Bolsonaro terminou por transferir poderes para o Congresso, especialmente na execução do orçamento -  (crédito: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados)

Bolsonaro terminou por transferir poderes para o Congresso, especialmente na execução do orçamento

crédito: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Sérgio Abranches

O modelo político brasileiro não acabou. Continuamos com a forma presidencial de governo, com o sistema multipartidário fragmentado e a federação, com configurações partidárias diferentes da nacional. No presidencialismo, o presidente é o chefe de estado e de governo. No nosso modelo, precisa formar uma coalizão majoritária para governar. O processo político-eleitoral recente produziu anomalias que enfraquecem o presidencialismo, mas não o extinguem.


O esvaziamento dos partidos tradicionais, pelo desgaste de antigas lideranças, mergulhou-os em profunda anemia de votos, provocando um realinhamento a favor de partidos do chamado centrão. Destituídos de políticos de relevância nacional, apostam no atendimento de clientelas e grupos de interesse abastados, fazendo uma política despolitizada. Uma política de serviços e não de programas públicos.

 

 

Os partidos tradicionais de centro e centro-direita faziam um híbrido de política e serviço. A diminuição das bancadas tradicionais por perda de competitividade eleitoral do MDB, PFL/DEM, PSDB, e da esquerda, até mesmo do PT, abriu espaço para o centrão. Não por acaso, o PL, tocado pela onda bolsonarista fez a maior bancada em 2022. Ficou próximo das bancadas que antes faziam MDB, PFL, PSDB e PT. Sua fixação clientelista casou perfeitamente com a demagogia de Bolsonaro.


Com a rearrumação das cadeiras na Câmara, pela via do troca-troca partidário, algumas das bancadas aumentaram, mas ao custo de se tornarem ainda menos coesas. O centrão jamais será pivô de coalizões viáveis. Não é esta a política que faz. O partido-pivô ajuda o governo a articular e mobilizar a coalizão. FHC teve PSDB e PFL, como pivôs.

Lula, o PT e o MDB. O centrão é um aglomerado de partidos rentistas e nada mais. Vive da captura de recursos públicos orçamentários e de poder localizado. Bancadas menores facilitam seu controle da maioria. O governo não tem condições de formar uma coalizão majoritária e minimamente fiel neste quadro de fragmentação e super-representação do centrão. Pode parecer contraditório, a fragmentação eleitoral diminuiu, mas quase todos os partidos perderam cadeiras nas eleições.


Outra anomalia resultou da eleição em 2018 de um governo disfuncional. Tomou posse um presidente politicamente limitado, indesejoso de governar com uma coalizão. Forçado a fazê-lo, mostrou-se incapaz de operar a coalizão majoritária que o apoiou. Bolsonaro terminou por transferir poderes para o Congresso, especialmente na execução do orçamento.

Criou o famigerado orçamento secreto, diretamente manejado pelos presidentes das duas Casas do Congresso e alguns poucos parlamentares, sem transparência e sem controle. O presidente da Câmara controlou a maior fatia. O Supremo Tribunal Federal considerou a prática inconstitucional. O Congresso criou um novo sistema de emendas, que aumentou muito seu poder de execução direta do orçamento, uma prerrogativa exclusiva do Executivo no presidencialismo.


Vivemos uma situação anômala de dominância legislativa do orçamento, que desorganiza o sistema de políticas públicas, interfere na capacidade de investimento do presidente e aumenta a desigualdade federativa. Essas distorções prejudicam a governabilidade e produzem um processo disfuncional de formulação e execução de políticas públicas. Perde a sociedade.


O controle da maioria pelo centrão e a dominância do Legislativo sobre grande fatia do orçamento disponível para uso discricionário do Executivo impedem a formação de coalizões mais coesas e coerentes. Retiram do presidente ferramentas indispensáveis ao gerenciamento de uma coalizão majoritária minimamente coesa. A reduzida a capacidade presidencial de manejar o orçamento dificulta o financiamento de novas políticas e investimentos e o impede até de satisfazer os partidos que sustentam seu governo, para assegurar a maioria no Congresso.


Boa parte da desarrumação política que vivemos se deveu à inapetência de Bolsonaro pela política. Seu interesse era por uma agenda minúscula de valores comportamentais. Seu descompromisso com a democracia foi revelado por inteiro na vasta rede de conspiração para um golpe que buscava impedir ou anular a eleição de 2022.

Isto explica o desprezo presidencial por políticas públicas e sua recusa em adotar ações de estado na grave emergência da pandemia. Explica, também, sua despreocupação com as distorções originadas pela dominância legislativa do orçamento e falta de transparência na gestão dos recursos públicos.

O cientista político Sérgio Abranches escreve quinzenalmente às segundas-feiras