No segundo semestre de 2017, o policial militar Ronnie Lessa se desdobrava para atender a duas "encomendas" fruto de sua atuação como matador de aluguel.
Seus clientes, à época, eram grupos criminosos diferentes e com interesses distintos. De um lado, políticos que, segundo a Polícia Federal, mantinham vínculo com grupos milicianos, teriam encomendado a morte da vereadora Marielle Franco (PSOL).
Do outro, o conhecido bicheiro Bernardo Bello, um dos principais nomes da chamada "nova cúpula" jogo do bicho no Rio de Janeiro, teria ordenado, segundo Lessa, a morte da presidente da Escola de Samba Salgueiro, Regina Celi.
Ela foi, segundo a PF, o "alvo paralelo" de Lessa entre o final de 2017 e os primeiros meses de 2018.
A necessidade de executar as ordens era tanta que Lessa e sua equipe teriam monitorado os dois alvos praticamente ao mesmo tempo e pretendiam até usar o mesmo carro nas duas execuções. Regina Celi, no entanto, não chegou a ser executada.
Os detalhes sobre as mortes que estavam a cargo de Lessa foram dadas por ele mesmo à Polícia Federal em seu acordo de colaboração premiada firmado no âmbito das investigações sobre a morte de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em 14 de março de 2018. A BBC News Brasil não conseguiu localizar a defesa de Bernardo Bello, que se encontra foragido.
O acordo foi homologado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e resultou, neste domingo (24/03), na prisão de três suspeitos de serem os mandantes do crime: o deputado federal Chiquinho Brazão (União Brasil-RJ), seu irmão e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, Domingos Brazão, e o ex-chefe da Polícia Civil fluminense Rivaldo Barbosa.
O advogado Ubiratan Guedes, defensor do conselheiro do TCE do Rio Domingos Brazão, negou, na manhã deste domingo, envolvimento de seu cliente nos homicídios da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes.
"(Domingos Brazão) não tem nenhuma ligação com a Marielle (sic), agora cabe à defesa provar que ele é inocente", afirmou o advogado, ao chegar à sede da Superintendência da Polícia Federal no Rio, na Praça Mauá, na capital fluminense. "Estamos surpresos."
"Não sabemos da imputação que é feita, está entendendo? Vamos ver", declarou.
A BBC News Brasil não conseguiu contactar as defesas de Rivaldo Barbosa e de Chiquinho Brazão.
Vínculo com o jogo do bicho
O vínculo de Ronnie Lessa com o jogo do bicho é conhecido há pelo menos 10 anos, quando ele perdeu a perna em um atentado a bomba em 2009, quando ele atuava na segurança de Rogério Andrade, também suspeito de ser um dos chefes do jogo do bicho no Rio de Janeiro.
Em sua delação premiada, Ronnie Lessa contou que na mesma época em que havia sido recrutado pela família Brazão para assassinar Marielle Franco, ele também havia sido contratado para assassinar Regina Celi a mando de Bernardo Bello.
Bello se tornou conhecido nos últimos anos após ter seu nome vinculado a uma série de atentados a rivais na exploração do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Ele vem negando sua participação nos crimes.
Seu nome ganhou ainda mais notoriedade após a divulgação da série Vale o Escrito, produzida pela Globoplay e que narra as origens do jogo do bicho no Rio de Janeiro e as disputas travadas pelas famílias que controlam a contravenção no Estado.
Segundo Ronnie Lessa, ele foi procurado por um emissário de Bernardo Bello, o ex-PM Edmilson da Silva Oliveira, conhecido como Macalé, no final de 2017. Teria sido Macalé o responsável por repassar a missão a Lessa.
Ocupado com a missão de assassinar Marielle, Lessa chegou a argumentar que a morte da vereadora seria mais "rentável".
"Segundo RONNIE essa tarefa lhe foi apresentada por MACALÉ, tendo em vista que esse auferia o valor de R$ 50.000,00 mensais de BERNARDO BELLO e não tinha como negar um pedido seu. LESSA ainda ponderou dizendo que a empreitada em face de Marielle era mais rentável, mas MACALÉ o convenceu a aceitar e o levou para conversar com BERNARDO", diz um trecho da representação da Polícia Federal ao STF que detalha trechos da delação de Lessa.
De acordo com a Polícia Federal, o que levou Bernardo Bello a encomendar a morte de Regina Celi a Lessa foi a disputa pelo controle do Salgueiro.
Bernardo Bello é casado com Tamara Garcia, filha de Waldomiro Paes Garcia, conhecido como Maninho, que teria comandado os negócios da família Garcia no jogo do bicho durante os anos 1990 e início dos anos 2000. Ele foi morto a tiros em 2004. Após sua morte, Tamara Garcia e Shanna Garcia, sua irmã gêmea, passaram a disputar o controle dos negócios da família.
Regina Celi, segundo a PF, representaria os interesses de Shanna Garcia, o que a colocaria em rota de colisão com o grupo de Tamara e Bernardo Bello.
"Alvo paralelo"
De acordo com a PF, Regina Celi era vista como uma espécie de "alvo paralelo" em meio ao planejamento da morte de Marielle.
Lessa contou à PF que chegou a fazer o monitoramento dos passos dos seus dois alvos praticamente ao mesmo tempo.
O ex-PM contou que, inicialmente, o plano era usar um carro diferente para executar Regina Celi. O carro era clonado e acabou sendo rebocado pelas autoridades de trânsito após ser deixado estacionado por um período longo de tempo.
Sem o veículo original, o grupo passou a usar um Cobalt cinza para monitorar tanto Marielle quanto Regina Celi. Foi esse o automóvel usado por Lessa para assassinar a vereadora.
"O GM/Cobalt passou a ser empregado nas duas tarefas, de modo que, assim que fosse cometido qualquer um dos delitos, já havia um jogo de placas adulteradas à disposição da horda para troca imediata, com o fim de dificultar a persecução penal. Assim, constata-se que isso trazia conveniência à empreitada tendente à execução de Marielle, o que foi asseverado por LESSA", diz outro trecho da representação da PF.
A representação da PF não deixa claro os motivos que levaram o grupo de Ronnie Lessa a executar Marielle antes de Regina Celi. Ela cita apenas que, no dia 14 de fevereiro, um mês antes da morte da vereadora, Lessa monitorava Regina Celi durante a apuração dos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro quando perdeu seu alvo de vista.
Ronnie Lessa foi preso praticamente um ano depois da morte de Marielle, em março de 2019, no mesmo dia em que o ex-sargento da PM Élcio de Queiroz foi preso. Queiroz admitiu também fez um acordo de colaboração premiada e admitiu que dirigiu o carro usado por Lessa na execução da vereadora.
"Triunfo" do Estado brasileiro
O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, se manifestou no início da tarde reiterando informações já divulgadas sobre os presos.
Na declaração, durante entrevista coletiva em Brasília, Lewandowski afirmou que a conclusão das investigações e as prisões são um "triunfo expressivo do Estado brasileiro contra a criminalidade organizada".
Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes foram mortos a tiros no dia 14 de março de 2018.
Segundo as investigações da Polícia Federal, a família Brazão teria encomendado a morte da vereadora por conta de sua oposição a projetos que previam a regularização de empreendimentos imobiliários vinculados a grupos milicianos supostamente ligados a Domingos e Chiquinho.
Os irmãos Brazão e Rivaldo Barbosa foram presos no Rio de Janeiro e transferidos para uma unidade prisional federal em Brasília.
De acordo com o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, as investigações sobre a autoria e os mandantes da morte de Marielle chegaram ao fim.
"Nesse momento, a PF encerra essa fase da investigação", disse o diretor durante entrevista coletiva neste domingo.