O Projeto de Lei 1.904/2024, que tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados e altera o Código Penal para criminalizar como homicídio o aborto acima de 22 semanas, provocou ontem o segundo dia de manifestações pelo país. Em Belo Horizonte, a Praça Sete, no coração da capital, foi ocupada por manifestantes contrários à proposta.
 
A interrupção de gravidez está prevista no artigo 124 do Código Penal, com pena de um a três anos, mas a mulher não vai presa, porque são impostas penas alternativas. A legislação atual determina três situações em que o aborto é permitido: se o feto for anencéfalo, se a gravidez for decorrente de estupro ou se não houver outro meio de salvar a vida da gestante. 
 


 
A proposta na Câmara, entretanto, desconsidera estes casos. E tramita em regime de urgência, ou seja, pode ser votada diretamente no plenário, sem passar antes pelas comissões temáticas da Câmara. A votação foi simbólica, portanto, não houve pronunciamento dos partidos. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), disse que a urgência foi acertada com todos os líderes partidários.

BRASIL NA CONTRAMÃO


Especialistas condenam a mudança abrupta no Código Penal. A professora de Relações Internacionais na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Marrielle Maia afirma que o Brasil está indo na contramão da maioria dos países e das recomendações das organizações internacionais. “Eu acredito que o projeto seja reflexo do que ocorre nos Estados Unidos com alguns movimentos conservadores”, afirma a professora.
 
Para o coordenador do curso de Relações Internacionais do Ibmec-RJ, José Niemeyer, o projeto é porta de entrada para outras discussões da extrema direita no Congresso. “É preciso oferecer à sociedade brasileira um projeto que não violente a mulher nem a família. Não vai ser só esse. Haverá outros projetos de cunho conservador, como pena de morte e porte de armas, trazendo cada vez mais o dissenso e a divisão da sociedade brasileira”, acredita.
 
“O Brasil pode ser percebido por países ocidentais de maneira crítica. Nós elegemos um presidente de centro-esquerda, Lula, e um Congresso centro-conservador em Brasília. Se começarmos a ter uma postura muito radical com relação a alguns costumes, podemos ter um retrocesso político, impedir uma discussão liberalizante sobre o tema”, analisa.
 
Atualmente, 77 países liberam o aborto totalmente, dependendo do tempo gestacional. Outros permitem o procedimento em casos de risco à vida da gestante. “Nosso país tem um potencial para uma sociedade mais inclusiva e moderna que discute democraticamente. Isso precisaria ser analisado pelos poderes como funcionaria em um país democrático, transparente e republicano. Em países como o Irã, onde o aborto é liberado em casos de risco à saúde da mulher, assim como no Brasil, mas lá essas discussões estão sujeitas ao regime teocrático”, avalia José Niemeyer.

PROCEDIMENTO LEGAL


No Brasil, existe o Projeto Vivas, uma organização não governamental e sem fins lucrativos, criada em 2020 com o intuito de auxiliar meninas, mulheres e outras pessoas com capacidade de engravidar a acessar os serviços de aborto legal e seguro no Brasil, pelo Sistema Único de Saúde, ou nos casos não permitidos pela lei brasileira no exterior. A advogada e fundadora do Vivas, Rebeca Mendes, conta que diversas mulheres chegam ao projeto de diferentes formas e muitas vezes encaminhadas pelas Defensorias Públicas.
 
“Mulheres chegam até a gente querendo fazer aborto, fazemos uma triagem para saber se podemos fazer no Brasil ou no exterior, na Argentina ou na Colômbia”, explica Rebeca. “Quando identificamos uma mulher vítima de violência sexual, anencefalia ou risco à vida, conseguimos resolver aqui no Brasil. Temos uma dificuldade muito grande de encontrar serviços de aborto legal que atendam mulheres em risco de vida, por exemplo”, afirma.
 
Apenas em 2023, seis adolescentes de até 14 anos realizaram abortos de forma legal pelo Projeto Vivas. Para Rebeca, a questão do aborto passa por discussões socioeconômicas. “Há um recorte de classes. Quando se fala em mulheres com gravidez indesejada que procuram informação, são mulheres brancas, de classe média alta que têm o próprio recurso. Em casos de violência sexual, a maioria são meninas, periféricas, afastadas dos grandes centros e em situação de vulnerabilidade social”, destaca.
 
Em nota, a Anistia Internacional declarou que, ao contrário das políticas de restrição, é dever do Brasil garantir medidas legislativas, judiciais, administrativas, orçamentárias, econômicas e outras para alcançar progressivamente a plena realização dos direitos sexuais e reprodutivos das meninas e mulheres brasileiras. “O Estado brasileiro precisa garantir o acesso pleno e irrestrito aos direitos sexuais e reprodutivos para todas as mulheres, meninas e todas aquelas que podem engravidar, inclusive garantindo o acesso oportuno, seguro e eficaz ao aborto”, diz a entidade.
 
“Instamos também o Estado a garantir que as pessoas que trabalham com o direito ao aborto, como ativistas, defensoras, educadoras, acompanhantes, doulas e profissionais de saúde, não sejam criminalizadas, intimidadas ou atacadas. Aqueles que as atacam devem ser responsabilizados”, afirmou também.

CRÍTICA DA ONU


O Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos criticou ontem o projeto em tramitação na Câmara. A porta-voz de direitos humanos da ONU, Liz Throssell, afirmou: “Estamos preocupados com a aprovação do procedimento de emergência para essa lei, que equipara o aborto com mais de 22 semanas a um homicídio”, afirmou. Ela ressaltou que o procedimento de urgência impediu debate adequado nas comissões parlamentares, essencial para avaliar se a legislação está em conformidade com os padrões internacionais de direitos humanos.
 
Throssell enfatizou que o acesso ao aborto legal e seguro está firmemente estabelecido nas leis internacionais de direitos humanos. “É absolutamente essencial para a autonomia das mulheres e meninas e sua habilidade de tomar suas decisões sobre seus corpos e vidas, livre de discriminação, violência ou coerção”, declarou.

CASOS DRAMÁTICOS


Pouco tempo depois de perder o pai, Maria (nome fictício), de 28 anos, descobriu que estava grávida. Sem recursos financeiros e emocionais, ela, que abdicou de parte da vida profissional e pessoal para cuidar da saúde do pai, se viu sem saída. “Eu estava em um relacionamento abusivo, conhecia havia pouco tempo e foi tudo muito intenso. Estava me sentindo muito mal na relação, mas comecei a desconfiar que poderia estar grávida. Quando contei sobre a gravidez, já havia dito para ele que não queria o filho”, contou.
 
O que para muitas mulheres é um sonho, para Maria foi motivo de desespero. “Ele começou a me tratar mal, a falar que eu estava destruindo a vida dele e que eu era má”. Apesar do envolvimento conturbado, o companheiro de Maria à época alegava querer ser pai e comunicou à família dela sobre a gestação.
 
“Eu falei para a minha família que queria tirar e a minha mãe me dizia que eu não tinha o direito de fazer isso com outra pessoa. Fui me deixando levar até os três meses e meio de gestação. Tive muitos sintomas, minha tireoide desregulou, tive baixa de vitaminas. Me vi completamente sozinha, desamparada e despreparada. Eu não tinha condições financeiras nem emocionais para ter um filho”, desabafou a jovem.
 
Marina admite que chegou a planejar a própria morte por medo de levar a gestação adiante. “Em um dia que tive uma briga muito difícil com esse cara, eu passei várias horas olhando do alto de um prédio pensando se teria coragem de pular, ou se iria para a praia e me afogava, ou se pulava na frente de um ônibus”, contou. Sem saída, ela chegou a pensar que “preferia morrer do que ter um filho”.
 
Ela diz que foi então que entrou em contato com uma amiga, que ofereceu ajuda para fazer o aborto clandestino. Comprou, por R$ 1,4 mil, 14 pílulas de um remédio comumente usado para o procedimento. “Minha amiga achou que eu iria morrer no chão da casa dela. A cada pílula, eu revirava de passar mal, tive vômitos, diarreia, delirava. Mas nada me fez desejar ter esse filho. Lembro disso todos os dias com alívio”, afirmou.

“FOI ASSUSTADOR”


Aos 38 anos, Ana (nome fictício) também teve gravidez indesejada e optou pelo aborto clandestino, porque não teve apoio de ninguém. “Não tinha com quem contar. Optei por não ir a uma clínica por medo, fiz na minha casa, sozinha, não queria contato com nenhum médico. Já vi amigas serem perseguidas pela polícia em clínicas por denúncias”, revela. “O processo foi assustador, eu consegui as pílulas de forma clandestina e tinha medo de ser denunciada. O procedimento foi dolorido psicologicamente e fisicamente. Não existe um protocolo oficial de saúde do estado que ofereça informações sobre como fazer o aborto. Então, você vai buscar essas cartilhas em organizações internacionais que divergem entre si e você não sabe o que fazer”, explicou Ana. Após três dias do procedimento, ela começou a sentir fortes dores e sangramento. “Eu não tinha a quem recorrer e não queria ir a uma clínica, mas comecei a passar muito mal, sentir muita dor; achei que estava tendo hemorragia”, contou.

* Estagiária sob orientação do editor Renato Scapolatempore
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