Definições sobre o marco temporal, assunto que o Supremo considerou inconstitucional, mas que Congresso aprovou, deve aprofundar crise entre ministros e parlamentares
 -  (crédito: Carl de Souza/AFP – 24/4/23)

Definições sobre o marco temporal, assunto que o Supremo considerou inconstitucional, mas que Congresso aprovou, deve aprofundar crise entre ministros e parlamentares

crédito: Carl de Souza/AFP – 24/4/23

O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional se envolveram recentemente em confrontos acerca das atribuições para temas sensíveis para grupos minoritários, como o debate sobre o marco temporal, descriminalização do porte de maconha para uso pessoal e a proposta de descriminalização do aborto até as 12 semanas de gestação. Tudo isso somente no ano passado. De um lado, a Suprema Corte orienta as temáticas em torno dos direitos fundamentais, enquanto, por outro lado, o Congresso Nacional defende que tais debates devem ser tratados no âmbito legislativo.


O cenário cria um embate sobre as competências inerentes acerca das discussões promovidas pelo Supremo, provocando reflexões acerca da atividade entre o Judiciário e o Legislativo no contexto dessas temáticas. Para Thomas Bustamante, professor de filosofia e teoria do direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), embora esteja atribuído ao Congresso o poder de legislar em torno dessas temáticas, essas são questões que, de alguma maneira, envolvem premissas constitucionais, conferindo ao STF a competência para intervir.


Há também, segundo o jurista, uma avaliação de que as decisões da Corte preenchem uma lacuna, isto em razão da falta de atuação do Legislativo em torno de temas importantes para a sociedade. Ele esclarece que, se o Congresso vier a legislar sobre tais temas, como é o caso do marco temporal, cabe ao STF se posicionar sobre essas questões de acordo com as deliberações do poder Legislativo, isso em razão do princípio da presunção da legalidade.


“Tem uma tensão muito grande entre o STF e o Congresso. É natural que haja, tendo em vista, principalmente, o embate que houve no governo anterior. Houve quase uma incitação pública contra o Supremo Tribunal Federal por parte do governo. Isso criou uma grande resistência no Congresso”, contextualiza.

Em agosto, julgamento sobre descriminalização do porte de drogas para consumo próprio foi suspenso após 5 votos favoráveis

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Carlos Moura/SCO/STF – 24/8/23

Bustamante avalia que essa tensão pode ser atribuída a um cenário em que o conflito entre os Poderes perdura. “Qualquer coisa que vem de um ou de outro poder é tratado pelo outro como se fosse uma invasão da competência. Eu acho que está faltando uma reflexão adequada sobre qual é a legitimidade de cada um desses poderes.”

"Munição"


De acordo com o professor, temas como o marco temporal, a descriminalização do aborto e do porte de maconha para consumo pessoal são questionados pelos congressistas sem justificativas sólidas. No entanto, ele aponta que outras interferências do STF dão “munição” aos críticos do tribunal para questionarem as competências do Judiciário. Um exemplo citado é o do Inquérito das Fake News (4.781), instaurado pela Suprema Corte em março de 2019 para apurar a existência de divulgação de notícias falsas, declarações e ameaças contra os ministros, mas que, ao longo dos anos, tomou uma proporção maior.


“O inquérito das Fake News, a princípio, era algo temporário e emergencial e se transformou em uma competência eterna de tomar iniciativa sobre questões investigativas, que deveriam estar na competência da Polícia Federal e do Ministério Público, mas que, pela inércia e pelo mau funcionamento dessas instituições, acabou o Supremo interferindo. Mas ainda assim, depois que acabou a crise, depois que acabou o governo Bolsonaro, ele continuou. Isso gera um argumento procedente para os críticos ao Supremo Tribunal Federal”, observa.

Antes de se aposentar, a ministra Rosa Weber levou a plenário julgamento da ação sobre  discriminalizção do aborto nas 12 primeiras semanas, provocando a reação do Congresso

Antes de se aposentar, a ministra Rosa Weber levou a plenário julgamento da ação sobre discriminalizção do aborto nas 12 primeiras semanas, provocando a reação do Congresso

Nelson Jr./SCO/STF – 14/12/22

“Nem todos os argumentos, todas as críticas que vem do Legislativo são sem fundamentos, algumas delas são bastante razoáveis e muitos acadêmicos reconhecem a força dessas críticas. Por exemplo, essa PEC que limita os poderes. A reação de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal à imprensa, criticar e dizer que é inconstitucional, fazer críticas pessoais às pessoas que fizeram a PEC, é completamente fora do lugar. Do ponto de vista da ética institucional, a gente viu pronunciamentos desastrosos por parte dos ministros contra essas questões”, pontua.


Bustamante também menciona algumas ações do Supremo, como a suspensão de posse de ministros, e recorda o caso do então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2016, quando foi impedido de assumir o cargo de ministro da Casa Civil da então presidente Dilma Rousseff (PT). “Alguns anos atrás, a quantidade de liminar que tinha suspendendo a posse de ministros. A liminar do Gilmar Mendes suspendendo a posse de Lula como ministro. Isso tem um absurdo abalo no sistema político, isso altera o resultado de várias coisas”, opina.

Legitimidade das competências

No contexto desses debates, o jurista ressalta que o Legislativo sempre terá competência para legislar sobre as temáticas. No entanto, destaca a importância de manter coerência com os direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal. “O Legislativo tem competência da maneira como ele quiser. Agora, vai haver sim uma competência do Supremo para fiscalizar se essa legislação ultrapassou as prerrogativas definidas pela Constituição. Imagina que o Legislativo cria uma legislação com pena de 10 anos para o cara que está com a posse de um “baseado” no bolso. Obviamente isso vai ultrapassar todos os limites de razoabilidade, todas as diretrizes constitucionais sobre a proporcionalidade da pena em relação ao delito”, pontua.


Para o professor, é preciso distinguir preferências políticas e a interpretação do direito. “As pessoas, às vezes, tendem a achar que quando uma decisão desagrada ela é ilegítima. Quando você faz isso, você transforma tudo numa questão de preferências políticas, quando na verdade nada disso é uma questão de preferência política, isso é questão interpretação do direito. Questões que têm que ser tratadas como interpretação de direito, não só por quem está nas instituições, mas por quem está fora fazendo a crítica”.


Dentro dos poderes existem as funções atípicas. Em resumo, cabe ao Executivo a função de governar e administrar, mas há ocasiões em que esse poder assume a função de legislar, como ocorre, por exemplo, ao editar um decreto. Da mesma forma, o Congresso pode assumir a posição de julgar alguém como no caso de um processo de impeachment ou uma denúncia na Comissão de Ética por quebra de decoro parlamentar.


No âmbito judiciário, funções consideradas atípicas incluem as de natureza legislativa, como a elaboração de normas regimentais. Além dos atos administrativos, nos quais o judiciário gerencia os direitos de seus magistrados. O jurista enfatiza que, embora essas competências existam, é crucial exercê-las com responsabilidade.


“Quando o legislativo exerce uma função atípicas, como por exemplo, julgar um processo na Comissão de Ética contra um outro membro do parlamento isso tem que ser decidido de uma maneira responsável, ainda que não haja controle judicial, aquilo ali vai ser um ato de aplicação do direito e se isso não for julgado de maneira minimamente responsável isso vai colocar em xeque a legitimidade. As funções atípicas não te dão carta branca, ainda que aquilo tenha eficácia, que seja válido”.

Aborto


Como seu último ato no STF, a ex-ministra Rosa Weber, então presidente do Supremo, pautou e votou pela descriminalização do aborto nas primeiras 12 semanas de gestação. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 foi vista pela ala mais conservadora como algo inaceitável. Em reação ao julgamento, senadores da oposição apresentaram uma proposta para que um plebiscito (consulta popular) sobre aborto seja feito. No momento, o julgamento pelo STF está suspenso.

Drogas


Em tramitação no Senado, a PEC 45/2024, de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), criminaliza o porte ou posse de qualquer quantidade de droga. A proposta está pronta para ir a plenário, mas um pedido de vista foi concedido em novembro. Simultaneamente, os ministros do STF julgam a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que trata sobre o porte de drogas para consumo. O julgamento já tem cinco votos contra um pela descriminalização do porte de pequenas quantidades.

Marco temporal 


No STF, a proposta foi considerada inconstitucional. Os ministros argumentaram que a data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988, não deveria ser o critério para determinar a ocupação tradicional de terras indígenas. Em contrapartida o Congresso aprovou o marco temporal estabelecendo diretrizes para a demarcação de terras indígenas e conferindo aos grupos indígenas a demarcação dos territórios que já eram tradicionalmente ocupados pelo grupo na data definida. Lula vetou trecho do PL que estabelecia a data da promulgação da Constituição como marco temporal para a demarcação de terras indígenas. O veto foi derrubado pelo Congresso.

Homofobia 


Em 2023, o STF equiparou ofensas contra pessoas LGBTQIAPN+ ao crime de injúria racial. Anteriormente, em 2019, a Corte já havia classificado condutas homofóbicas e transfóbicas ao crime de racismo. À época, o Supremo argumentou que o Congresso estava inconstitucionalmente omisso por não editar uma lei que criminalizasse atos de homofobia e de transfobia. A medida seria válida até que o Congresso aprovasse uma lei específica sobre o caso. No entanto, até hoje, o tema não avançou no âmbito Legislativo.

União homoafetiva

Desde 2011, o Supremo Tribunal Federal reconhece a união entre casais do mesmo sexo, estabelecendo a união homoafetiva como um núcleo familiar. No ano passado, os deputados também voltaram a discutir o Projeto de Lei 5167/2009, que inclui no Código Civil a proibição de união homoafetiva.


O texto foi aprovado em outubro pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados, mas ainda precisa ser analisado nas comissões de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial, e de Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ).Se for aprovado, o projeto seguirá para o Senado.