RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - As consultas do ex-policial militar Ronnie Lessa a uma plataforma de dados cadastrais tiveram como alvos personagens como o ministro Paulo Pimenta, deputados, defensores dos direitos humanos, pesquisadores e até artistas como Caetano Veloso.
Lista apresentada pela empresa CCFácil ao Ministério Público do Rio de Janeiro mostra cerca de 900 consultas realizadas entre 2006 e 2018 pelo ex-PM, réu confesso do homicídio da vereadora Marielle Franco (PSOL) e de seu motorista Anderson Gomes.
Foi a partir dela que se identificou que Lessa pesquisou diretamente o nome de Marielle dois dias antes do assassinato. A prova, descoberta após a prisão do ex-PM, é apontada por investigadores como crucial para que o ex-PM visse sua situação se complicar e iniciasse a negociação para a delação.
A lista de pesquisa também traz nomes de políticos ligados ao PSOL, como o deputado Chico Alencar, os ex-deputados Marcelo Freixo e Jean Wyllys, o ex-vereador Renato Cinco e o músico Marcelo Yuka, que em 2012 foi vice na chapa do partido na disputa à Prefeitura do Rio de Janeiro.
Para a Polícia Federal, as consultas que miravam políticos do PSOL reforçam a suspeita de que o homicídio da vereadora foi o ápice das desavenças entre os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão, apontados como mandates do crime, e o partido. Elas foram feitas, segundo Lessa, a pedido dos dois. Os irmãos negam envolvimento no crime.
As buscas com teor político de fato se concentram em nomes do PSOL a partir de 2017. Antes, porém, extrapolam a sigla.
Em 7 de abril de 2015, por exemplo, Lessa pesquisou os dados de Paulo Pimenta (PT), à época deputado federal. Um dia antes, o hoje ministro havia visitado o Complexo do Alemão para ouvir queixas de moradores sobre as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) instaladas no local. Ele era, na ocasião, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara.
No mesmo dia, com intervalos de alguns minutos, ele pesquisou dados sobre Freixo e Wyllys, que também integraram a comitiva. Lessa ainda consultou informações sobre Yuka.
O delator do caso Marielle também pesquisou nomes de pessoas que têm uma imagem pública vinculada à esquerda. O cantor Caetano Veloso teve os dados pesquisados em dezembro de 2015 e fevereiro de 2014. Preta Gil, em abril de 2016.
A nadadora Joanna Maranhão teve informações consultadas em 2 de julho de 2015, mesmo dia em que criticou a aprovação da redução da maioridade penal na Câmara.
Já Tico Santa Cruz foi alvo de levantamento em março de 2016, dias após gravar um vídeo de convocação a um ato contra o impeachment da então presidente Dilma Rousseff.
O ex-PM também fez consultas sobre pessoas que atuaram na defesa dos direitos humanos ou com pesquisas sobre violência policial no Rio de Janeiro.
O ex-deputado Wadih Damous (PT), por exemplo, teve dados consultados em outubro de 2013 e em março de 2016. No primeiro período ele atuava como presidente da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro. No segundo, já era parlamentar e atuava principalmente contra o impeachment de Dilma.
Também foram alvo de levantamentos os pesquisadores Ignacio Cano, Julita Lemgruber e Alba Zaluar. Também estão entre os que tiveram dados consultados os advogados com atuação em casos de violência policial João Tancredo e Carlos Nicodemos.
O delegado Orlando Zaccone, atualmente coordenador do movimento Policiais Antifascismo, teve o nome pesquisado por três vezes, e sua mulher, uma vez. A última ocorreu em janeiro de 2018, ano em que ele se candidatou pelo PSOL a uma vaga na Câmara.
Investigadores avaliam que as pesquisas não apontam, necessariamente, alvos que o ex-PM tinha a intenção de matar, como fez com Marielle. Mas mostram o perfil de nomes que interessavam a ele.
Além de defensores de direitos humanos e nomes de esquerda, há também, por exemplo, milicianos que integravam a quadrilha de Rio das Pedras, com a qual Lessa teve divergências, segundo investigadores.
A lista de consultas de Lessa foi solicitada pelo MP-RJ à CCFácil apenas em 2021. Foi quando os investigadores notaram que, entre os papéis apreendidos na casa do ex-PM na data de sua prisão havia um com anotações de login e senha para a plataforma.
O documento foi o primeiro a identificar uma pesquisa direta de Lessa ao nome de Marielle e sua filha dias antes do crime. Até então não tinham sido identificados levantamentos com o nome da vereadora, o que era um argumento da defesa para tentar negar a autoria do crime.
Quando Lessa foi preso, em 2019, a investigação tinha apenas um histórico de pesquisas no Google. Ele tinha um perfil semelhante ao indicado na CCFácil, mirando personagens da esquerda, e em alguns casos com expressões violentas como "Dilma e estado islâmico" e "morte ao PSOL".
As características das buscas levaram o delegado Giniton Lages a afirmar, no dia da prisão de Lessa, que havia a possibilidade de que o homicídio não tivesse um mandante, mas fosse um "crime de ódio". "Ele revela diferenças ideológicas de forma violenta", afirmou, em 2019.
Para a PF, a interpretação tinha como objetivo reduzir a pressão sobre buscas por um mandante do crime. O relatório final do caso afirma que Giniton atuou de acordo com os interesses do ex-chefe de Polícia Civil, Rivaldo Barbosa, para proteger os irmãos Brazão. Todos negam ter obstruído as investigações.