também na Ucrânia.
O senhor acredita que o Fórum pela Paz, no Egito, deve se repetir? Ele tem mais condições que a ONU de construir um caminho de paz na região?
Sim, foi um exercício muito válido e representativo, tanto em número e peso de países convidados quanto no nível em que estiveram representados. Foi uma iniciativa que se somou aos esforços da ONU, e que reforçou nossa atuação no Conselho. Mas um foro não exclui o outro, são ações que se complementam, e que devem ter continuidade. É sempre bom lembrar que a Cúpula para a Paz, no Cairo, obteve consenso em pontos essenciais, como a urgência da cessação de hostilidades e do atendimento à crise humanitária e, sobretudo, quanto à concretização da solução de dois Estados como caminho indispensável para a construção de uma paz duradoura, com a convivência em paz e segurança de Israel e da Palestina, dentro de fronteiras mutuamente acordadas e internacionalmente reconhecidas.
Por que falhamos vergonhosamente, como o senhor diagnosticou no discurso da última reunião do Conselho de Segurança?
Porque, apesar dos esforços da presidência, ocupada em outubro pelo Brasil, e de um grupo amplamente majoritário de países, estivemos muito perto, mas não conseguimos fazer com que o Conselho de Segurança aprovasse uma resolução sobre o conflito. Por instrução do presidente Lula, que acompanhou e orientou nossa atuação passo a passo, em constante contato telefônico e com vivo interesse nos esforços em busca de uma solução, tentamos construir o consenso até o último momento da nossa presidência, na última terça-feira. Não pudemos fazer com que o Conselho se manifestasse com a contundência e a rapidez exigidas pelas duas crises que o mundo testemunha desde 7 de outubro: a dos reféns em poder do Hamas e a humanitária, que afeta toda a população civil de Gaza. Foi uma oportunidade perdida, mas não acabaram nem a esperança tampouco o empenho em se negociar uma resolução.
O Brasil saiu mais forte ou mais fraco depois da proposta de resolução ser vetada pelos americanos?
Nunca perdemos de vista que o que estava em jogo eram as vidas de milhões de pessoas — entre elas, milhares de brasileiros — afetadas diretamente pelo conflito na região, e não o Brasil e sua diplomacia. Por isso, o governo Lula foi além da ação diplomática na ONU e deu uma resposta tão rápida e eficaz em matéria de repatriação de brasileiros que se sentiram ameaçados pelo conflito, com 1.445 pessoas, entre compatriotas e familiares, atendidas até a sexta-feira. E, a partir da abertura da passagem fronteiriça de Rafah, intensificamos as gestões diplomáticas para que os mais de 30 brasileiros retidos em Gaza possam entrar no Egito, onde a equipe de apoio da Embaixada no Cairo e um avião da FAB os esperam há mais de duas semanas. No que diz respeito aos aspectos diplomáticos da atuação brasileira à frente do Conselho no mês passado, o julgamento cabe aos brasileiros e aos nossos parceiros da comunidade internacional. Nas minhas conversas por telefone e nas mantidas pessoalmente em Nova York e Cairo nas últimas semanas, só ouvi elogios ao equilíbrio, ao esforço e à ampla capacidade de interlocução do Brasil. O dado concreto é que os 12 votos a favor da resolução da presidência brasileira (apenas os EUA votaram contra) representam, por si só, um recado claro de que a ampla maioria do Conselho buscou romper o impasse, a partir de um texto equilibrado e focado na questão humanitária. Sempre soubemos que a tarefa era difícil: afinal, desde 2016 não se aprova nenhuma resolução sobre a questão palestina e, do total de vetos na história do Conselho, cerca de 250 (1/3) foram exercidos em votações ligadas a questões do Oriente Médio. Mas também sabíamos que era preciso tentar até o final. Nosso dever foi cumprido.
Qual o balanço desse período do Brasil na presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU?
O balanço é positivo. Além de cumprir toda a agenda prevista para outubro e de aprovar sete resoluções, duas delas sobre o Haiti, o Conselho dedicou todo o tempo necessário à crise em Israel e na Palestina, a partir dos atos terroristas do Hamas, em 7 de outubro. Nossas equipes do Itamaraty e da missão na ONU, em Nova York, trabalharam duro na preparação e na administração da agenda, em um momento no qual os trabalhos do Conselho foram acompanhados, em tempo real, pela opinião pública brasileira e internacional.
Esse imobilismo do Conselho de Segurança mostra um sistema multilateral desacreditado? A ONU mantém a relevância?
O multilateralismo e a ONU continuam a ter relevância e continuam a ser o melhor modelo de governança para o Brasil. Mas, há 30 anos, o Brasil vem cobrando a necessidade de mudanças na ONU e no Conselho de Segurança para que reflitam as realidades atuais do mundo, e não a realidade de 1945, herdado do fim da II Guerra Mundial. Os fatos da realidade internacional, incluindo a crise no Oriente Médio e seus últimos retrocessos em matéria de paz, dão razão à nossa argumentação. É urgente reformar o sistema de governança internacional e isso inclui também a Organização Mundial do Comércio.
É possível pensar nesse multilateralismo, sem os Estados Unidos, ou Rússia e China? Países que vêm polarizando a ONU.
Não, o multilateralismo é inclusivo por natureza, e a participação de grandes atores, como EUA, Rússia e China, é indispensável. Mas é igualmente indispensável um novo equilíbrio na representação e na divisão de poderes e responsabilidades. Um equilíbrio que leve em conta o peso cada vez maior dos países em desenvolvimento e de regiões como a América Latina, a África e a Ásia.
Apesar do mundo mais multipolar, as instituições internacionais estão fragilizadas. Para o Brasil, não seria melhor apostar no bilateralismo, focar mais nos seus interesses?
Não acredito nisso, o multilateralismo é o modelo que contempla melhor os interesses de países como o Brasil, que depende de uma ordem internacional mais justa e mais equilibrada. Uma ordem capaz de evitar que, por meio de regras e do direito, se imponham as assimetrias de poder, as medidas unilaterais e a lei do mais forte, tanto na política quanto na economia e em áreas de grande interesse para nós, como o meio ambiente.
Em 2014, no governo da presidente Dilma Rousseff, o Hamas e Israel entraram em conflito e o Brasil questionou a retaliação de Israel. Críticos disseram que o país fazia uma diplomacia nanica. A oposição ao governo retomou essa acusação neste novo conflito. Somos nanicos?
Essa frase infeliz caiu rapidamente no esquecimento por uma razão muito simples: se há um termo que não se aplica ao Brasil e a sua diplomacia é esse. O Brasil é grande, é respeitado no mundo e tem uma diplomacia à altura dessa importância. Não ouvi essa afirmação ser repetida agora, mas se ela foi feita, no Brasil ou fora, cairá rapidamente no esquecimento também, porque não tem o menor fundamento. Além disso, em 10 meses de gestão, ninguém mais discute que o presidente Lula retomou as linhas de atuação internacional da política externa brasileira, recuperou prestígio e espaços internacionais de atuação e devolveu ao Brasil uma posição central no debate internacional. Os tempos do isolacionismo provocado pelos erros, pelo sectarismo e pela imperícia diplomática do antecessor ficaram para trás, felizmente. Em um dos muitos eventos tradicionais dos quais participei desde que assumi o cargo, me encontrei no corredor com chanceler de um importante parceiro europeu que temos, e ele me saudou com um sorriso, e com a seguinte frase, que sintetiza o sentimento geral que percebo em minhas viagens de trabalho pelo mundo, e recentemente também em Nova York e no Cairo: “Que bom ter o Brasil de volta”.