Um relatório de 68 páginas divulgado com quase nenhum alarde na manhã de terça-feira (11/06) é o mais novo episódio de uma espécie de queda-de-braço travada dentro do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em uma área que, ao menos no discurso, é cada vez mais cara ao petista: a preservação da Amazônia.
O documento é o relatório final de um grupo de trabalho sobre a BR-319, uma rodovia que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM) e que cruza uma das regiões mais preservadas da Amazônia. O relatório elaborado pela equipe do Ministério dos Transportes defende o asfaltamento completo da rodovia, que hoje tem apenas partes dos seus 880 quilômetros trafegáveis durante o ano inteiro.
O asfaltamento da rodovia, no entanto, coloca o governo em uma posição delicada.
Entre os que o defendem estão o Ministério dos Transportes, comandado por Renan Filho (MDB), e parlamentares da Região Norte. Eles alegam que a rodovia pode diminuir o isolamento de Estados como o Amazonas e Roraima em relação ao resto do país. Juntos, os dois têm 4,5 milhões de habitantes. A rodovia é a única ligação terrestre desses dois Estados com o Centro-Sul.
Do outro lado, porém, estão membros da ala ambiental do governo, cientistas e ambientalistas. Eles alertam que o asfaltamento completo da BR-319 sem as devidas medidas de mitigação e governança pode gerar um aumento desenfreado do desmatamento na Amazônia e comprometer uma das principais bandeiras do terceiro mandato do petista: a defesa do meio ambiente.
Politicamente, a definição sobre as obras da rodovia coloca a ministra Marina Silva, novamente, sob os holofotes em função de outro projeto com apoio de parte do governo.
Nos últimos meses, ela já vinha tendo que se defender de críticas pela posição contrária do Ibama em relação à exploração de petróleo em poços localizados na região conhecida como bacia sedimentar da Foz do Amazonas, entre o Pará e o Amapá.
Rodovia polêmica
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A BR-319 foi construída nos anos 1970, durante a ditadura militar, mas foi abandonada por sucessivas administrações posteriormente.
Ela tem 880 quilômetros e corta a região localizada entre os rios Purus e Madeira.
Cientistas avaliam que a rodovia se localiza em uma das regiões mais ricas em biodiversidade de toda a Amazônia e alertam que a região do seu entorno já vem sendo alvo de pressão por conta do avanço do desmatamento ilegal e do agronegócio.
Atualmente, apenas os trechos próximos a Porto Velho e Manaus são trafegáveis durante a maior parte do ano.
O chamado "trecho do meio", com mais de 400 quilômetros, não é asfaltado e fica intrafegável durante a maior parte do ano devido à temporada de chuvas.
No início de 2023, a obra foi incluída pelo governo Lula na lista de projetos prioritários.
Em 2022, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) já havia concedido a licença-prévia da obra de asfaltamento do "trecho do meio".
A licença não autorizou o início das obras, mas é interpretada legalmente como uma espécie de atestado da viabilidade econômica e ambiental da obra.
Apesar disso, os trabalhos de asfaltamento não começaram porque ainda dependem de outras duas licenças: a de instalação e de operação.
O processo ainda está em curso no Ibama. O órgão pediu estudos complementares ao Departamento Nacional de Infraestrutura Terrestre (DNIT), vinculado ao Ministério dos Transportes.
Em nota enviada à BBC News Brasil, o Ibama afirmou que aguarda o envio das documentações solicitadas e do requerimento da licença de instalação, que, na prática, autorizaria o início das obras.
Procurado, o Ministério dos Transportes mencionou que o relatório do grupo de trabalho concluiu que haveria viabilidade para as obras na rodovia, mas não respondeu sobre o andamento do processo de licenciamento.
Isolamento e subdesenvolvimento
Um dos exemplos usados por parlamentares da bancada da região Norte para defender a conclusão da rodovia é o caos no abastecimento de oxigênio no Amazonas durante a pandemia de Covid-19, em 2021.
Na época, em meio a uma onda da doença, hospitais ficaram sem oxigênio hospitalar durante praticamente um dia, o que teria levado à morte de pacientes graves. Sem ligação terrestre com o restante do país, o Estado dependeu do envio de oxigênio hospitalar por avião e barcos.
Outro argumento usado por eles é de que a rodovia poderia gerar desenvolvimento a uma região historicamente menos favorecida por políticas públicas como a região Norte.
A tese de que a rodovia poderia gerar desenvolvimento aparece no relatório do Ministério dos Transportes divulgado na terça-feira.
"Ficou claro durante as atividades do Grupo de Trabalho que a pavimentação da BR-319 é uma demanda dos cidadãos da região, que anseiam por mobilidade terrestre adequada, que conecte Manaus a Porto Velho e ao restante do Brasil. A rodovia pavimentada garantirá o provimento de serviços básicos, necessários ao desenvolvimento social e econômico da região", diz um trecho do relatório ao qual a BBC News Brasil teve acesso.
Danos irreversíveis
Por outro lado, ambientalistas e cientistas alertam que o asfaltamento completo da rodovia poderia levar a um desastre ambiental irreversível.
Eles temem que a obra possa levar ao chamado efeito "espinha de peixe", que é quando diversas estradas vicinais são abertas a partir da rodovia principal abrindo espaço para a degradação ambiental.
Esse efeito foi observado em rodovias como a BR-163, que liga Mato Grosso ao Pará. Os dois Estados lideram os rankings de desmatamento na Amazônia, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Um estudo divulgado em 2020 pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) aponta que o asfaltamento da BR-319 poderia levar a um aumento sem precedentes nas taxas de desmatamento na região cortada por ela e em seu entorno.
Esse desmatamento poderia levar à emissão de 8 bilhões de toneladas de CO? na atmosfera até 2050, agravando o processo de aquecimento global e comprometendo as metas assumidas pelo Brasil em acordos climáticos internacionais.
Além disso, inviabilizaria a meta assumida pelo governo Lula de acabar com o desmatamento ilegal na Amazônia até 2030.
Pressão do Congresso
Em meio à indefinição sobre o futuro da obra, parlamentares da bancada da região Norte passaram a pressionar o governo pela liberação da obra desde o início do ano passado.
Em maio de 2023, a ministra Marina Silva foi convidada a falar em uma audiência na Câmara dos Deputados e disse não ser a responsável pela paralisação da obra.
Segundo ela, o asfaltamento do trecho do meio ainda não foi feito porque o empreendimento seria muito complexo.
"Todo mundo falava, e virou uma lenda, que era a ministra Marina Silva que não deixava fazer a estrada [...] Eu saí (do Ministério do Meio Ambiente) em 2008 (sua primeira passagem pelo cargo). Se esse empreendimento fosse fácil, se não tivesse altíssimo impacto ambiental [...] é possível que já tivesse sido feito", disse na época.
Em outubro de 2023, os parlamentares da região Norte criaram uma Frente Parlamentar em Defesa da BR-319 com o objetivo de pôr ainda mais pressão no governo para a conclusão das obras da rodovia.
"A frente é uma ferramenta legislativa que nós temos no Congresso Nacional para cobrar e lutar por uma estrada que não é um pedaço de asfalto, mas a diferença entre o nosso direito constitucional de ir e vir. É a ligação do Estado de Roraima e Amazonas com o restante da federação", disse o deputado federal Fausto Santos Jr (União Brasil-AM), à época.
No final de 2023, houve uma nova onda de pressão pela obra.
A Câmara dos Deputados aprovou, em dezembro, o projeto de lei nº 4.994/2023. Ele prevê reconhecer a BR-319 como uma infraestrutura crítica e essencial à segurança nacional e, com isso, mudar o tipo de licenciamento ambiental ao qual partes da obra seriam submetidas.
O projeto prevê que, em vez do licenciamento tradicional, feito em três fases, partes da obra seriam submetidas a um licenciamento simplificado chamado de licenciamento por adesão. Esta modalidade é feita quase toda de forma eletrônica e, normalmente, é aplicada para empreendimentos com menor impacto poluidor ou degradador.
Este projeto, aliás, ajudou a deixar ainda mais evidente a oposição de parte do governo ao projeto.
Uma nota técnica do Ibama sobre a matéria de dezembro de 2023 foi contra o projeto.
"A proposta legislativa define medidas que visam atropelar o rito do licenciamento ambiental, eliminado procedimento que busca assegurar que o empreendimento seja executado atendendo às normas legais vigentes, o que em última análise pode gerar impactos, muitas vezes, irreparáveis", disse um trecho do parecer.
Em outro ponto do documento, o Ibama disse não haver justificativas para mudar o tipo de licenciamento ambiental da obra.
"Não justifica isentar uma obra de licenciamento ambiental pelo fato de ser uma obra de infraestrutura prioritária, quando, principalmente, estes impactos ambientais já foram identificados", disse outro trecho do parecer.
O relator do projeto no Senado é o senador Beto Faro (PT-PA), que já se manifestou favorável ao texto.
"A obra atende a um apelo da população que vive nessa região e que, há 30 anos, espera a melhoria da estrada", disse Faro à BBC News Brasil.
Segundo ele, o projeto não flexibilizaria o licenciamento ambiental da obra, como afirma a nota técnica do Ibama.
"Quero deixar claro que o projeto não flexibiliza o licenciamento ambiental. Dispensa apenas o licenciamento de baixo impacto, o que é diferente. Estamos estudando a matéria com todo o cuidado e o nosso parecer não irá tolerar qualquer tipo de violação: seja ambiental ou social", complementou o parlamentar.
Divisão interna
Dentro do governo, a obra também passou a ser alvo de disputa. O Ministério dos Transportes defende a conclusão do seu asfaltamento, o que coloca ainda mais pressão junto ao MMA de Marina Silva.
O relatório do grupo de trabalho divulgado na terça-feira propõe medidas que viabilizariam a conclusão da obra e evitariam o desmatamento desenfreado na área de entorno da rodovia.
Uma delas é o cercamento de um trecho de 500 quilômetros da rodovia para evitar a abertura de vicinais que poderiam potencializar o desmatamento ilegal. Além disso, o relatório sugere a construção de dois postos de fiscalização ao longo da estrada operados pelos governos estaduais e 172 passagens de fauna.
Para a ex-presidente do Ibama e atual coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo, o relatório do Ministério dos Transportes sobre a suposta viabilidade da BR-319 coloca ainda mais pressão em torno da obra.
"Esse relatório do GT era esperado e traz mais um elemento de pressão política pela liberação da reconstrução do trecho do meio da BR-319", disse Araújo à BBC News Brasil.
Para ela, o asfaltamento completo da BR-319 terá um impacto ambiental significativo.
"Trata-se de um empreendimento que deixará um legado de destruição ambiental. O caminho seria uma análise integrada com foco regional, que ponderasse com atenção, entre outros planos, o PPCDAm. Esqueçam desmatamento zero com a reconstrução e asfaltamento completo da BR-319", afirmou mencionando o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm).
Procurados, MMA, Ibama e Presidência da República não se manifestaram sobre o relatório do Ministério dos Transportes.