A Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) e o Conselho Nacional dos Secretários de Estado da Justiça, Cidadania, Direitos Humanos e Administração Penitenciária (Consej) são contra o fim das saídas temporárias de presos. As duas entidades, que respondem pela administração do sistema penitenciário no Brasil – país com uma das maiores populações carcerárias do mundo – defendem a permanência das saídas temporárias, com mudanças na Lei de Execução Penal (LEP) para estabelecimento de critérios mais objetivos para que o apenado obtenha esse benefício.

O Brasil tem 839.672 pessoas privadas de liberdade atualmente, a maioria delas negros (68,2%) e jovens entre os 18 e os 29 anos (43,1%), segundo dados do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional. O Consej está elaborando uma nota técnica sobre o caso para discuti-la, ainda em fevereiro, com a Senappen e com o Congresso Nacional onde tramitam dois projetos, um no Senado e outro na Câmara, colocando fim às saídas temporárias de todos os condenados, independentemente do crime cometido e do tempo de pena já cumprido.

De acordo com Marcus Rito, presidente do Consej, secretário de Justiça de Rondônia e responsável pela administração do sistema prisional no estado, do universo de milhares de presos no Brasil, somente 4% não retornam para as unidades prisionais após as saídas temporárias e o indulto de natal. “Pedimos ao Congresso Nacional um prazo para que o Consej possa se reunir agora em fevereiro e elaborar uma nota técnica sobre o caso. Queremos ser ouvidos”, defende Rito, que há 20 anos atua no sistema prisional, com especialização nessa área.

Números da população carcerária no Brasil

  • 649.592
    número de pessoas presas em celas físicas no Brasil
  • 190.080
    total de pessoas em regime de prisão domiciliar
  • 120.244
    registros de saídas temporárias (o mesmo detento pode obter até sete registros)
  • 48.692
    detentos cumprem pena em regime semiaberto
  • 14.900
    detentos cumprem pena em regime aberto
  • 92.894
    condenados com tornozeleira eletrônica
  • 95,75%
    dos presos são do gênero masculino
  • 41,10%
    dos presos têm entre 18 e 29 anos

 

Segundo ele, hoje “o preso está contido, mas amanhã ele vai estar contigo na rua”. “E aí? Imagina uma pessoa presa há 20 anos, sem nunca ter saído para trabalhar e estudar, sem rever a família. Com ele vai se reintegrar à sociedade”, questiona. Rito lembra que no Brasil o cumprimento da pena é em sistema de regime de progressão e que todos os presos, se tiverem bom comportamento, terão direito em algum momento da pena de sair da penitenciária para cumprir parte da pena fora da prisão. Para que ninguém saia, afirma, seria necessário acabar com o regime semiaberto. “O que não seria bom. Essa discussão tem que ser técnica e não no calor do acontecimento, sob pressão da opinião pública”.

A Lei de Execução Penal diz hoje que tem direito a saída temporária somente presos em regime semiaberto que tenham bom comportamento e já tenham cumprido 1/6 da pena, em caso de réu primário, ou 1/4 se forem reincidentes. A autorização é dada pela Justiça após manifestação do Ministério Público. Os condenados por crime hediondo que resultem em morte não têm direito a essas saídas.

Assassinato em Belo Horizonte

A discussão sobre o fim do regime temporário ganhou os holofotes nacionais em função do assassinato de um policial militar, em Belo Horizonte, por um preso que gozava do benefício da saidinha como é popularmente chamada essa concessão da LEP. O sargento Roger Dias da Cunha, 29 anos, foi baleado com um tiro na cabeça no dia 5 deste mês e faleceu quatro dias depois. O suspeito do crime é Welbert de Souza Fagundes, de 25 anos, condenado por roubo e falsificação ideológica.

Ele obteve o direito à saidinha no fim do ano, mas não retornou para a unidade prisional e era considerado foragido desde o dia 23. Na época da sua soltura, o Ministério Público se manifestou contrário ao benefício, sob o argumento de que ele teria histórico de indisciplina e um passado de furto de veículo durante o regime semiaberto em julho de 2023, além de não demonstrar autodisciplina nem senso de responsabilidade.



Mas a juíza da Vara de Execuções Penais de Ribeirão das Neves, Bárbara Isadora Santos Sebe Nardy, autorizou o regime semiaberto e, consequentemente, as saídas temporárias que nada mais são do que o direito do preso que já pratica atividades externas poder dormir em casa em vez de retornar para a prisão.

Para Rafael Velasco, diretor da Senappen, as saídas temporárias têm por objetivo a ressocialização do preso e não devem ser suspensas, mas aprimoradas para que não aconteçam casos como o do assassinato do sargento Dias, prefeitamente possíveis, segundo ele, de serem evitados com um controle maior sobre a concessão desse benefício. Em sua avaliação, os critérios para essa saída, prevista na legislação de diversos países do mundo, são muito vagos.

“Esse benefício segue a lógica da reintegração social do preso e não deve ser cancelado. O que precisa ser feito é um aprimoramento para que se possa ter uma melhoria no processo de ressocialização e integração do preso e que seja possível evitar este evento que ocorreu do homicídio do sargento Dias, em Minas Gerais, que poderia ter sido evitado se os critérios fossem mais claros”, defende.

Decisão colegiada

Entre as mudanças, Velasco sugere que, além do Ministério Público, também seja ouvida a administração penitenciária e os serviços de inteligência das polícias, e que, caso alguma dessas entidades opine pela não saída do preso, mas a Vara de Execuções Penais autorize, ela seja submetida a uma decisão colegiada da Justiça e não seja concedida monocraticamente, como aconteceu em Minas Gerais, no caso do preso suspeito de matar o policial.

Velasco, que é especializado em gestão pública prisional e já atuou no sistema penitenciário de Minas Gerais e do Maranhão, também defende que seja feita uma classificação do preso para que seja traçado seu perfil para que as autoridades possam avaliar melhor a possibilidade de progressão para o semiaberto e o direito à saída temporária. “A saída de líderes de facção criminosa quando se encontram no período em que poderiam vir a receber esse tipo de benefício pode, por exemplo, ser negada”, defende.

Segundo ele, endurecer o regime prisional não vai resolver o problema da insegurança e do sistema prisional, que já é grave. “A gente piorar isso, mas não me parece o remédio adequado,. Precisamos é aprimorar a classificação das pessoas dentro do sistema prisional”, afirma. Para ele, há um clamor nas redes socias por essa medida, mas ela tem de ter lastro em dados técnicos e não em buscas por likes. “A lei precisa sim ser aprimorada, mas não é é é jogando o carro fora que se troca as rodas”.

Discussão no Senado

O senador Sérgio Moro (União-PR), integrante da Comissão de Segurança Pública do Senado (CSP), onde tramita um dos dois projetos que pedem o fim da saída temporária, também é contrário à extinção do benefício. O fim das saídas já obteve o aval do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), relator do projeto na CSP. O ex-juiz federal tenta convencer Flávio Bolsonaro e seus colegas a mudar o posicionamento e permitir a saída temporária para os presos que trabalham e estudam e proibir que elas sejam concedidas em datas festivas, como Natal e Dia das Mães.

 

No Brasil, quase 650 mil pessoas estão atualmente presas em celas físicas

Marcelo Camargo/Agência Brasil – 16/10/18

“No Senado, há esforço conjunto para aprovar rapidamente o PL com pequenas alterações. Ainda estamos discutindo, mas a ideia é preservar a saída para trabalho ou estudo dos presos do semiaberto, já que são atividades que promovem a ressocialização, e eliminar as saidinhas em feriados que têm gerado fugas de parte dos presos e novos crimes. O consenso é importante para que consigamos aprovar o PL. Todos, inclusive o senador Flávio Bolsonaro, participam da discussão. A morte do PM Roger Dias foi uma tragédia e o objetivo do PL é exatamente o de prevenir situações como essa, na qual um preso perigoso é colocado na rua sem qualquer causa que justifique a medida. A lei penal tem que ser mais dura, do contrário veremos o avanço da criminalidade e das gangues”, defendeu o senador.

Movimento Desencarcera

Luan Cândido, de 43 anos, um dos articuladores do movimento Desencarcera, que luta para a implantação de penas alternativas e pelo fim das prisões, afirma que essa classificação mais rigorosa defendida pela Senappen e Consej pode acabar inviabilizando as saídas temporárias, chamadas pelas pessoas privadas de liberdade de “descida”. Egresso do sistema prisional, Luan afirma que a classificação do preso atual para que ele possa estudar e trabalhar é praticamente inexistente, por exemplo, dentro do sistema prisional mineiro, pois não existe profissional suficiente para isso.

Ele mesmo conta que só conseguiu progredir de regime, após escrever uma carta ao então ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, quando ele presidia o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) expondo sua situação. “As ‘descidas’ são muito importantes para restabelecermos o vínculo com a família e com a sociedade”, defende Luan, que durante o semiaberto arrumou um emprego, se formou na faculdade, se curou do vício, reatou laços sociais e hoje trabalha em um escritório de advocacia.

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