Presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes seria um alvo importante da suposta trama golpista articulada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de acordo com a Polícia Federal (PF).

Segundo as investigações, os suspeitos teriam preparado uma minuta de golpe prevendo a prisão de Moraes e teriam também monitorados seus deslocamentos.

As supostas intenções criminosas contra o ministro levantam questionamentos sobre se haveria algum impedimento para que Moraes permaneça como juiz do caso.

Na quinta-feira (8/1), uma operação autorizada pelo ministro atingiu Bolsonaro e ex-integrantes do seu governo, levando à apreensão do passaporte do ex-presidente.

Na quarta-feira (14/1), a defesa do ex-presidente pediu ao presidente do STF, Luis Roberto Barroso que Moraes seja considerado impedido no caso e que todas as suas decisões sejam anuladas. A Corte ainda não respondeu ao pedido.

Juristas ouvidos pela BBC News Brasil se dividem. Para alguns, o fato de Moraes estar na mira da suposta organização criminosa minaria sua imparcialidade para tomar decisões no caso.

Já outros ponderam que a "vítima" dos crimes em investigação não seria o ministro, mas, sim, o Estado Democrático de Direito. Dessa forma, Moraes não seria considerado juridicamente uma parte direta interessada no caso.

Enquanto a discussão sobre impedimento divide opiniões, os juristas ouvidos concordam na crítica à decisão de Moraes de restringir a comunicação entre os advogados dos investigados.

Na decisão que autorizou a operação Tempus Veritatis (hora da verdade, na tradução do latim) contra Bolsonaro e ex-integrantes do seu governo, o ministro proibiu os investigados de se comunicarem, "inclusive por meio de seus advogados".

Segundo Moraes, a medida seria "necessária para garantia da regular colheita de provas durante a investigação, sem que haja interferência no processo investigativo por parte dos mencionados investigados, como já determinei em inúmeras investigações semelhantes".

Para os juristas entrevistados, porém, a decisão é inconstitucional e fere o direito à ampla defesa.

"Advogados ficarem proibidos de falar é um absurdo completo, inclusive porque advogados tm direito de combinar estratégias de defesas", afirma o professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal Fluminense (UFF) João Pedro Pádua.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) apresentou uma petição na sexta-feira (9/2) ao STF solicitando que a proibição seja revertida.

"A ampla defesa não se faz presente quando desrespeitada e limitada a comunicação entre advogados e investigados, sendo inadmissível num Estado Democrático de Direito que garantias não sejam observadas em nome de uma maior eficácia de coerção e repressão", diz a OAB na petição.



'Não existe impedimento', diz STF

Questionado por meio da assessoria do STF, Moraes não quis comentar as críticas sobre as restrições impostas aos advogados.

Já quanto ao questionamento sobre sua imparcialidade para julgar o caso, a assessoria da Corte enviou uma manifestação negando qualquer motivo para impedimento ou suspeição do ministro.

"O CPP (Código de Processo Penal) afasta qualquer suspeição ou impedimento quando as ameaças ou coações são feitas ao juiz que já conduz o inquérito ou processo. O ministro Alexandre de Moraes seguirá relator de todas as investigações e processos relacionados ao dia 8/1", diz a manifestação, em referência aos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, quando bolsonaristas radicais invadiram e depredaram as sedes dos três poderes.

A manifestação ressalta ainda que o suposto impedimento do ministro "já foi apontado ao longo das investigações relacionadas à operação desta quinta-feira por diversos suspeitos ou réus e afastado pelo Plenário do STF".

Especialistas em Direito ouvidos pela BBC News Brasil questionam o argumento levantado pelo Supremo.

Para a advogada criminalista Marina Coelho, conselheira do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), a regra do CPP citada na manifestação do STF não se aplica para afastar o impedimento de Moraes porque ela trata de ameaças feitas contra juízes quando o inquérito ou processo já foram iniciados.

O artigo 256 do CPP diz que "a suspeição não poderá ser declarada nem reconhecida, quando a parte injuriar o juiz ou de propósito der motivo para criá-la".

Essa regra busca impedir que um réu ou investigado tente propositalmente afastar o magistrado da causa.

Já no caso da investigação da suposta tentativa de golpe, as ações dos suspeitos contra Moraes, como monitoramento e plano para prendê-lo, teriam ocorrido antes da investigação sobre um suposto golpe de Estado começar.

"Na nossa regra de processo penal, o juiz que é vítima e que tem interesse direto na causa não pode julgar porque ele perde a imparcialidade. Pelo que li na decisão do ministro Alexandre, ele está envolvido diretamente nessas questões como uma vítima", avalia.

"Porque as ações (investigadas) foram (um possível golpe) contra a Democracia, mas ele, como parte da Democracia exercida, foi diretamente colocado como uma pessoa que deveria ser tirada do circuito. Então, isso me leva a entender que ele estaria, nesse caso, em uma situação que fragilizaria a imparcialidade necessária para um juízo", disse ainda.

Para Coelho, o argumento usado pela manifestação do STF de que as ameaças teriam sido feitas já no curso do inquérito tem como pano de fundo uma controvérsia mais antiga sobre a atuação do ministro: os sucessivos desdobramentos de inquéritos que geram novas investigações que são mantidas no gabinete de Moraes, sob o argumento de que haveria conexão entre os crimes investigados.

A decisão que autorizou a operação Tempus Veritatis se insere no inquérito 4874, das Milícias Digitais, aberto em julho de 2021 para investigar a existência de organização criminosa voltada a atentar contra a Democracia e o Estado de Direito no país.

Outra investigação, aberta em 2023 para apurar falsificações em cartões de vacinação de Bolsonaro e aliados, por exemplo, foi mantida no gabinete de Moraes com o argumento de que o caso teria ligação com o inquérito das Milícias Digitais.

Para sustentar isso, a Polícia Federal argumentou, na ocasião, que "seja nas redes sociais, seja na realização de inserções de dados falsos de vacinação contra a covid-19, ou no planejamento de um golpe de Estado, o elemento que une seus integrantes está sempre presente, qual seja, a atuação no sentido de proteger e garantir a permanência no poder das pessoas que representam a ideologia professada".

O professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal Fluminense (UFF) João Pedro Pádua também questiona esses sucessivos desdobramentos de uma mesma investigação e avalia que isso não é suficiente para afastar a hipótese de impedimento de Moraes.

"O inquérito 4874 realmente já está instaurado há muito tempo. Só que ele é um inquérito que investiga de tudo. Foram sendo inseridas várias outras investigações de atos posteriores, incluindo agora os atos de suposta preparação para um golpe de Estado no final de 2022", nota Pádua.

"A destituição do ministro Alexandre de Moraes (supostamente planejada pelos investigados) seria parte dessas atividades de golpistas, então não pode ter sido feita no curso da investigação delas mesmas", acrescenta.

Na avaliação de Pádua, a concentração de inquéritos no gabinete de Moares tem sido referendada pela maioria do STF porque a Corte entendeu que isso seria necessário para a proteção da Democracia brasileira. Na sua leitura, porém, o resultado pode ser o inverso, na medida que gera questionamentos sobre a imparcialidade do Supremo.

"E eu acho que em uma Democracia frágil como a do Brasil, com vários golpes de Estado em sua história, qualquer conjunto de decisões que enfraqueça a autoridade simbólica de um órgão é um conjunto de decisões muito perigosas", crítica.

Carlos Moura/STF
Plenário do STF sofreu graves danos nos ataques de 8 de janeiro

'Questão complexa' deve ser levada ao plenário do STF

O juiz e professor de processo penal da USP Guilherme Madeira considera que o possível impedimento de Moraes no caso é uma questão complexa que terá que ser decidida pelo plenário do STF, já que é esperado que a defesa de um dos investigados questione a imparcialidade do ministro.

Na sua avaliação, como a investigação apura crimes contra o Estado Democrático de Direito, e não especificamente contra Moraes, "não seria acurado dizer que o ministro Alexandre é vítima e julgador".

Além disso, Madeira considera que tornar Moraes impedido nessa investigação poderia servir de estímulo para mais ataques aos ministros da Corte.

"Se a gente olhar para Constituição de 1988 e para a legislação que veio na sequência, ninguém imaginou uma situação como essa (de ameaças a ministros do STF)", ressalta.

"Então, nós temos aí um certo vácuo do que fazer nessa situação: afastamos os ministros que eventualmente possam ter sido ameaçados e, com isso, nós induzimos as pessoas que façam isso contra os demais ministros, o que não me parece adequado, ou nós vamos permitir que essas pessoas sejam julgadas pelos próprios ministros?", questiona.

A professora de direito constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Estefânia Barboza ressalta que Moraes não é único ministro do STF citado como alvo dos investigados, já que os suspeitos teriam cogitado também a prisão de Gilmar Mendes e colocado Luís Roberto Barroso e Edson Fachin como seus inimigos, segundo a Polícia Federal.

Isso, avalia, torna ainda mais complexa a ideia de considerar os ministros impedidos.

"Como você afasta quatro ministros da Suprema Corte (do caso)? Um futuro julgamento desse caso vai ser colegiado. Seriam quatro ministros que não só não poderiam relatar, mas não poderiam julgar", nota a professora.

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