Os ainda incipientes movimentos da política em Brasília em 2024 já anunciam que a relação entre os poderes na capital federal deve seguir conturbada. Com menos de duas semanas de trabalhos legislativos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já teve reuniões particulares com os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em resposta a uma classe de parlamentares que anuncia de forma cada vez mais clara seu desejo de avanço sobre o orçamento da União. Em entrevista, o novo colunista político do Estado de Minas, Sérgio Abranches, comenta o atual cenário do país e seus possíveis desdobramentos em ano de eleições municipais.
Mineiro de Curvelo, Sérgio Abranches é cientista político e sociólogo e passa a publicar no Estado de Minas uma coluna quinzenal na edição impressa, revezando com Miguel de Almeida, e no Portal Uai a partir desta segunda-feira (19/2). Autor de livros como “Presidencialismo de coalizão”, “A era do imprevisto: A grande transição do século XXI” e “Tempo dos governantes incidentais”, Abranches analisará os fatos e movimentações mais relevantes da política nacional.
Na entrevista a seguir, Abranches comenta o que considera uma investida de Lira por um sistema semipresidencialista no Brasil; como Lula lida com um presidente da Câmara superpoderoso; e os movimentos dos parlamentares em ano de eleições para prefeitos e vereadores. O sociólogo também analisa o que pode estar por trás da aproximação entre o presidente da República e Rodrigo Pacheco em um contexto de fortalecimento nacional do PSD.
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, começou o ano com um discurso de mensagens fortes ao Executivo. Em que medida isso mostra o que podemos esperar para a relação com o governo Lula em 2024?
Claramente, o Lira tem em mente fazer uma transformação possível sem a convocação de uma assembleia para rever a constituição. Ele está querendo fazer isso paulatinamente dentro de um processo de descaracterização do presidencialismo brasileiro para transformar em uma espécie de semipresidencialismo nos moldes de Portugal ou Espanha com a transferência de fato do poder Executivo para o Legislativo. Por isso, ele acha que o orçamento pode ser executado pelo Congresso. Mas isso é uma anomalia e essa transição não é possível ser uma mudança constitucional, não cabe nem em uma emenda, porque é uma cláusula pétrea. Ele está descaracterizando o modelo político brasileiro e, com isso, prejudica a governabilidade.
Após o discurso na Câmara, Lira teve uma reunião considerada amistosa com Lula. O senhor acredita que isso pode mudar a situação?
Acho que não. Acho que, de novo, Lira está tentando ser um ‘primeiro-ministro’. Ele vai e conversa com o Lula e negocia determinados aspectos da pauta. Naquilo que ele concorda com o presidente, ele usa seu poder para aprovar. Ele negocia diretamente com o presidente, embora não faça parte da coalizão presidencial e seria legítimo que fizesse. Por exemplo: tanto Lula como Fernando Henrique Cardoso tiveram presidentes da Câmara ou de seus partidos ou de integrantes da coalizão. Aí é claro que o presidente da Câmara participa das negociações. O que tem de diferente agora é que o Lira se recusa a fazer parte da situação. O Lira é parte da oposição. Ele assumiu o seu poder ao longo do Governo Bolsonaro, quando lhe foi transferido o poder que ele agora trabalha para manter.
O Lula é muito bom negociador, mas ele está acostumado a ceder. Ele começou a negociar pelos sindicatos durante a ditadura militar e negociava com os representantes das empresas pelos direitos trabalhistas. Sempre foi pragmático. Fazia greves, usava todos os recursos, mas na hora H, no momento de bater martelo, era capaz de aceitar menos do que ele desejava. Ainda assim, com a sua habilidade, ele conseguiu mais do que outros conseguiriam. Essa é e sempre foi a grande virtude do Lula, ele é muito bom negociador, ele consegue mais do que os outros conseguiriam, mas é capaz de aceitar menos do que desejava. Eu acho que é isso que está acontecendo na relação dele com o Lira.
Lira queria a queda de Alexandre Padilha (PT) do Ministério das Relações Institucionais, mas Lula negou. Ainda assim, o presidente determinou que o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa (PT-BA), assumisse o papel de contato direto com o deputado.
O senhor considera essa uma vitória do presidente da Câmara?
Com certeza. Embora seja um responsável pela articulação, Padilha cada vez fica menos central do processo da articulação política e o Rui Costa e o Fernando Haddad (PT-SP, ministro da Fazenda) se tornam mais centrais. Então você tem uma negociação direta de ministros que são responsáveis por áreas executivas importantes, economia e a gestão dos investimentos, e Padilha fica como uma figura secundária num processo no qual o objetivo era que ele fosse o agente principal.
Na campanha, Lula fez críticas pesadas ao chamado orçamento secreto. O quanto essas cessões a Lira podem prejudicá-lo politicamente?
Ele pode ser prejudicado na capacidade de investimentos. O Brasil tem uma situação orçamentária muito peculiar, o nosso orçamento é muito rígido no sentido das verbas que são destinadas obrigatoriamente a determinados setores. Há uma certa flexibilidade na alocação dentro do setor, mas as rubricas são relativamente inflexíveis: educação, saúde etc. Sobra muito pouco para o presidente fazer a marca política dele, na questão da área discricionária do orçamento. É nessa área que a cunha do Legislativo, sobretudo a Câmara dos Deputados, está aumentando. Isso reduz ferramentas importantes nas mãos do presidente para poder realizar o seu projeto de governo.
Lula enfrenta, de origem, uma dificuldade maior até que a de Bolsonaro. Porque Bolsonaro tinha um problema de desejo e capacidade: ele não desejava ter coalizão e não tinha capacidade para fazer uma política de coalizão. Já o Lula tem capacidade para fazer uma política de coalizão, mas não consegue montar uma base majoritária suficientemente coesa e coerente porque houve uma fragmentação das bancadas, as bancadas se miniaturizaram. É um processo curioso e até meio contraditório que ocorreu nas eleições de 2018 e 2022. Por conta da aplicação de uma cláusula de barreira maior e a proibição de coligações proporcionais, o tamanho das bancadas diminuiu. O PL tem uma grande bancada, mas é um partido muito complicado internamente. O PT tem a segunda maior bancada, mas está aquém do que costumava ter em outros governos Lula. Então essa capacidade de formar uma coalizão mais coesa diminuiu muito.
Esse avanço do Legislativo sobre o orçamento pode ter impacto nas eleições municipais?
Eu não acredito muito nisso. A eleição municipal tem uma lógica muito diferente da eleição geral, ela tem muito a ver também com o desempenho e a capacidade do prefeito. Eu conheço cidades em que o prefeito está reeleito independentemente de ser ligado ao Bolsonaro ou ao Lula, mas porque ele tem o apoio da população por fazer uma boa gestão. A eleição municipal tem muito a ver com a satisfação dos cidadãos em relação ao que o prefeito faz. Agora, nas capitais e nas grandes cidades, essa polarização que ainda existe entre o Lula, PT e a extrema direita ligada ao Bolsonaro pode produzir resultados desagradáveis para ambos os lados. Agora, por outro lado, essas emendas às vezes não ajudam o prefeito, mas ajudam o deputado. É uma conversa diferente. A reeleição dos deputados depende do seu sucesso na eleição municipal no sentido de fazer o maior número de cabos eleitorais nos seus redutos. Na última vez que fiz a conta, cheguei em um cenário assim: 90% dos deputados são eleitos, em média, em cinco municípios. É o seu município de base eleitoral e os municípios do entorno. Eles tiram daí 70%, 80% da sua votação. Hoje são raríssimos os parlamentares eleitos pelo voto estadual. Por isso, para os parlamentares, fazer o prefeito nessas cidades é muito importante. Para ter cabos eleitorais.
A aproximação entre Lula e Pacheco pode ter como um dos objetivos frear os avanços de Lira?
Não só do Lira, mas do bolsonarismo em geral. Existe uma preliminar importante: na eleição de 2018, houve uma ruptura em que o eixo de disputa presidencial ficou com um espaço vazio porque o PSDB desapareceu e ainda não tem nenhum partido que ocupe esse lugar. Tem que ser um partido que tenha capacidade de competição eleitoral, com alcance nacional e lideranças com vocação presidencial. O Lula, durante todos os seus governos, achou que o PSDB era assim o grande mal porque havia uma polarização. Mas era uma polarização que não era radicalizada como se tornou com Bolsonaro. Então ele aprendeu que é melhor ter um opositor como o PSDB do que como o Bolsonaro e está em busca de alguém de algum partido que faça o papel dos tucanos.
Por exemplo, no Rio de Janeiro, o grupo de Lula dentro do PT faz um grande esforço para convencer o prefeito Eduardo Paes (PSD) a ter Anielle Franco como vice na sua chapa. Algo que dificilmente seria feito na época do PSDB. Lula tem muito interesse em ver o PSD tendo um papel de mais protagonismo que o PL ou o PP.
Cobrança em discurso
Na cerimônia de abertura dos trabalhos do Congresso Nacional, realizada no início do mês, o presidente da Câmara dos Deputados,Arthur Lira(PP-AL), afirmou que a Casa não ficará inerte este ano em razão das eleições municipais e disputas políticas entre os poderes. Em discurso, Lira foi claro ao cobrar que o governo federal cumpra acordos firmados com os parlamentares como contrapartida à aprovação de pautas consideradas prioritárias. “Por nos mantermos fiéis à boa política e ao cumprimento de todos os ajustes que firmamos, que exigimos, como natural contrapartida, o respeito às decisões e o fiel cumprimento dos acordos firmados com o Parlamento”, afirmou. “O Orçamento é de todos e para todos os brasileiros e brasileiras: não é e nem pode ser de autoria exclusiva do Poder Executivo e muito menos de uma burocracia técnica que, apesar de seu preparo, não duvido, não foi eleita para escolher as prioridades da nação. E não gasta a sola de sapato percorrendo os pequenos municípios brasileiros como nós, parlamentares”, completou Arthur Lira.