Ao enfrentar não apenas limitações orçamentárias, dificuldades na oferta de serviços essenciais à população, assim como garantir o pagamento pontual dos funcionários públicos, água potável em todas as regiões, entre outros, prefeitas de Minas Gerais também encaram o desafio adicional de lidar com o machismo e a descredibilização dos seus trabalhos.
Este cenário se destaca, sobretudo, em municípios menores localizados no interior do estado. As mulheres que estão à frente de administrações municipais frequentemente se veem questionadas quanto às suas capacidades para gerenciar um município.
Apesar das barreiras enfrentadas por elas, as dificuldades inerentes à administração de uma cidade não desmotivam as prefeitas.
Minas Gerais conta, ao todo, com 63 mulheres ocupando cargos de prefeitas, conforme levantamento feito pela Associação Mineira de Municípios (AMM) a pedido do Estado de Minas. Em um estado composto por 853 municípios, a representatividade feminina não alcança sequer 8%.
A escassez de prefeitas em Minas Gerais reflete a sub-representação das mulheres na esfera política. A realidade no estado é um reflexo de todo o cenário nacional marcado por uma profunda disparidade de gênero em cargos públicos.
Frequentemente, diante de pressões, machismo e, em alguns casos, até mesmo ameaças, mulheres acabam por abrir mão de se envolver na vida pública.
O EM conversou com seis gestoras municipais de diferentes regiões do estado para falar sobre as dificuldades enfrentadas em seus mandatos. O machismo é uma característica comum entre os desafios enfrentados por elas.
Com pouco mais de 17 mil habitantes, a prefeita de Itacarambi, Nivea de Oliveira (PP), encara o desafio de ser a primeira prefeita da cidade do Norte de Minas.
Nivea, que se mudou para a cidade há 17 anos para atuar como médica, não tinha experiência em cargo público anteriormente, mas, ao ver as necessidades básicas da população, se sentiu motivada para atuar em prol do município. “O médico lida muito com as pessoas. Como eu atendia a zona rural e via dificuldades básicas, calçamento, iluminação, água tratada, eu vi a necessidade de tentar ajudar”, destaca.
Obstáculos rompidos
A prefeita, que é de Juiz de Fora, pontua que a cidade é uma região muito “carente” e que políticas públicas podem fazer muito pela população. Nivea está em seu segundo mandato e conta com orgulho alguns problemas estruturais resolvidos pela sua gestão, como o calçamento de quase toda a cidade, incluindo a zona rural, a distribuição de energia e água tratada para famílias que não tinham acesso, entre outros feitos.
Em sua trajetória política, Nivea aponta que mesmo com o machismo persistente na sociedade conseguiu “romper esse obstáculo” e conquistar o respeito da população. A prefeita também destaca o “olhar e a força” feminina para administrar uma cidade.
“Infelizmente a sociedade é machista, não adianta falar que não é, porque é. Existe uma certa resistência. Consegui a credibilidade da população e fiz acreditar na força feminina”.
Única prefeita atualmente de todo o Noroeste de Minas, Tânia Lepesqueur (MDB), de Uruana de Minas, está em seu terceiro mandato, sendo também a primeira mulher a assumir a gestão da cidade. A prefeita destaca sua devoção a área social, com vasta experiência no ramo da educação.
“A gente fala que político é porque gosta e eu realmente gosto muito de mexer com gente. Sou muito da área social. A mulher, ela faz um trabalho administrativo, um trabalho psicológico, um trabalho social diferenciado dos homens”.
Desafios no orçamento
Para Tânia, as mulheres são mais cuidadosas e até mesmo mais preocupadas com a questão financeira. “Peguei um município devendo muito neste mandato. Gastei um tempo acertando as dívidas até dar uma levantada financeira. Este está sendo o mandato mais difícil. O governo Bolsonaro mesmo com muitas qualidade não deu às prefeituras muito acesso, não tinha muito diálogo com os prefeitos, era muito radical”, comenta.
A prefeita conta que já percebeu certo “desprezo” e afirma que, às vezes, vem até mesmo de mulheres. “Oposição sempre bate muito e a gente não deixa de ver essa questão de desprezo, por exemplo, dizem: ‘Ah, aquela mulherzinha, não vamos bater nela, uma simples professora. Tem certo desprezo, mas eu, particularmente, nunca sofri nada em relação a isso. A gente fez uma pesquisa no nosso segundo mandato, em que eu tive mais votos masculinos do que femininos, que era o contrário do que eu pensei. Às vezes as próprias mulheres não votam nas mulheres”, afirma.
Para Tânia, de Uruana de Minas, as mulheres precisam persistir muito mais que os homens para conseguir seu espaço na sociedade. “Nós mulheres temos que afrontar muito porque eles acham que a gente é pouco resistente, acham que a gente é mais sensível. Tentam atingir a gente de toda forma emocional. A gente tem que trabalhar com a razão e deixar um pouco o coração porque se não a gente não consegue”.
“Para quebrar esse preconceito”
Prefeita de Bonito de Minas, cidade com cerca de 10 mil habitantes no Norte de Minas, Vânia Carneiro (Avante) diz que entrou para a vida pública para tentar “quebrar barreiras”. “Para quebrar esse preconceito de que mulher não consegue administrar, fazer gestão”, conta a chefe do Executivo. Vânia também comemora outro feito da cidade: o Legislativo composto por quase 50% de mulheres.
“Costumo falar que são 50% de mulheres no Legislativo, isso porque a nossa presidente da câmara é mulher. São nove vereadores, sendo quatro mulheres e cinco homens. O meu grupo político conseguiu eleger três mulheres”, diz, com entusiasmo.
A chefe do Executivo ressalta que as dificuldades dão a ela mais força para continuar lutando. Ela pontua que não é a realidade de todas as mulheres, mas acredita ser essencial encarar esse desafio para mudar esse cenário de machismo. “Percebo com as demais mulheres que às vezes dá vontade de desistir, mas no meu caso me motiva, porque se a gente não encarar isso, essa realidade não vai mudar. É enfrentar para mudar”, diz. “Já houve muitos avanços, apesar de tudo, toda dificuldade, houve muito avanço, mas os avanços são tímidos. Se não for essa garra, essa vontade de superação, a gente fica desanimada”, afirma.
Na mesma sintonia, Margarida Salomão (PT), prefeita de Juiz de Fora, na Zona da Mata, diz que não quer ser a “única mulher”, mas sim, a primeira de muitas. Ela conta como sofreu com o machismo já no início de seu mandato. “Assim que tomei posse, três meses depois já tinha pedido de impeachment. No primeiro semestre do meu mandato eu enfrentei quatro pedidos de impeachment na Câmara. Isso é sem precedentes. Não conheço homem nenhum que tenha sido prefeito de Juiz de Fora e que nos seus atos inaugurais tenha sofrido esse tipo de impedimento”.
Ela acredita que a atual polarização política do Brasil, associada a sua filiação ao Partido dos Trabalhos, corrobora para esses questionamentos da sua gestão. “Você sabe que a sociedade brasileira é muito polarizada e eu não sou só a primeira mulher eleita, mas também sou a primeira mandatária do PT em Juiz de Fora. Naturalmente uma coisa combina com a outra.”
Credibilidade no cargo
A prefeita diz que combate a descredibilização da sua gestão com trabalho. “Na medida em que você trabalha e apresenta resultados, você dá resposta à sociedade. Essa é na verdade a construção de credibilidade do ponto de vista político. É claro que isso requer um empenho muito grande. Quem é mulher, em qualquer posição, tem que trabalhar mais que qualquer homem na mesma posição, porque enfrenta uma desconfiança inicial, uma suposição de que a pessoa que está ali é mais fraca.”
Aos 74 anos, Elenice Delgado (PT), prefeita de Lima Duarte, também na Zona da Mata, sente orgulho de romper com o padrão de homens à frente das prefeituras. “Tive esse privilégio de ir contra toda uma estrutura machista, preconceituosa, de uma cidade de 142 anos”. Como professora de história, ressalta que conhece a cultura brasileira e o “enraizar” do preconceito.
Elenice é um dos exemplos, dentre várias outras mulheres, que foi desmotivada a entrar para a política. “Meu pai era um homem preconceituoso e não queria que eu entrasse na política. Ele falava que teve tantos filhos homens e questionava porque uma mulher ia entrar (para a política). Falava que eu não ia dar conta, que eu ia sofrer muito preconceito, mas eu sou aquela que não desiste dos sonhos. Sou resiliente.”
Olhares de julgamento
A prefeita conta que o machismo faz com que ela seja julgada por comportamentos que não seriam questionados se ela fosse um homem. “Se a noite eu estou em um lugar, as pessoas me olham diferente. Sou uma mulher que eu não dependo do meu marido para sair, então isso fica difícil, porque todo mundo coloca o homem como um escudo e eu sou o próprio escudo”.
Elenice também conta que já foi julgada por sua aparência. “Muitos velhos votaram em mim por ser mulher, mas muita gente jovem me olhava, principalmente as mulheres, e achavam que eu era uma adversária delas, medo do poder de uma outra mulher. Sofri preconceito até por deixar meu cabelo branco. Muita gente falou que não votava mais em mim porque eu não pintava o cabelo, porque eu não faço botox. São coisas que é preciso trabalhar para melhorar”, disse.
Jane Carla (PT), prefeita de Pavão, do Vale Jequitinhonha-Mucuri, conta que foi perseguida desde a campanha eleitoral. “Fui literalmente perseguida todos os dias, querendo tirar de mim o direito de fazer a campanha, que já era muito restrito naquele tempo, porque 2020 era o auge da COVID. Foi até muito difícil fazer a campanha, a gente não podia adentrar as casas. Ainda assim, quando saía, era perseguida por uma facção criminosa”, conta.
A prefeita relata que durante a sua campanha também foi questionada sobre a sua capacidade de administrar a cidade, em especial, se iria conseguir captar recursos para o município. “Era desacreditada muito no mundo político pela questão do gênero. É muito caro ser mulher na política. Isso é um fato”.
Jane diz que contornou a situação e ainda aponta que é uma referência à cidades vizinhas. “Tornei-me uma referência no Baixo Mucuri pela forma de fazer gestão, diferenciada. Eu tenho conhecimento do território, conheço as famílias, conheço os desafios e quais as alternativas. O que falaram de mim foi colocado a terra abaixo e a gente tá mostrando que é possível mulher administrar, e administrar muito bem”, afirma.
Desafios para conseguir recursos
Elenice Delgado (PT), de Lima Duarte, acredita que as mulheres têm um “olhar” diferenciado para os problemas da cidade. “Acho que nós mulheres precisamos estar a frente, porque só o olhar de uma mãe, de uma mulher, confere se uma água está boa na comunidade ou não, se os alunos têm condições de ter uma alimentação melhor, um material melhor. As mulheres têm esse potencial. Vejo muitas mulheres com sensibilidade e querendo fazer. Na administração o mais importante é a boa vontade, porque quando se tem a boa vontade, faz. Sinto uma criatividade muito forte vindo das mulheres”.
Por administrarem, em sua maioria, municípios menores, outra queixa apresentada pelas prefeitas é sobre a falta de recursos. Em sua maioria, as cidades pequenas sobrevivem com base no Fundo de Participação dos Municípios (FPM), o que muitas vezes se torna uma dificuldade para administrar a cidade.
“Tudo respinga do governo federal e estadual nos municípios. Municípios pequenos, como Itacarambi, que vivem em função do FPM praticamente, acabam sendo reflexo da situação dos governos. Agora a gente tá vendo uma época de queda de ICMS, queda de FPM, isso reflete também nos municípios. A gente tem que se adequar, fazer malabarismo para poder estar cumprindo com a folha de pagamento e tudo”, diz a prefeita Nivea de Oliveira (PP).
Por ser uma cidade pequena, ela alega que também é complicado atrair o investimento de grandes empresas. “A gente não tem grandes empresas em Itacarambi, tem uma empresa apenas, então a maior fonte de emprego é a prefeitura. Tentei ao máximo trazer empresas, mas é complicado quando você fala que não tem um acesso com asfalto, quando você não tem aeroporto”, pontua.
A prefeita também aponta que outra alternativa são as emendas parlamentares, que complementam os recursos da cidade. Em Uruana, Tânia diz que a redução de repasses afeta diretamente o município, o que faz a cidade ficar dependente das emendas parlamentares. “A gente sobrevive praticamente de emendas de deputados, se não a gente não faz investimento nenhum. A gente sobrevive de FPM. Nosso município é pequeno, sobrevive de agricultura familiar, e agora nós estamos passando por uma seca muito grande”, conta.
Parcerias em busca de verbas
Para driblar a falta de recursos, Vânia, de Bonito de Minas, diz que busca parcerias para a sua gestão. Ela aponta a dependência dos municípios ao FPM como um dos principais desafios do mandato. “Uma vez que os recursos são poucos a gente tem que buscar parcerias, principalmente esse ano com a queda da arrecadação, mas a gente tem conseguido administrar, estamos conseguindo finalizar o ano com muitos pontos positivos e com as contas equacionadas”.
“Não é fácil cidade pequena onde os únicos recursos que a gente tem são de transferências do governo. A gente tem que desdobrar para poder dar conta de honrar nosso compromisso e fazer algo, trabalhar em prol da população”, completa.
A situação é igual em Pavão. “Para mim hoje, os meus maiores desafios são os recursos financeiros, tendo em vista que eu venci todo aquele estigma que me era colocado de que mulher não conseguiria administrar bem o Executivo”, pontua Jane Carla.
Diversidade nas gestões
Indo na contramão da disparidade de gênero em cargos públicos, as prefeitas de Minas Gerais também defendem maior representatividade, não só nas prefeituras, mas em outros cargos públicos também. Em Bonito de Minas, Vânia Carneiro (Avante) trabalha com maior representatividade de mulheres no secretariado. Ela diz que a formação de sua equipe é alvo de críticas, mas pondera sua confiança no trabalho das mulheres.
“Setenta por cento do meu secretariado são mulheres. Só que a gente sofre muito preconceito mesmo. As mulheres trabalham muito, mas o comentário é o seguinte: 'Essa mulherada sua muitas vezes atrapalha a política'. É triste.”
Ela conta que vê a equipe feminina sendo descredibilizada mesmo com muito trabalho por trás e pondera sua confiança no trabalho e na organização das mulheres. “A equipe é muito boa, como um todo, e as mulheres não deixam a desejar. Tenho cargos que normalmente são administrados por homens, como Secretário de Planejamento, de Finanças, ocupado por mulheres”.
Para Margarida Salomão, o machismo é uma dificuldade estrutural da sociedade que precisa ser combatido com o fortalecimento da diversidade de gênero. Em Juiz de Fora, a prefeita estruturou o secretariado paritário – metade mulheres, metade homens. “Nós procuramos esse equilíbrio para fazer um enunciado público de que as mulheres podem ocupar posições estratégicas no governo de uma cidade” disse.
“A única forma de combater esse tipo de manifestação machista que busca a depreciação é haver mais mulheres nos espaços públicos. Acho que isso deve ser um objetivo que todas nós que já chegamos devemos cultivar, devemos nos empenhar nisso. Tenho uma satisfação muito grande que Juiz de Fora, na eleição do ano passado, elegeu duas deputadas federais, mulheres. Isso é uma coisa bacana e mostra uma evolução importante do voto da cidade”, completa.