O golpe militar de 1964 não pode ser esquecido. Há muitos jovens hoje a duvidar que a democracia seja indispensável ao bem-estar e à boa convivência social porque não viveram, nem têm memória dos anos tenebrosos de 1964 a 1985. Há crimes de Estado que não foram ainda reconhecidos pelos militares, apesar de todas as evidências. Durante a vigência da Comissão da Verdade, emitiram nota negando que tivesse havido “desvio de função”.
Desvio de função era o uso de dependências oficiais, dos quartéis, e o envolvimento de militares no cometimento de atos criminosos, como tortura, morte e ocultação de cadáveres. Enquanto não houver o reconhecimento, esse passado não nos abandonará como ameaça ao futuro.
Várias explicações têm circulado para a decisão do presidente Lula de não lembrar oficialmente o golpe de 1964. Nenhuma delas convence e uma delas é preocupante. A desculpa de que melhor seria deixar a data passar oficialmente em branco nas dependências civis do governo e nas ordens do dia dos militares porque passamos muito recentemente pela iminência de novo golpe militar.
Não seria sensato exaltar os ânimos nos quartéis. Pois é exatamente a iminência recente de um golpe que aconselha lembrar 1964. Ainda mais, sabendo da gravidade do que que a Polícia Federal apurou sobre os atos golpistas. É preciso lembrar para que a sociedade brasileira, especialmente quem não viveu as dores dos anos de chumbo, saiba o tamanho da ameaça contida na interrupção dos direitos e liberdades do estado democrático de direito.
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Temos que lembrar o golpe militar de 1964 e todos os seus desdobramentos. O recrudescimento do autoritarismo, em 1968, com o Ato Institucional nº 5 para reprimir as manifestações de estudantes, intelectuais, artistas e políticos pedindo democracia. O segundo golpe, em 1969, sob o comando do general Emílio Garrastazu Médici, que depôs o vice-presidente civil Pedro Aleixo, que era o presidente de direito com a morte do general-presidente Costa e Silva.
Os sequestros, prisões arbitrárias, torturas, morte e ocultação de cadáveres, que o general Ernesto Geisel considerava uma barbaridade necessária, mas que funcionava, como revelou Elio Gaspari ao divulgar gravação que estava em seu poder, feita pelo próprio general-presidente de conversa com o general Dale Coutinho.
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O temor de causar problemas com os militares com essas lembranças mostra que o perigo continua vivo. Ele persistirá, se não houver punição exemplar dos militares envolvidos na tentativa de derrubada violenta do Estado democrático de direito sob o comando de Jair Bolsonaro e da facção de oficiais-generais do seu entorno.
As investigações sobre os atos golpistas, uma trama que vai de 2019 a 8 de janeiro de 2023, demoliram a convicção, inclusive entre os estudiosos acadêmicos, de que os militares teriam se profissionalizado e deixado a política, diante das perdas de reputação na ditadura. Não foi o que aconteceu. Bastou um capitão, definido como mau soldado, removido para a reserva por mau comportamento, dar protagonismo, como presidente, a generais e tenente-coronéis, para que a chama do golpismo reacendesse e eles se repolitizassem. Se é que, alguma vez, se despolitizaram.
O artigo 142 da Constituição de 1988 é como um fuzil engatilhado contra a democracia. Uma ameaça perene, como nos lembrou o saudoso José Murilo de Carvalho, um dos primeiros a reconhecer que a tese da profissionalização dos militares não se sustentava. Ambíguo, o ‘142’ permite interpretações que autorizam a intervenção militar.
A frase singela de Shakespeare, cujo forte significado aparecia como alerta a Júlio César, prestes a ser assassinado por Brutus. “Cuidado com os idos de março” é inequívoca. Um alerta preventivo. Cuidado com o que pode vir a ser. Parece que muita gente no Brasil quer interpretá-la pelo seu avesso. Não lembrar dos idos de março para que eles não se repitam. Se esquecemos, abrimos a guarda para que voltem.
Não vamos lembrar a ditadura militar por causa do presente, ou dos últimos anos de conspiração. Recordar os idos de março, sim, para evitar que se repitam no futuro. Analisar o que permitiu a intentona de Bolsonaro. Rever como se ensina a história do Brasil nos colégios militares. Rediscutir o artigo 142 da Constituição de 1988. Foi interpretando o que Bolsonaro dizia que faria tudo “dentro das quatro linhas da Constituição”. É importante lançar os olhos para os idos de março de 1964 para vermos que futuro não queremos para o Brasil.