Entidades da sociedade civil aparecem como prioridade dos deputados estaduais de Minas Gerais quando o assunto é a distribuição de emendas parlamentares. É o que aponta levantamento exclusivo feito pelo Núcleo de Dados do EM com base em números do governo do estado. Eles apontam que os parlamentares indicaram para essas entidades R$ 30,3 milhões do recurso total de R$ 1,6 bilhão do orçamento para 2024. Se o volume parece pequeno no contexto global, se torna imenso quando comparado com a destinação a outras políticas públicas fundamentais para a sociedade, que sequer ultrapassaram a marca do milhão, como o enfrentamento à violência contra a mulher. Em um estado que aparece nas primeiras posições do ranking de crimes do tipo, a rubrica foi atendida com R$ 920 mil – quase 33 vezes menos que o indicado para organizações não governamentais.

 

Para fazer o levantamento, a reportagem desconsiderou emendas para hospitais filantrópicos, o que faria a verba indicada para organizações da sociedade civil subir para R$ 93,5 milhões, considerando apenas as Santas Casas do estado. Para além do enfrentamento à violência contra a mulher, o volume de R$ 30,3 milhões para as entidades privadas supera outras rubricas que ajudam a sustentar políticas públicas essenciais, como a proteção ao patrimônio cultural (R$ 350 mil em indicações); direitos humanos (R$ 358 mil); o programa Vacina Mais, Minas (R$ 535 mil), que leva imunização às escolas; e todas as destinações, de diferentes objetivos, voltadas à Fundação Hemominas (indicada com total de R$ 450 mil, em duas rubricas diferentes), apenas para citar alguns exemplos.

 

O doutor em políticas sociais Paulo Ramirez, cientista político e professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), destaca que a destinação de emendas a organizações da sociedade civil é um indicativo de fragilidade do poder público, em uma realidade que não se restringe a Minas Gerais. “Isso revela a ideia de que o Estado não tem verba ou não tem capacidade de gestão para atender essas áreas (os serviços oferecidos pelas entidades privadas). O neoliberalismo se impõe nesse sentido. Por outro lado, cada vez menos o poder público quer se preocupar com entidades públicas permanentes (fundações e estatais, por exemplo). Esse processo faz parte do plano de desmonte do Estado como provedor do bem-estar social”, diz.

 

Paulo Ramirez vai além e diz que há dificuldade para fiscalizar o uso do dinheiro enviado às organizações privadas. “Este é o problema mais grave: não há controle sobre o uso dessas verbas. O questionamento não paira sobre os recursos chegarem ou não a essas ONGs, mas como eles são efetivamente gastos. Muitas vezes, diretores e gestores dessas entidades têm salários altos, bancados por esses recursos. Então, eles não são aplicados, necessariamente, no fim desejado, que é a prestação de serviços à população”, afirma.

 

Já o cientista político Adriano Cerqueira, professor do Ibmec-BH, acredita que o grande número de emendas para organizações da sociedade civil é incentivado pelo fato de o poder público já ter seu próprio orçamento. “Quando alguém próximo dessas associações se elege deputado, já conhece aquele trabalho e tem mais facilidade para indicar essas verbas. É relativamente mais fácil uma instituição privada ter acesso a esses recursos, porque ela não tem a burocracia do Estado”, diz.


Pauta animal lidera

 

Quem lidera o volume de repasses para associações na Assembleia Legislativa de Minas Gerais é o deputado estadual Noraldino Júnior (PSB). Ele destinou R$ 8,8 milhões para entidades privadas por meio de seis emendas. Ligado à pauta animal, o parlamentar só atendeu, com essas destinações, a rubrica de “promoção das políticas públicas de proteção à fauna doméstica”. Em todos os casos, o dinheiro foi direcionado a CNPJs sediados em Juiz de Fora, cidade onde ele nasceu, na Zona da Mata mineira.



Em entrevista, Noraldino disse que destina recursos às organizações da sociedade civil porque as prefeituras não dão conta da demanda. “O poder público não assume a sua responsabilidade nem no controle da população animal, que dirá nas políticas públicas de proteção, resgate e socorro. Enquanto não tivermos políticas públicas efetivas, vou enviar todo o meu recurso de emenda para essas organizações da sociedade civil. Ano que vem, vou enviar ainda mais. Parte das minhas transferências especiais (emendas sem aplicação definida) também vão para isso”, disse.

 

Depois dele, aparece o deputado estadual Oscar Teixeira (PP), que destinou R$ 2,7 milhões para as associações privadas segmentadas pela reportagem. Foram três emendas, todas para Montes Claros. As rubricas, no entanto, são diferentes. Uma está no âmbito da segurança pública; outra, da saúde; e uma terceira do desenvolvimento social. Procurado, o parlamentar não comentou as indicações.

 

No total, os deputados estaduais indicaram 139 emendas para associações privadas não ligadas a hospitais filantrópicos. O recordista em número de indicações é o deputado estadual Dr. Maurício (Novo), que cadastrou 14 repasses diferentes para esses CNPJs.

 

Em nota, o parlamentar afirma que indicou as 14 emendas para associações porque preside a Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Assembleia, é médico e já foi voluntário em asilos, Apaes e outras entidades de assistência social. “As Apaes são entidades que desempenham importante papel na vida das pessoas com deficiência, assim como suas famílias, e precisam de apoio irrestrito do poder público para se manterem”, afirmou.

 

Os blocos governistas “Avança Minas” e “Minas em Frente” também estão na lista. O primeiro, que reúne 26 deputados, tem oito emendas do tipo, totalizando R$ 687,2 mil; o segundo, constituído por 31 políticos, aparece com três assinaturas, que alcançam o valor de R$ 534,5 mil.


 

Ainda que o valor de R$ 30,3 milhões para essas associações chame a atenção quando comparado a outras áreas atendidas pelo poder público, o governo de Minas ainda não empenhou (reservou) um centavo para esse tipo de emenda parlamentar. Consequentemente, o Executivo também não pagou qualquer quantia para essas destinações, apesar de elas serem impositivas (obrigatórias). O repasse ao beneficiário ocorre mediante celebração de termo de fomento ou termo de colaboração entre o estado e a entidade privada.


Cenário político influencia

 

Ainda para o cientista político Paulo Ramirez, historicamente, parcerias entre o poder público e organizações da sociedade civil são frágeis e sujeitas a interrupção a depender do cenário político. “Ainda que elas prestem um bom serviço, essas entidades privadas são facilmente descreditadas dependendo do momento político. Se há uma troca de governo ou do perfil do Legislativo, por exemplo, esses convênios podem ser interrompidos durante as transições. É o lado mais negativo, porque a população fica a ver navios”, afirma.


O que é emenda parlamentar?

É o instrumento que permite aos deputados destinarem a finalidades específicas parte do orçamento anual do poder público. São de quatro tipos: individual, de bancada, de comissão e de relator. Cabe destacar que o Executivo não é obrigado a dar cumprimento a todas. As únicas de execução obrigatórias são as individuais, limitadas a 1,5% da receita corrente líquida (RCL) em Minas Gerais; e as de bancada, limitadas a 0,0041% da RCL. No caso das individuais, ao menos 50% devem se destinar à saúde. Já nas de bancada, metade deve seguir para a saúde ou para a educação.

 

 

Prioridades dos parlamentares estaduais

Organizações da sociedade civil “na cabeça” das emendas parlamentares


Para organizações da sociedade civil*
R$ 30,3 milhões

Gestão das unidades policiais
R$ 7,3 milhões

Apoio e fortalecimento da rede de atenção psicossocial
R$ 7 milhões

Fomento para o desenvolvimento do setor agropecuário
R$ 4,6 milhões

Modernização e expansão do sistema prisional
R$ 2,5 milhões

Vigilância de doenças transmissíveis e imunização
R$ 1,3 milhão

Apoio à realização de ações esportivas
R$ 1,3 milhão

Enfrentamento à violência contra a mulher
R$ 920 mil

Apoio às atividades de pesquisa, inovação e tecnologia
R$ 785 mil

Perícias técnico-científicas
R$ 656 mil

Vacina Mais, Minas
R$ 535 mil

Apoio aos programas de mestrado e doutorado
R$ 455 mil

Promoção, proteção e reparação de direitos humanos
R$ 358 mil

Desenvolvimento da educação especial
R$ 350 mil

Saúde do servidor
R$ 350 mil

Proteção do patrimônio cultural
R$ 350 mil

Apoio à rede complementar de suporte ao dependente químico
R$ 182 mil

Fomento aos pequenos negócios
R$ 100 mil

Gestão de unidades e conservação
R$ 60 mil

* Não consideradas emendas para hospitais filantrópicos, a exemplo das Santas Casas
Fonte: Portal de Emendas do Governo de Minas

 

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