Está nas mãos do prefeito Fuad Noman (PSD-MG) aprovar uma medida que altera a política de divulgação de dados sobre o aborto legal em Belo Horizonte.

 

Na última quarta-feira (3/4), a Câmara Municipal da capital aprovou em segundo turno o Projeto de Lei (PL) 492/2023, que determina que os hospitais encaminhem relatórios mensais à Secretaria Municipal de Saúde com informações sobre procedimentos realizados; a faixa etária e raça das pacientes; além da motivação para a interrupção da gestação.

 

Segundo o texto da proposta, cabe ao Executivo divulgar um balanço semestral com as informações. Muito mais que a publicação de dados, a decisão pode impactar o acesso ao direito à interrupção da gestação na cidade.

 

A medida foi aprovada por 27 dos 41 vereadores de BH e teve apenas 10 votos contrários. A autora do projeto, Flávia Borja (PP), defende que a proposta busca trazer transparência e permitir a criação de políticas públicas em defesa das mulheres.

 

Opositores temem que, se aprovado, o PL crie mais percalços para acesso ao direito ao aborto legalizado. Especialistas ouvidos pelo Estado de Minas reiteram a preocupação.

 



 

O PL 492/2023 determina que as instituições enviem relatórios mensais à secretaria contendo três itens. O primeiro deles é a motivação, que reúne as hipóteses do aborto ter sido praticado em razão de ser o único meio de salvar a vida da gestante; de a gestação ser resultado de estupro; ou do feto ter sido diagnosticado como anencefálico (os três momentos em que o procedimento é legal no país). O segundo é a faixa etária da paciente e o terceiro é a raça ou cor da mulher.

 

À reportagem, Borja afirmou que a publicação nasceu da dificuldade em obter dados sobre abortos legais realizados em BH. A vereadora defende seu PL como uma ferramenta de transparência que permitirá a elaboração de ações de prevenção ao estupro, uma das condições que tornam a interrupção da gestação legalizada no Brasil.

 

“Diversas vezes eu tentei obter esses dados e não tive resposta. Me veio a necessidade de ter um Projeto de Lei para a transparência nos dados. Deixando claro que eu sou uma vereadora pró-vida e queremos, a partir desses dados, delinear e fazer políticas públicas para saber como chegar antes da violência. Queremos impedir duas violências contra a mulher, uma que é o estupro e outra que é o aborto”, destacou a parlamentar.

 

O inciso IV do segundo parágrafo do PL determina ainda que a instituição seja identificada na divulgação dos dados. Borja afirma que esta informação será repassada apenas à Secretaria Municipal de Saúde e não será disponibilizada nos relatórios abertos à população.

 

Ainda assim, opositores do projeto temem que a publicação dos dados gere protestos de grupos conservadores em frente a hospitais, cause perseguição de profissionais e crie percalços para mulheres que podem exercer seu direito legal ao aborto.

 

Iza Lourença (PSOL) teve um dos dez votos contrários ao PL 492/2023 na Câmara. A parlamentar destaca que os dados sobre aborto legal já são coletados no Sistema Único de Saúde (SUS) e acessados por autoridades da área. A vereadora ressalta o receio de que, se sancionada, a lei gere movimentos que intimidam mulheres com direito garantido à interrupção da gestação.

 

“Muitas vezes quando uma vítima de estupro decide fazer um aborto ela é estigmatizada e perseguida por pessoas que acham que ela deveria ter o filho do estuprador e nós não queremos isso em BH, por isso votamos contra o PL. Ao disponibilizar dados das instituições que realizam esse procedimento, isso ajuda grupos a irem para esses locais para intimidar essas meninas, crianças e adolescentes que foram violentadas”, afirmou.

 

Bruno Pedralva (PT) também votou contra o projeto, que considera um mecanismo de constrangimento de hospitais, profissionais de saúde e pacientes. O vereador, que também é médico, afirmou que os parlamentares que se opõem à proposta já se movimentam para evitar a sanção do prefeito.

 

“As bancadas do PT e do PSOL já se reuniram com o prefeito e a própria Secretaria de Saúde discorda do projeto. Vale destacar que o líder do governo na Câmara, Bruno Miranda (PDT) orientou o voto contrário”.

 

Fragilidade jurídica

 

Para Débora Cesarino, presidente da Comissão das Mulheres Advogadas da 100ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o projeto está em rota de colisão com decisões recentes de instâncias superiores da Justiça brasileira.

 

“O projeto vai na contramão dos entendimentos dos tribunais superiores, como o Superior Tribunal de Justiça, que decidiu recentemente que um hospital deve ser um centro de acolhimento para as mulheres, e assim deve ser o comportamento dos profissionais que o guarnecem e administram. Assim, a divulgação de dados sensíveis violam direitos como o da dignidade da pessoa humana, o sigilo profissional dos médicos, entre outros”, destaca.

 

A advogada ainda destaca que as instituições podem se basear na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) para não fornecer as informações. Elas estariam protegidas por se tratar de uma lei federal, hierarquicamente superior às regras válidas apenas em âmbito municipal. Para Cesarino, sancionar o PL em questão traria mais percalços ao já tortuoso caminho das mulheres que pretendem exercer o direito ao aborto legal.

 

“O projeto pode, de alguma forma, vulnerabilizar ainda mais as meninas e mulheres que precisam acessar os serviços de aborto legal no país, além de trazer insegurança aos profissionais de saúde que prestarão este cuidado. A divulgação de dados, como qual foi o hospital que mais realizou o procedimento do aborto, pode ser alvo de movimentos de vigília e perseguição a médicos que apenas estão cumprindo a lei, como já vimos anteriormente em casos divulgados, gerando uma atmosfera de medo e intimidação”, afirma.

 

Piora do cenário

O acesso ao aborto legal no Brasil já é rondado pelo medo de humilhação e punição por cidadãos que podem usufruir do direito, destaca a professora do departamento de Psicologia da UFMG e pesquisadora na área de saúde sexual e saúde reprodutiva, Paula Rita Bacellar Gonzaga. Para a docente, o PL em questão promove que os serviços de saúde deixem de ser locais confiáveis para as pessoas vulneráveis.

 

“Os serviços que realizam abortamento nos casos previstos em lei contam com uma divulgação extremamente deficitária, assim como o direito é pouco conhecido por grande parte da população. Isso já implica em uma disparidade significativa nos índices de violência sexual e de demanda pelos serviços de prevenção a agravos e aborto legal, por exemplo".

 

Segundo a professora, a possibilidade de uma exposição vexatória a esses serviços cria ainda mais um elemento para ser considerado por pessoas que já estão vivenciando um itinerário complexo, seja por gestação em caso de estupro, de risco para a gestante ou de feto anencefálico.

 

"Estamos falando de um processo que mobiliza medos, inseguranças, vergonha e que deve ser acompanhado pelas equipes multidisciplinares dos serviços conforme preconizam as Normas técnicas do Ministério da Saúde com sigilo, respeito e autonomia. Inclusive a exposição desses números é injustificável, visto que para fins epidemiológicos já consideramos as notificações obrigatórias em casos de violência”, afirmou a professora.

 

A pesquisadora ainda cita casos em que movimentos contrários ao direito ao aborto já protagonizaram momentos de constrangimento às pessoas que tentaram exercer o direito previsto em lei.

 

“Instituições que realizam procedimentos de interrupção gestacional nos casos previstos em lei são alvo de ataques quando esses casos são divulgados, como acompanhamos em 2020 na chegada da criança de São Mateus ao hospital que realizaria o procedimento em Recife. Nesse caso, além de precisar ir do Espírito Santo para Pernambuco para ter seu direito assegurado, essa menina também teve sua privacidade e segurança colocadas em risco diretamente por manifestantes que visavam interditar o acesso a um direito que é previsto em lei desde 1940".

 

Conforme a pesquisadora, a divulgação desses dados coloca em risco as usuárias dos serviços e as equipes de profissionais que estão no seu exercício laboral de promoção da saúde, "tornando espaços que deveriam prezar pela segurança e pelo cuidado em terrenos vulneráveis a manifestações extremistas”.

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