Diante dos 60 anos do golpe que instalou a Ditadura Militar no Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) dobrou a aposta em seu comportamento conciliatório. O petista vetou qualquer ato oficial de seus ministérios recordando a data e, antes disso, acumulou falas em que classifica os esforços de memória dos anos de chumbo sob termos como “remoer o passado”. Autora do recém-lançado "A Máquina do Golpe - 1964: Como Foi Desmontada a Democracia no Brasil" (Companhia das Letras, 2024), a historiadora e professora da UFMG, Heloisa Starling conversou com o Estado de Minas e questionou o comportamento do chefe do Executivo.


Em falas recentes, Lula coloca panos quentes na relação com o comando atual das Forças Armadas, na mira da Justiça por possível participação nos planos de ruptura democrática conspirados durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). O presidente tem como argumento repetido o fato de que os atuais generais eram crianças ou sequer tinham nascido quando o golpe de 1964 foi perpetrado. Para Starling, a fala não leva em consideração que a formação dos militares atuais é fortemente influenciada pelos ideais dos que tomaram o poder há seis décadas.

 




“Há um equívoco nessa fala do presidente. Ele está dizendo que os generais eram crianças, mas não eram. Esses generais e o próprio Bolsonaro foram treinados na formação militar deles por militares que não só participaram do golpe, como participaram da repressão da ditadura brasileira. É assim que se forma uma ideologia. Eles não precisam estar do lado do Mourão saindo de Juiz de Fora, eles foram formados por militares que atuaram diretamente na repressão. Por isso que evocam a Ditadura Militar como essa utopia autoritária”, afirma a professora.

 

 

Para a historiadora, conhecer detalhadamente a dinâmica de fatos no passado não significa uma incapacidade de superar eventos que já ocorreram, mas sim a possibilidade de acumular repertório para reconhecer os riscos atuais. Starling ainda destaca que o momento contemporâneo do Brasil é ideal para rever o papel dos militares diante da república.

 

“Outro equívoco que há na fala do Lula é que conhecer a história do golpe significa formar um repertório para que a gente possa defender a democracia no presente. E penso que o Brasil tem hoje uma oportunidade que não deveria perder: a de alterar e por fim no que eu chamo de tutela militar sobre a república. É preciso fazer uma boa discussão na sociedade para que a gente possa definir o que é o projeto de atuação das forças armadas, como vamos tirar a ambiguidade na leitura do artigo 142 da Constituição e a terceira coisa é fazer com que as escolas militares tenham o mesmo currículo que o restante das escolas do Brasil, elas não podem ter um currículo próprio, as forças armadas não estão à parte do país”, conclui.

 

"A Máquina do Golpe - 1964: Como Foi Desmontada a Democracia no Brasil" será lançado em fascículos digitais pela Companhia das Letras. Os dois primeiros capítulos foram publicados em março e estão disponíveis para download na biblioteca digital de plataformas como o Google, Apple e Amazon por R$ 9,90. Mais dois capítulos serão lançados em abril e os dois últimos em maio. Ainda no primeiro semestre, a editora publicará a versão física reunindo o conteúdo completo da obra.

 

A entrevista com a professora Heloisa Starling foi publicada na íntegra no caderno Pensar do último sábado (30/3), em edição especial sobre os 60 anos do golpe. À reportagem, a historiadora falou mais sobre o contexto que permitiu o sucesso dos golpistas em 1964, tratou sobre a importância de se recordar o passado para a construção de um repertório de defesa da democracia e comentou eventos atuais que ainda ecoam os anos de chumbo, como os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023.

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