A retirada do sigilo de depoimentos no inquérito sobre atos golpistas no governo Jair Bolsonaro, pelo ministro Alexandre de Moraes permitiu uma boa visão das conspirações palacianas. Havia um plano de golpe “legal” em construção no círculo do então presidente da República. Havia, também, um esforço para persuadir os comandantes militares a aderirem a um decreto de estado de defesa, que permitiria intervir no Tribunal Superior Eleitoral e anular as eleições. Bolsonaro envolveu-se diretamente nesse trabalho de construção da unanimidade no Alto Comando das Forças Armadas, que se mostrou impossível. É o que se lê nos depoimentos do então comandante do Exército, Marco Antonio Freire Gomes, e do então ex-comandante da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior.
O silêncio absoluto de Bolsonaro e do então comandante da Marinha, almirante Almir Garnier Santos, do general Augusto Heleno na PF falam por si. Segundo os depoimentos, o almirante Garnier teria colocado as tropas à disposição de Bolsonaro, em reunião na qual o ex-presidente lhes apresentou uma das minutas do decreto de estado de defesa e operação de garantia da lei e da ordem (GLO). Os outros dois se recusaram, porque o que propunha era crime.
É também significativo o depoimento do general Estevam Theophilo de Oliveira, então comandante do Comando de Operações Terrestres (Coter). Ele negou participação em todos os fatos e reuniões relevantes nos quais há indícios de que participou. Reconheceu apenas reuniões protocolares e atribuiu algumas delas ao cumprimento de ordens do general Freire Gomes. Este negou essas ordens em seu depoimento. Mas, quando confrontado com uma conversa do ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, que o mencionava, reservou-se o direito ao silêncio, por “não ter o contexto”.
Eu havia terminado um levantamento sistemático de declarações de Bolsonaro a seus auxiliares e a seguidores pondo em dúvida a lisura das eleições, levantando suspeitas sobre as urnas, investindo agressivamente contra o TSE e o STF, ofendendo pessoalmente ministros dessas cortes. Fazia a pesquisa para um dos capítulos finais de livro que estou escrevendo. Em muitas das falas de Bolsonaro o tom era de ameaça. Em outras, de promessa de que impediria a eleição “fraudulenta”.
Muitas de suas frases iam pelo avesso. Diziam o contrário do que queria comunicar. Outras soavam como senha do que pretendia fazer. A mais repetida e mais importante é que iria ao limite, “dentro das quatro linhas da Constituição”. Essas “quatro linhas”, agora se sabe, são aquelas que regulam o estado de sítio, o estado de defesa e as operações de garantia da lei e da ordem (GLO). Mesmo depois do segundo turno, ele manteve essa atitude. O ex-presidente tem um modo tortuoso de construir raciocínios e se comunicar. Pelo que vimos ao longo de seus quatro anos de mandato, funciona. Ele foi capaz de mobilizar um séquito ponderável de crentes em sua palavra.
Ao ler os depoimentos, pude preencher várias lacunas que ficaram da pesquisa e esclarecer várias dúvidas. De repente, a história se completou, como se descobrisse as peças que faltavam de um intrincado quebra-cabeças. A tentativa de golpe tinha começo, meio e ainda não teve um fim. O desfecho, no intolerável 8 de janeiro de 2023, quando os três Poderes da República foram invadidos e vandalizados, não pôs um ponto final nesta história. Ele só acontecerá com o julgamento e a punição dos envolvidos.
Ainda há muita evidência sob sigilo de Justiça, porque o inquérito não terminou. Mas já se conhece a anatomia do golpe. Os atos preparatórios, a conspiração, as ações de seguidores bem orientados para provocar desordem e justificar uma GLO. O Sete de Setembro de 2021. A invasão da sede da PF, na data da diplomação de Lula, em dezembro de 2022. A bomba que seria colocada no aeroporto. A invasão violenta das sedes dos Poderes. Detalhes da intervenção no TSE. Faltam poucas peças para fechar.
Algumas conclusões são possíveis. Conspiraram por um golpe. É inquietante que ele tenha sido abortado por falta de consenso no Alto Comando das Forças Armadas. Não pela força dos mecanismos de freios e contrapesos da democracia. Bolsonaro, seu ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, o ajudante de ordens, Mauro Cid, entre outros, se empenharam para persuadir o Alto Comando. A divisão da cúpula militar introduziu um elemento de incerteza e risco que teria desarmado o golpe. Esta história só acaba com o fim do sigilo e a punição dos culpados.