O presidente Luiz Inácio Lula da Silva conversa nesta segunda-feira (5/8) com o líder chileno Gabriel Boric em meio à tensão regional causada pelas eleições venezuelanas. Apesar de o Itamaraty afirmar que o assunto não configura como temática central do encontro, a expectativa é de que os chefes de Estado aproveitem a ocasião para debater o cenário. Do ponto de vista da política externa e interna, o petista enfrenta um dos maiores testes diplomáticos e de gestão de seu mandato enquanto busca manter o papel de liderança política na América do Sul. Na avaliação de especialistas, porém não haverá concordância política na visita.
"É mais do que natural que dois presidentes conversem sobre a região, especialmente em um encontro privado. É o momento de falar mais livremente", respondeu a secretária de América Latina e Caribe do Itamaraty, embaixadora Gisela Maria Figueiredo Padovan, ao ser questionada por jornalistas durante o briefing da viagem.
Os presidentes divergem. Boric adotou uma posição mais dura contra o regime Maduro, dizendo ser "difícil de acreditar" na reeleição do ditador. O Chile se alinhou com países, como a Argentina, Uruguai, Estados Unidos e Peru.
Como consequência, as nações tiveram seus corpos diplomáticos expulsos. O Brasil assumiu a embaixada argentina a pedido do governo de Javier Milei, para proteger os seis opositores de Maduro que estão refugiados no local, e que foram ameaçados de prisão pelo governo chavista. Questionada se o Brasil pode assumir a Embaixada do Chile, que também foi esvaziada, Gisela não comentou.
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Lula e Boric dificilmente vão formar um consenso sobre as eleições na Venezuela, mesmo sendo ambos líderes de esquerda. Vale lembrar que o chileno já fez, publicamente, duras críticas à proximidade entre o petista e Maduro.
Em março do ano passado, quando Lula chamou de "narrativas" as acusações de violação dos direitos humanos pelo regime chavista, Boric rebateu. "É uma realidade séria. Eu tive a oportunidade de vê-la nos olhos de centenas de milhares de venezuelanos que vivem na nossa pátria e que exigem uma posição firme e clara de respeito aos direitos humanos em todo o lugar, independentemente da coloração política do governante do momento", disse na ocasião.
Cooperação bilateral
Segundo a embaixadora Gisela, a visita de amanhã marca a reaproximação entre os dois países e o objetivo é diversificar uma relação que já é sólida. O Brasil é o terceiro maior sócio comercial da nação vizinha, com um fluxo de US$ 12 bilhões, levemente superavitário para o lado brasileiro. "Temos um comércio relativamente equilibrado com o Chile, mas acho que falta um pouco de diversificação. Nós exportamos basicamente petróleo, automóveis e carne, e importamos cobre, pescados e minério."
Um dos objetivos do Brasil é construir uma base de indústria de Defesa na região, considerando que os dois países já possuem parcerias militares. Por exemplo, o Chile negocia com a Embraer desde os anos 1970, e opera 22 caças brasileiros Super Tucano. O Brasil se coloca à disposição para quando o governo chileno renovar sua frota, e pretende também vender o cargueiro C-390.
Por sua vez, os interesses chilenos incluem segurança pública, segurança cibernética, combate ao crime e atuação em desastres naturais, já que o país é frequentemente atingido por terremotos, deslizamentos e outras catástrofes.
Segundo o chefe da divisão de Argentina, Uruguai e Chile, ministro Carlos Fernando Gallinal Cuenca, pelo menos 17 acordos de cooperação estão prontos para serem assinados em Santiago, e outros 10 estavam na fase final de negociação. "Nesse sentido, o adiamento facilitou para que uma lista que já era grande ficasse ainda mais longa", brincou o diplomata.
Os acordos incluem a certificação eletrônica de vinhos e bebidas, na agricultura, mineração, turismo, cooperação entre as academias diplomáticas dos dois países sobre questões de gênero — área em que o Chile lidera — cooperação em saúde pública, direitos humanos, governo digital, ciência espacial, e um novo acordo de extradição.
Outro projeto de interesse que será discutido com o governo chileno é a finalização do Corredor Bioceânico de Capricórnio, que ligará Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, ao litoral norte do Chile. A meta é criar um caminho rodoviário mais barato para escoar a produção do Centro-Oeste para a China e outros países da Ásia, por meio do Oceano Pacífico. A rota envolve Brasil, Chile, Argentina e Uruguai, e a estrada já está praticamente pronta. As nações discutem agora a modernização dos serviços aduaneiros e logísticos.
"Sem contar o desenvolvimento do próprio corredor. Ou seja, ao existir uma estrada, tem posto de gasolina, restaurante, então você vai criando um movimento ao longo da própria estrada", argumentou Gisela.
Sem concordâncias
Para a professora de direito internacional da Universidade de São Paulo (USP) Maristela Basso, a tomada de posição brasileira e da América Latina sobre a situação do pleito venezuelano certamente será tema da reunião.
"Lula deve buscar uma posição concertada. Daí porque Chile, Colômbia, Bolívia e Peru são países importantes. O Brasil não pode ficar numa posição isolada de apoio a Maduro nem de neutralidade. Terá que se posicionar. A guerra da Ucrânia e os últimos acontecimentos no Oriente Médio também estarão na pauta das reuniões", acredita.
O Brasil reivindica o papel de líder regional e usa essa estratégia para se cacifar como player global, como um representante dos países da região nos fóruns multilaterais e como representante de países periféricos de modo geral. Para tanto, precisa costurar um consenso representativo na América do Sul, analisa a professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mayra Goulart.
"Para que Lula seja bem-sucedido nessa dinâmica é fundamental que exerça um papel de ente estabilizador nos conflitos da região, ele não pode ser visto como um ator que coloca fogo na disputa, mas sim um player que atua para garantir a institucionalidade, e é dessa maneira o presidente brasileiro tem buscado se posicionar", observa.
"Lula tem deixado bem claro que nenhum outro país ou mesmo a OEA pode intervir de modo a exigir recontagem ou interferir de maneira deliberada na realização de processos e escolhas de outros países, no sentido de respeitar a autodeterminação dos povos. Para exercer essa função de liderança, cabe ao presidente fazer o que ele está fazendo no Chile, encontrar-se com as outras lideranças, articular um posicionamento o mais comum possível, o mais representativo de todos os entes aqui da região. Acredito que essa viagem deve ser entendida nessa direção", acrescenta.
O diplomata e professor Paulo Roberto de Almeida ressalta que Boric e Lula pertencem a duas famílias diferentes da esquerda.
"Boric é de uma esquerda renovada, democrática. Lula, pela formação do PT, que é um partido socialista esquerdista atrasado, adere a concepções anacrônicas do velho anti-imperialismo ou latino-americano. No caso da Venezuela, desde a reunião de líderes da América do Sul feita em Brasília no fim de maio de 2023, alguns representantes da esquerda e vários da direita condenaram a leniência com que Lula recebeu o ditador Nicolás Maduro. Ali, já ficaram bastante claras as diferenças entre as concepções dos dois dirigentes", aponta.
Na visão de Almeida, não há que se esperar concordância entre os presidente sobre questões políticas. "Veremos a retórica vaga geral em favor da integração, do desenvolvimento, da unidade latino-americana e do tratamento político dos conflitos, mas o encontro não configura uma reaproximação, uma vez que Lula e o PT continuam confirmando o apoio ao ditador Maduro enquanto que Boric e outros dirigentes já reafirmaram que as eleições não foram legítimas", frisa.
"Não cabe esperar uma aproximação simpática entre ambos. Na minha previsão, será um encontro um pouco hipócrita da parte de ambos. O Boric vai se esforçar pra não chocar muito o Lula sobre o apoio que este dá a Maduro e outras ditaduras. Evidentemente, o presidente não vai se esforçar para não confrontar a posição mais decisiva de Boric no confronto com a Venezuela", conclui.