Há um ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anunciava as primeiras cinco nomeações ministeriais do alto escalão – todos homens. À época, o petista havia sido questionado sobre uma promessa de palanque: a diversidade étnica e de gênero. Lula tentou se antecipar às críticas e disse que seu terceiro mandato seria “a cara do conjunto da sociedade brasileira”.
Em sua justificativa, ponderou: “Haverá muito mais mulheres do que homens”. De lá para cá, em meio ao jogo político em busca de governabilidade, o que se vê é um cenário na direção oposta das promessas: o protagonismo da diversidade de gênero, que seria símbolo da sua gestão, está em segundo plano.
Em 11 meses, Lula demitiu três mulheres de cargos altos no governo: Daniela Carneiro, do comando do Ministério do Turismo; Ana Moser, do Ministério do Esporte; e Rita Serrano, da presidência da Caixa Econômica Federal. O movimento tem sido alvo de críticas até da primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja. No sábado, durante a conferência eleitoral do PT, em Brasília, Janja cobrou a revisão dos incentivos à participação das mulheres na política. “Precisa lutar por cadeiras, equidade. As cotas já não bastam mais”, afirmou.
“Vai chegar uma hora que vocês vão ver mais mulheres aqui do que homens e vai chegar uma hora que vocês vão ver a participação de muitos companheiros afrodescendentes aqui em pé, como estão hoje os companheiros”, disse Lula, em 9 de dezembro do ano passado, ao anunciar seus primeiros ministros: Fernando Haddad (Fazenda), Flávio Dino (Justiça e Segurança Pública), José Múcio Monteiro (Defesa), Rui Costa (Casa Civil), Mauro Vieira (Relações Exteriores).
Maior percentual
Ao oficializar todos os ministérios, em janeiro, Lula tinha 11 mulheres nomeadas entre os 37 ministérios. Embora não ocupassem metade da Esplanada, que à época tinha 26 homens comandando ministérios, elas representavam quase 30% do primeiro escalão do governo Lula 3. “Nunca antes na história do Brasil teve tantas mulheres ministras”, afirmou Lula.
A então composição do governo federal atingiu a maior representatividade feminina da história da redemocratização, superando a quantidade de mulheres no cargo desde o primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), que teve nove mulheres nomeadas inicialmente.
Na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), apenas duas pastas foram inicialmente chefiadas por mulheres. Na de Michel Temer, nenhuma mulher participou da composição da Esplanada dos Ministérios inicialmente. Dilma, em seu primeiro mandato (2011-2014), teve inicialmente nove mulheres em sua composição. A gestão da ex-presidente chegou a ter 10 mulheres nos cargos, caindo para seis no começo do segundo mandato.
Baixas na Esplanada
O cenário do começo deste terceiro mandato não perdurou. Sete meses depois, o presidente Lula demitiria duas ministras, perdendo o recorde de mulheres na Esplanada. A primeira a cair foi a ex-ministra do Turismo, Daniela Carneiro, que, após semanas de pressão, foi substituída por Celso Sabino, do União Brasil. A exoneração ocorreu no início de julho e a troca se deu em uma estratégia do governo para tentar melhorar sua relação com partidos do Centrão.
A próxima a ser mandada embora seria Ana Moser, ex-ministra do Esporte, em setembro. A demissão também foi um movimento político com o objetivo de abrigar o Centrão na Esplanada dos Ministérios. A pasta foi assumida por André Fufuca, do Progressistas, sigla do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira.
Demissão na Caixa
Outro movimento político feito por Lula foi a demissão da presidente da Caixa Econômica Federal, Rita Serrano, comunicada no fim de outubro. O comando do banco era cobiçado pelo Centrão e entrou nas negociações com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, em troca de apoio no Congresso Nacional. Em seu lugar foi nomeado Carlos Antônio Vieira Fernandes, aliado de Lira. Rita Serrano estava desde janeiro no comando da Caixa.
Representatividade diminui no Supremo
Neste primeiro ano de mandato, Lula teve duas oportunidades para indicar mulheres para o Supremo Tribunal Federal (STF) e aumentar ou, pelo menos, preservar a representatividade feminina, mas em ambas as ocasiões optou por indicar homens. Em meio às expectativas para a vaga que seria aberta com a aposentadoria da ex-ministra Rosa Weber, que ocorreu no início de outubro, Lula disse, ainda em setembro, que a questão racial e de gênero não seria critério para a escolha.
Embora tenha sido pressionado pela sociedade civil e aliados a não diminuir a representação feminina no Supremo, o presidente Lula não cedeu aos apelos e indicou, no último mês, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino. No início do ano, após a aposentadoria do ex-ministro Ricardo Lewandowski, Lula indicou o ministro Cristiano Zanin, que atuou na defesa do petista no processo da Lava-Jato.
A escolha de não indicar uma mulher para o STF, especialmente uma mulher negra, foi alvo de críticas ao presidente Lula. Vale ressaltar que em seu primeiro mandato, em 2006, Lula contribuiu para a ampliação da representatividade feminina com a indicação de Cármen Lúcia. Lula, porém, escolheu a advogada mineira Edilene Lôbo como ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ela é a primeira mulher negra a ocupar o cargo.
“O critério não será mais esse. Eu estou muito tranquilo, por isso que eu tô dizendo que eu vou escolher uma pessoa que possa atender aos interesses e expectativas do Brasil. Uma pessoa que possa servir o Brasil. Uma pessoa que tenha respeito com a sociedade brasileira. Uma pessoa que vote adequadamente sem ficar votando pela imprensa”, disse Lula, em setembro. O anúncio da indicação de Flávio Dino só veio acontecer em 27 de novembro, quase dois meses depois da aposentadoria de Rosa Weber.
Com a possível aprovação do ministro da Justiça, a Corte passará a ter 10 ministros homens e uma única mulher, a ministra Cármen Lúcia. O cenário não poderá ser revertido até 2028, quando o ministro Luiz Fux se aposenta. Em toda a história do Supremo Tribunal Federal, apenas três mulheres passaram pela Corte. Rosa Weber, Cármen Lúcia e Ellen Gracie, que se aposentou em 2011. A aposentadoria de Cármen está prevista para 2029.
"Construção violenta de exclusão"
As cadeiras de ministros do Supremo foram ocupadas ao longo de 132 anos anos por 171 pessoas, destes, apenas três negros – todos homens. Há ainda divergências sobre o ministro Nunes Marques, que se autodeclara pardo. Se considerado o ministro Marques, com a aprovação de Dino, que também se declara pardo, ele seria o quinto ministro negro da Suprema Corte.
Para Etiene Martins, jornalista, pesquisadora das relações étnico-raciais e mestranda em relações raciais, a escolha do presidente Lula em indicar Flávio Dino é incoerente com suas promessas de palanque. “A atitude do presidente Lula ao não indicar uma mulher negra para o STF diz muito sobre a ideologia dominante que o espaço público pertence ao masculino branco. Acho incoerente com os discursos, com a subida da rampa ao tomar posse. Para votar as mulheres negras servem, para subir a rampa o corpo de uma mulher negra serve, mas quando pleiteamos um espaço nas tomadas de decisões somos inadequadas ao olhar dele e ele sai pela tangente, em silêncio fazendo de conta que não existimos”, afirma.
Ela destaca ainda que a maior parte da população brasileira é negra, sendo importante, em sua avaliação, incluir a diversidade nos processos de decisão. “Não é natural um STF branco. Um STF branco em um país que a maioria é negra é uma construção violenta de exclusão. Se usa como argumento o mérito e a capacitação dando a entender que pessoas negras não possuem tais atributos, o que é inverídico”, critica.
"Problemas históricos"
O Instituto Marielle Franco foi uma das entidades que divulgou críticas à não indicação de uma mulher negra ao STF pelo presidente Lula. Para a entidade, a escolha do presidente fere o compromisso de enfrentar problemas históricos. “A escolha de Flávio Dino para a vaga deixada por Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal revela a falta de compromisso do presidente em enfrentar problemas históricos, como o racismo e o sexismo que estruturam as instituições estatais”, comentou, por meio de nota.
Em carta aberta a Lula, o movimento Mulheres Negras Decidem também afirmou que a escolha do presidente “não cumpre com o compromisso no enfrentamento dos problemas históricos e urgentes do Brasil”. “Não há dúvidas que existam mulheres negras prontas e capacitadas para ocupar espaços de decisão. Nós, mulheres negras, estamos prontas e qualificadas para ocupar espaços de tomada de decisão”, afirmou o movimento.
Apesar de ter parabenizado o ministro Flávio Dino, a organização Coalizão Negra Por Direito também ressaltou, em nota, a relevância de indicar uma mulher negra. “Entendemos que a indicação de uma mulher negra é pauta inegociável, considerando a atual composição do STF (e do judiciário como um todo), além da importância de ter um supremo plural para julgar temas tão sensíveis e que afetam diretamente mulheres e população negra.”