A crise entre o Senado e o Supremo Tribunal Federal (STF) em torno da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 8/2021, que restringe decisões monocráticas de magistrados, chegou ao ápice ontem, um dia após a aprovação do texto por 52 votos a 18. Pela manhã, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, e outros ministros da corte reagiram com duras críticas.

No início da sessão, Barroso afirmou que as propostas legislativas de alteração nas atribuições do STF “não são necessárias e não contribuem para a institucionalidade do país”. E que “não se sacrificam instituições no altar das conveniências políticas”.

Gilmar Mendes foi mais contundente: “Este Supremo Tribunal Federal não admite intimidações”. No início da noite, diante da forte reação, Pacheco jogou mais lenha na fogueira da crise com pronunciamento à imprensa: “Não me permito fazer um debate político, tampouco receber agressões que gratuitamente recebi por membros do STF em razão de um papel constitucional que cumpri de buscar aprimorar a Justiça do nosso país”.

Durante a abertura da sessão, Barroso ressaltou que o Senado e suas deliberações merecem toda a consideração institucional, mas as mudanças sugeridas já foram, em sua maior parte, abrangidas por alterações recentes no próprio regimento do STF. Nesse sentido, afirmou, é inevitável que o Supremo desagrade segmentos políticos, econômicos e sociais importantes, porque não pode se recusar a julgar questões difíceis e controvertidas. “Não há institucionalidade que resista se cada setor que se sentir contrariado por decisões do tribunal quiser mudar a estrutura e funcionamento do tribunal. Não se sacrificam instituições no altar das conveniências políticas”.

Barroso lembrou que, nos últimos anos, além de funcionar como dique de resistência contra o avanço autoritário, o STf enfrentou o negacionismo da pandemia e o negacionismo ambiental, o que levou a ataques verbais e até a invasão da corte. “Num país que tem demandas importantes e urgentes, que vão do avanço do crime organizado à mudança climática que impactam a vida de milhões de pessoas, nada sugere que os problemas prioritários do Brasil estejam no Supremo Tribunal Federal”, disse.

O decano da corte, Gilmar Mendes, também não poupou críticdas à aprovação da PEC e foi ainda mais contundente do que Barroso. “Este Supremo Tribunal Federal não admite intimidações. Cabe lembrar a esses propagadores do caos institucional que os processos de responsabilidade dos ministros desta corte hão de estar submetidos ao crivo judicial garantidor do devido processo legal, impedindo que acusações mambembes turvem a independência judicial. Nenhuma resposta para temas que são urgentes para a democracia. O problema são o STF e suas liminares. Estranha prioridade”, disse.

“INSINUAÇÕES”

Outro magistrado que comentou a aprovação da PEC pelo Senado foi Alexandre de Moraes, que preside o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “A discussão de ideias, o aprimoramento das instituições, são importantes instrumentos da democracia. Mas não quando escondem insinuações, intimidações e ataques à independência do Poder Judiciário, principalmente, a independência deste Supremo. A Constituição garantiu a independência do Judiciário, proibindo qualquer alteração que desrespeite essa independência e a separação de Poderes”, frisou.


Segundo ele, decisões do Supremo durante a pandemia da COVID-19 foram fundamentais para conter a crise sanitária no país. “Vossa excelência [Barroso] recordou a importância do STF durante a pandemia. As vacinações, os planos. Várias decisões urgentes durante a pandemia foram dadas por decisões monocráticas dos relatores, e isso salvou inúmeras vidas durante a pandemia. O nosso decano lembrou a defesa da democracia no dia 8 de janeiro. Decisões liminares referendadas pelo Supremo", lembrou, citando Gilmar Mendes.

Moraes disse ainda que o STF não se intimida diante das atuações do Congresso. "Essa corte não se compõe de covardes nem de medrosos. A Constituição garantiu a independência do Judiciário. Tenho absoluta certeza que esta corte, sob a presidência de vossa excelência [Barroso], demonstrará coragem. Não em favor do tribunal, dos juízes e juízas, mas de toda a sociedade", ressaltou.

REAÇÃO DE PACHECO

No início da noite, Rodrigo Pacheco reagiu às críticas do STF. “Nós não podemos admitir que a individualidade de um ministro do Supremo Tribunal Federal declare inconstitucional lei sem a colegialidade do Supremo Tribunal Federal. Portanto, eu não admito que se queira gerar um problema institucional em torno de um tema que foi debatido com a maior clareza possível que não constitui nenhum tipo de enfrentamento, nenhum tipo de retaliação e nós jamais nos permitiríamos”, declarou o presidente do Senado.

Pacheco afirmou também: “Defendi as urnas eletrônicas, defendi os ministros do Supremo Tribunal Federal, defendi a democracia do nosso país, repeli em todos os momentos arguições antidemocráticas, inclusive a que consubstanciou o 8 de janeiro com os ataques que nós sofremos. Estivemos unidos nesse propósito, mas isso não significa que as instituições sejam imutáveis, ou sejam intocáveis em razão das atribuições”. Ele disse ainda: “Eu não me permito debater nem politizar essa declarações dos ministros do STF, porque entendo que o Supremo não é casa política".

Pacheco já vinha negando que a PEC fosse retaliação ao STF por causa da votação de assuntos considerados de competência do Legislativo, mas que entraram na pauta da corte, como o marco temporal dos indígenas e a descriminalização da maconha e do aborto. “Não é resposta, não é retaliação, não é nenhum tipo de revanchismo. É a busca de um equilíbrio entre os poderes, que passa pelo fato de que as decisões do Congresso Nacional quando faz uma lei, que é sancionada pelo presidente da República, ela pode ter declaração de inconstitucionalidade, mas que o seja pelos 11 ministros e não por apenas um”, disse Pacheco na quarta-feira.

ACORDO

A votação que aprovou a PEC que limita os poderes da corte ocorreu depois de alterações de última hora feitas pelo relator Esperidião Amin (PP-SC), num acordo que envolveu conversas com parlamentares da base do governo. As mudanças surgiram a partir de emenda apresentada pelo senador Omar Aziz (PSD-AM) para que os ministros ainda possam derrubar por meio de decisão individual atos normativos do governo federal.

A versão inicial da proposta previa que as medidas administrativas do governo, assim com as leis aprovadas pelo Congresso, só poderiam ser derrubadas pela maioria do STF. “Atos normativos que são via de regra do Executivo podem tramitar sem essa regulação que a nossa emenda constitucional aplica”, disse o relator.

Inicialmente, a PEC vedava a concessão de decisão monocrática que suspenda a eficácia de lei ou ato normativo com efeito geral ou que suspenda ato dos presidentes da República, mas esse ponto foi retirado. Entre outros pontos, a proposta também estabelecia prazo de 180 dias para pedidos de vista — tempo para um magistrado estudar um determinado processo, mas acordo também eliminou esse item. Atualmente, no Judiciário, cada ministro pode pedir vista individualmente, sem prazo específico, o que possibilita sucessivos pedidos por tempo indeterminado.

Amin ainda acatou uma proposta de Rodrigo Pacheco para que as Casas legislativas de onde saírem as medidas eventualmente questionadas no STF sejam procuradas para se manifestar antes de os ministros tomarem a decisão de suspendê-las ou não. Atualmente as manifestações da Câmara e do Senado não são obrigatórias.



GOVERNO

O voto do líder do governo no Senado, Jaques Wagner (BA), a favor da PEC que restringe decisões individuas no STF causou mal-estar dentro do governo e do seu partido. A presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), criticou o correligionário e anunciou que o partido atuará contra a aprovação da proposta na Câmara. “Considero um erro o voto do senador Jaques Wagner, infelizmente. Vamos trabalhar para que esta PEC não seja confirmada pela Câmara dos Deputados”, afirmou.

Gleisi citou uma decisão monocrática do ex-ministro Marco Aurélio Mello, que deu autonomia a prefeitos e governadores para executarem de enfrentamento da pandemia, diante do negacionismo do governo Bolsonaro. “Durante a pandemia, foi o STF, a partir de decisão monocrática, que garantiu as ações de governadores e prefeitos em defesa da população, contra a política negacionista de Bolsonaro e seus ministros. Que sentido tem então a PEC aprovada no Senado, cerceando a atuação do Supremo, que não seja uma revanche política orientada pela extrema-direita?”, afirmou Gleisi.

Para justificar seu voto a favor da PEC, Wagner afirmou que não houve orientação do governo sobre como votar e que sua decisão foi pessoal. “Quero não mais falar como líder do governo, apesar de que é indissociável. Eu entendo que houve um esforço, e eu me orgulho de ter feito parte disso, para minimizar ou diminuir as diferenças que poderiam incomodar ou serem interpretadas equivocadamente como uma intromissão do Legislativo na Corte Superior", disse Jaques Wagner durante a votação da emenda.

Diante da repercussão negativa de sua posição, ele foi ao X (antigo Twitter) ontem se justificar novamente. “Como líder do governo, reafirmei a posição de não orientar voto, uma vez que o debate não envolve diretamente o Executivo. Reforço aqui meu compromisso com a harmonia entre os Poderes da República e meu total respeito ao Judiciário e ao STF, fiador da democracia brasileira e guardião da Constituição”, alegou o petista.

O líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), desconversou, sobre desconfortos entre o Executivo e o Judiciário, após o plenário do Senado aprovar a PEC. “Respeito nosso líder Jaques Wagner, mas as posições ontem ficaram externadas. Eu externei minha posição ontem sobre esse tema no plenário do Senado”, comentou Randolfe. Jaques Wagner liberou a bancada para a votação, o que significa que os governistas poderiam se posicionar como quisessem na hora da votaão da PEC no plenário do Senado.

Randolfe destacou que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva reconhece a importância que o STF tem na defesa da democracia, em particular nos anos do governo Bolsonaro. “O governo reconhece o papel histórico do Supremo Tribunal Federal na última quadra histórica. Tem significado que no 8 de janeiro o prédio mais vilipendiado tenha sido o do STF”, disse Randolfe. “Tenho certeza que teremos entendimento. Não tem nenhum impasse entre o governo e o Supremo Tribunal Federal”, completou.

O QUE DIZ A PEC 8/2021

DECISÕES MONOCRÁTICAS

Está suspensa a eficácia de lei por decisões monocráticas, isto é, tomadas apenas por um magistrado. A exceção ocorrerá no recesso do Judiciário em casos de urgência ou risco de dano irreparável. Mesmo assim, o tribunal responsável deverá julgar o caso em até 30 dias após a retomada de seus trabalhos sob a pena de perda da eficácia da decisão.

MEDIDAS CAUTELARES

Quando forem deferidas medidas cautelares em ações que impliquem declaração de inconstitucionalidade de lei, o mérito da ação terá de ser julgado em até seis meses. Após esse prazo, o mérito da ação terá prioridade na pauta sobre os demais processos nos tribunais.


PONTOS RETIRADOS

Foi retirado da PEC o trecho que estabelecia prazo de até 180 dias para o pedido de vista ou de até 90 dias em julgamentos em que houver divergência entre os votos já proferidos. Foi retirada também a proibição de decisões monocráticas em atos do presidente da República. Se fosse mantida, a suspensão de atos do Executivo poderia ser tomada apenas pelo plenário dos tribunais.

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