Marcus André Melo e Carlos Pereira lançam livro

Marcus André Melo e Carlos Pereira lançam livro "Por que a democracia brasileira não morreu?" em Belo Horizonte neste sábado (29/6)

crédito: Marcos Samerson

“Por que a democracia brasileira não morreu?”. A pergunta que dá título ao livro lançado neste ano pela Companhia das Letras foi repetida em diversos espaços do debate público nos últimos anos. Diante de quatro anos de mandato de Jair Bolsonaro (PL) na Presidência da República com uma lista reiteradamente alimentada de arroubos democráticos e um desfecho selado por uma tentativa de golpe na Praça dos Três Poderes, a solidez democrática do país tornou-se ponto de discussão comum.


No livro, o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Carlos Pereira; e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Marcus André Melo estendem a discussão para um período que começa em 2013 e termina em 2023. A década em que o Brasil passou por um impeachment, a prisão de um ex-presidente, a ascensão da extrema-direita e o retorno do líder antes condenado à presidência é o pano de fundo para uma análise sobre a força institucional brasileira diante de diferentes ameaças.


 

Mesmo que por vias tortas como a sede por poder do Centrão, a falta de articulação de um presidente e as reações rígidas do Judiciário, os autores argumentam que há no Brasil uma força institucional que resiste a arroubos autoritários. Neste contexto, até mesmo a ‘ineficiência’ sistêmica do país criaria uma rede de proteção contra ações extremistas.


Melo e Pereira estarão em Belo Horizonte neste sábado (29/6) a partir das 12h30 na Livraria Jenipapo para um bate-papo e sessão de autógrafos. O evento terá a participação do jornalista Bruno Carazza e da professora do Departamento de História da UFMG, Heloísa Starling. O lançamento acontece na Rua Fernandes Tourinho, 241, Savassi.


Em entrevista ao Estado de Minas, Carlos Pereira fala sobre as motivações para produção do livro, comenta a saúde das instituições democráticas brasileiras e conjectura os riscos de um hipotético segundo mandato de Bolsonaro. 



ENTREVISTA


O livro se debruça sobre acontecimentos entre 2013 e 2023. Por que a escolha deste período?


Na primeira parte do livro trabalhamos essa interpretação de que o presidencialismo multipartidário de coalizão brasileiro estaria em crise, que já estava em vias de de ir para mausoléu e não seria mais capaz de lidar com situações de limite. Então, eu e Marcus investigamos eventos muito traumáticos à luz da nossa interpretação do funcionamento do presidencialismo multipartidário. Essa foi a primeira motivação. E aí a gente selecionou quais foram esses eventos. Pensamos primeiro nas manifestações de 2013, porque foi um evento gritante no Brasil. Algumas semanas antes dos protestos de junho, a  ex-presidente Dilma tinha uma popularidade maior que a de Lula. Ela era muito popular,  fruto de toda a expansão econômica que teve o seu apogeu em 2010, quando o Brasil cresceu 7.5%. Então isso gerou um spillover positivo para todo mundo. As pessoas puderam comprar geladeira nova, fogão novo, carro novo, puderam se mudar para bairros melhores. Mas houve um descompasso gigantesco entre esses avanços na vida privada e a ausência de avanços na vida social, na vida coletiva. O transporte, a segurança e a saúde públicas continuavam ruins. 


Esse descompasso gerou essa crise. A gente queria ver como o presidencialismo multipartidário lidou com isso e as respostas oferecidas para isso. Vale também para outros eventos como o próprio impeachment da presidente Dilma. Ela não foi impedida por corrupção, em que pese os escândalos de corrupção que envolveram o PT terem afetado muito a sua popularidade e sua legitimidade, criando as condições para o impeachment. Outro evento traumático foi a chegada de Temer ao poder em um governo pós-impeachment. Em uma situação de extrema polarização e muita fragmentação partidária, o Temer surpreendentemente consegue montar uma coalizão majoritária homogênea e coloca para frente uma uma uma agenda hiper-reformista, sendo muito vitorioso no Congresso. 


A segunda parte do livro também é uma questão relacionada com o presidencialismo multipartidário. Ela diz respeito às ameaças concretas do governo Bolsonaro contra as instituições. Nossa intenção era ver até que ponto o arcabouço institucional do presidencialismo multipartidário daria conta desse estresse de confrontos quase diários com as instituições, com o Congresso, com o Judiciário, com a sociedade e com a mídia. Nesse caso, a gente também oferece uma interpretação, contra-intuitiva é verdade, mas institucional para esses dilemas. Então eu diria que a gente pegou esse período porque foi um período cheio de dilemas em que todo mundo dizia que o presidencialismo multipartidário estava moribundo, mas surpreendentemente, deu conta do recado em todos esses eventos.

 



Há no livro uma defesa de que as instituições seguiram funcionando…


No mundo do debate acadêmico, colegas que têm interpretações diferentes das minhas fizeram um meme: toda vez que eu falava alguma coisa, diziam que ‘as instituições estão funcionando’ virou um meme. O que a gente procura dizer aí é que essa pergunta é pobre. Ela não dá conta de explicar o que que a gente está querendo dizer. Independente das instituições estarem funcionando ou não as instituições são o que são. 


As instituições no Brasil são caracterizadas por vários elementos de dissenso: multipartidarismo; federalismo; bicameralismo; a própria separação de poderes no presidencialismo; independência do Judiciário; independência do Ministério Público. Essa miríade de atores políticos que tem a capacidade de dizer 'não', a capacidade de vetar iniciativas do governo, gera muitas ineficiências e problemas de governabilidade. Isso também gera uma frustração da opinião pública em relação ao sistema. No posfácio do livro, Barry Ames argumenta que este é o segredo da ineficiência. Quer dizer, o fato de o sistema político não ser eficiente gera uma proteção contra arroubos autoritários. Da mesma forma que gera problemas de governo para quem quer implementar políticas, também gera problemas para governos autocratas de aspirações hegemônicas que tentam passar o rolo compressor e aprovar a agenda deles fragilizando as organizações de controle…  



… essa ineficiência seria algo que você constata no sistema ou seria uma sensação popular de ineficiência?


Existe uma ineficiência governativa, mas uma eficiência democrática, vamos dizer assim. Essa ineficiência governativa e a dificuldade de implementar políticas gera uma barreira protetora contra os autocratas. Quando a gente diz que as organizações estão funcionando, elas estão funcionando na medida em que o desenho institucional formado por inúmeros pontos de veto criam barreiras de proteção e impedem que autocratas consigam colocar para frente a sua agenda iliberal. É nesse sentido.

 



Ainda sobre o funcionamento das instituições, vocês propõem uma saída fora do maniqueísmo e uma gradação para avaliar este critério. Esta é uma ideia que vale para o restante do livro? Podemos falar que a democracia sobrevive, mas há períodos de menor e maior pujança democrática?


Eu acho que momentos de maior estresse e menor estresse. Por exemplo, no momento que o ex-presidente Bolsonaro, na véspera de uma votação importante na Câmara dos Deputados sobre se iríamos continuar tendo ou não urnas eletrônicas, vai para a Praça dos Três Poderes e faz um desfile militar, isso claramente é uma uma tentativa de ameaça e intimidação às instituições. Esse é um estresse importante, mas que foi vencido pelas instituições. Na realidade, Bolsonaro foi um presidente muitas vezes derrotado, tanto no Congresso como no Judiciário. O fato das instituições terem sido capazes de impor derrotas sucessivas gerou um ambiente de segurança, de que seria muito difícil que iniciativas autoritárias daquele governo pudessem ser bem sucedidas.



O livro fala sobre a derrubada da Dilma e trata o impeachment como um instrumento democrático híbrido por ter uma dimensão política. Levando em conta que presidentes que cometem crimes, mas tem bom relacionamento com o Legislativo conseguem escapar de processos de impedimento, como esse instrumento pode ser visto como força democrática?


Impeachment não é uma questão de merecimento. Muita gente confunde isso. A gente procura destacar que, para que o impeachment aconteça, tem que haver uma espécie de uma tempestade perfeita, em que vários elementos têm que estar presente de forma conjunta.


Entre esses elementos, eu destacaria fundamentalmente a quebra da coalizão do presidente. Porque se o presidente consegue montar e gerir bem uma coalizão, por mais que ele tenha cometido um crime de responsabilidade, é muito difícil que esse impeachment prospere. Um bom exemplo foi o governo Temer. O procurador-geral da República na época, Rodrigo Janot, entrou com dois pedidos de impeachment tendo uma prova robusta que foi uma gravação do presidente com Joesley Batista no estacionamento do Palácio  na calada da noite. Mas, como o Temer era um cara que compreendia como ninguém como construir e gerir uma coalizão, ele conseguiu derrotar esse processo no nascedouro dentro da Câmara dos Deputados. Por outro lado, a presidente Dilma como não era uma boa gerente de coalizão e, como montou uma coalizão muito grande e heterogênea, isso gerou animosidades. 

 



O livro trata sobre uma espécie de freio legislativo imposto por Arthur Lira aos arroubos autoritários de Bolsonaro. Em que medida podemos classificar a ação do presidente da Câmara como um instrumento que favorece a democracia uma vez que a atribuição do Executivo de gerenciar o Orçamento foi afetada, por exemplo?



Vamos lembrar que ele se viu sem poder por escolhas dele. É importante frisar que ele se negou a jogar o jogo do presidencialismo multipartidário inicialmente. Bolsonaro foi eleito com a agenda antipolítica, ele foi eleito com uma agenda anti-institucional,  o populismo clássico da relação direta entre o líder e a massa de eleitores. Ele levou a ao máximo esse discurso ao ponto de, após poucos meses na presidência ter saído do seu próprio partido e governado sem partido. 


Então ele não só não tinha uma coalizão como ele não tinha partido. Só que essa estratégia se revelou para ele mesmo um equívoco. Ele só veio a perceber o equívoco dessa estratégia quando ele se viu diante da crise da pandemia e dos escândalos de corrupção de rachadinha que os filhos dele estavam envolvidos. Então ele disse: 'poxa eu eu não tenho um escudo protetor legislativo, eu não tenho nem partido político, eu estou ferrado, esses caras vão cortar a minha cabeça’. Então ele se aproxima drasticamente e numa situação muito vulnerável do Centrão. Esse foi o erro. Se ele tivesse se aproximado do Centrão desde o início do governo, como o Centrão assim desejaria, talvez ele tivesse negociado em condições muito melhores. Talvez ele não tivesse que criar o orçamento secreto, por exemplo. 



De alguma maneira você acredita que a não reeleição de Bolsonaro também demonstra uma força democrática? Porque ele poderia ter sucesso em algum arroubo autoritário caso continuasse no poder…


Muito difícil.  Provavelmente o tamanho dos partidos que dão sustentação a ele continuariam iguais e ele não seria majoritário. Lula, para ser majoritário hoje, montou uma coalizão de 16 partidos e muitos desses não são disciplinados nas votações.  A mesma dificuldade que o Bolsonaro enfrentou no primeiro mandato, enfrentaria no segundo também.


Logicamente que um segundo mandato de Bolsonaro seria um momento de muito mais estresse e confronto, mas não necessariamente seria sinônimo de erosão democrática ou de deterioração democrática, porque essas instituições que funcionaram no primeiro mandato continuariam funcionando no segundo. Nada me leva a crer que essas instituições não continuariam a funcionar no segundo.



Apesar desses cercos no Legislativo e no Judiciário, Bolsonaro não interrompeu seus arroubos autoritários e insuflou seus apoiadores. Você acredita que ataques como os ocorridos em Brasília no dia da diplomação de Lula e no 8 de janeiro podem ser uma revolta diante das respostas institucionais às tentativas golpistas anteriores?


Com certeza. Foi uma tentativa desesperada de setores que não se conformaram com a derrota e tentaram criar confusão com a ilusão de que militares e sociedade fossem apoiar e acabaram derrotados de forma acachapante.


O ponto fundamental é que populistas, sejam eles de esquerda ou de direita, não podem prescindir de andar no fio da navalha. Eles não podem se institucionalizar demais porque aí vão perder a conexão identitária com essa base de eleitores que eles precisam engajar. Mas eles também não podem só se conectar com essa base de eleitores e criar um caminho não institucional, porque aí eles têm os mandatos abreviados.



Para finalizar, para tentarmos responder de forma sintética a pergunta do título do livro, podemos dizer que a força de manutenção do status quo político e social no Brasil permitiu que passássemos pela última década sem uma ruptura democrática?


Acho que essa é uma leitura muito boa. Existe essa força de atração, como se fosse um núcleo gravitacional, em que em que todos esses elementos de  dissenso e de consenso do sistema político gravitam em torno. A democracia é um valor muito caro para o Brasil e essas instituições, de certa forma se agregam no sentido da sua manutenção. 


Isso não quer dizer que nós temos um sistema ideal, longe disso. A gente reconhece isso muito no livro e reconhecemos que isso gera um mal estar porque é muito difícil para o eleitor. O eleitor médio é até o eleitor sofisticado tem dificuldade de entender o funcionamento desse sistema de troca. As pessoas concluem que é um jogo sujo, um toma lá- dá cá, alimenta um cinismo cívico, mas a gente até brinca no livro: a torcida pode vaiar, mas o jogo continua.






Serviço:

“Por que a democracia brasileira não morreu?”

272 páginas

Carlos Pereira e Marcus André Melo

Companhia das Letras

2024