Na semana em que o Brasil sedia a primeira reunião de chanceleres do Grupo dos Vinte (G20) sob sua presidência, a atenção gerada pela controvérsia entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Israel ameaça ofuscar um momento importante para a agenda global brasileira.
O governo israelense declarou Lula como "persona non grata" após o presidente brasileiro ter feito um paralelo entre o Holocausto e os ataques de Israel a Gaza, em entrevista coletiva no fim de semana em Adis Abeba, na Etiópia, onde participava de reunião da União Africana.
Em resposta, Lula convocou seu embaixador em Tel Aviv para consultas, medida usada na diplomacia para manifestar reprovação às ações de um governo.
O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, também convocou o embaixador israelense ao Palácio Itamaraty, no Rio de Janeiro, onde se encontra para a reunião do G20.
Essas reações ganharam destaque na imprensa internacional, em um dos momentos mais estratégicos deste ano para o governo brasileiro.
Esta é a primeira vez que o Brasil ocupa a presidência rotativa do G20, grupo que reúne as 19 maiores economias do mundo, além da União Europeia e da União Africana.
O encontro desta quarta e quinta-feira (21/2 e 22/2), na Marina da Glória, reúne os chefes da diplomacia do grupo, entre eles o Secretário de Estado americano, Antony Blinken, em sua primeira visita ao Brasil, e o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov.
Os ministros vão discutir os pontos que estarão na agenda oficial da Cúpula de Líderes do G20, marcada para 18 e 19 de novembro, também no Rio de Janeiro.
Com a presença dos chefes de governo e Estado, a reunião da cúpula é considerada o principal evento diplomático do Brasil em 2024.
"O fato de o Brasil sediar não só a cúpula, em novembro, mas as reuniões preparatórias ao longo do ano, é uma oportunidade excelente para o presidente Lula relançar o Brasil como um país de liderança global, de destaque internacional", diz à BBC News Brasil o cientista político Maurício Santoro, colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha do Brasil.
"Depois de alguns anos de ostracismo, dos conflitos do governo Bolsonaro, o Brasil estaria de volta agora a um papel mais ativo na agenda internacional", ressalta Santoro.
No entanto, a controvérsia com Israel pode roubar a atenção das prioridades da presidência brasileira do G20, que incluem reformas na governança internacional, a inclusão de países africanos no grupo, o combate à fome e às mudanças climáticas e o "protecionismo verde", termo que descreve o uso da agenda da sustentabilidade por certos países para promover interesses protecionistas.
"Já afetou negativamente outras agendas globais do governo", avalia Santoro.
"As declarações foram dadas durante a viagem do presidente à África, uma viagem importante também para esse relançamento da política externa africana do Brasil, de trazer a União Africana para o G20."
"Esses deveriam ter sido os grandes temas em discussão", afirma Santoro. "Mas o presidente cometeu um erro ao transformar essa viagem no centro de uma controvérsia sobre Israel, Gaza e o Holocausto", opina.
O analista Carlos Gustavo Poggio, especialista em relações Brasil-EUA e professor de Relações Internacionais do Berea College, no Estado americano do Kentucky, ressalta que a presidência do G20 tem uma importância simbólica e representa um palco relevante para o Brasil.
"No longo prazo, não creio que (a presidência) deve ter muita repercussão. Mas certamente é um momento importante, inclusive para trazer dividendos doméstico para Lula, para se apresentar como líder", diz Poggio à BBC News Brasil.
Gaza
As guerras entre Israel e Hamas e entre a Rússia e a Ucrânia devem ser discutidas pelos ministros no encontro desta semana.
Esses conflitos também estiveram na agenda da reunião de Lula com o secretário de Estado americano, nesta quarta-feira, em Brasília.
Em nota divulgada após o encontro, o Palácio do Planalto afirmou que "o secretário agradeceu a atuação do Brasil pelo diálogo entre Venezuela e a Guiana. O presidente Lula reafirmou seu desejo pela paz e fim dos conflitos na Ucrânia e na Faixa de Gaza. Ambos concordaram com a necessidade de criação de um Estado Palestino".
Segundo Poggio, as declarações de Lula "têm uma repercussão doméstica bastante forte, e uma repercussão internacional importante".
No entanto, o analista lembra que, mesmo entre os países do G20, "a condenação ao que Lula disse não é unânime".
"Há países (no G20) que têm adotado postura bastante antagônica com Israel, como a África do Sul", salienta Poggio.
Israel não faz parte do G20, mas membros do grupo estão entre seus aliados, como Estados Unidos, França, Reino Unido e Alemanha. Até o momento, porém, não houve reação oficial de outros governos, além de Israel, às declarações de Lula.
O conflito em Gaza foi iniciado depois que o Hamas atacou Israel em 7 de outubro do ano passado. Segundo o governo de Israel, o ataque deixou mais de 1,2 mil israelenses mortos, e cerca de 240 foram levados como reféns.
A retaliação israelense já deixou mais de 29 mil palestinos mortos, e mais de 1 milhão de pessoas foram obrigadas a deixar suas casas, segundo as autoridades de Gaza.
Lula condenou o ataque do Hamas a Israel. Também buscou cessar-fogo, mas as propostas foram vetadas pelos Estados Unidos no Conselho de Segurança da ONU.
À medida que a violência aumentou, porém, o presidente brasileiro endureceu suas críticas à retaliação israelense. No mês passado, o Brasil se uniu a uma iniciativa da África do Sul para denunciar Israel por genocídio junto à Corte Internacional de Justiça.
No encontro na Etiópia, Lula manifestou preocupação com a crise humanitária e disse que países ricos deveriam aumentar a ajuda a Gaza.
"O que está acontecendo na Faixa Gaza e com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu: quando Hitler resolveu matar os judeus", disse o presidente, em entrevista a jornalistas.
O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, disse que, com a comparação, Lula "desrespeitou a memória de 6 milhões de judeus mortos pelos nazistas" e agiu como "antissemita".
Para Santoro, a atual controvérsia reflete um "lado mais estrutural dos problemas que o presidente Lula tem enfrentado no seu novo mandato". Santoro afirma que há uma divisão grande na política global entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
"E as duas grandes linhas de fissura são exatamente a guerra na Ucrânia e a Guerra em Gaza", observa.
"O Brasil optou por posições muito alinhadas ao Sul Global, em defender uma agenda muito voltada para os países em desenvolvimento e muitas vezes entrando em conflitos com Estados Unidos, União Europeia, Japão."
Santoro considera esses conflitos muitas vezes "gratuitos". "Não envolvem efetivamente algum grande interesse nacional brasileiro", diz.
Ele cita como exemplo falas de Lula dizendo que o presidente russo, Vladimir Putin, seria bem-vindo no Brasil apesar de haver uma ordem de prisão internacional contra ele.
"Há um ruído entre o que são as posições trabalhadas pelos diplomatas profissionais do Brasil, pelo que são, por exemplo, os votos brasileiros na ONU, e o que são as declarações individuais do presidente Lula", afirma.
Santoro salienta que o Brasil vem tendo posições muito consistentes, ao criticar tanto o governo de Israel quanto condenar os atentados do Hamas, ainda que tenha optado por não classificar o Hamas como um grupo terrorista, seguindo a falta de consenso na ONU sobre o tema.
"São posições muito mais moderadas, muito mais cuidadosas, do que aquelas que o presidente Lula tem expressado em suas declarações mais de improviso."