O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) está no centro dos questionamentos a decisões do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), contra políticos e aliados bolsonaristas, alvo de inquéritos que tramitam em seu gabinete.
O TSE, que tem como função principal realizar eleições a cada dois anos e garantir que elas ocorram de forma íntegra, produziu, a pedido de Moraes, relatórios sobre suspeitos de propagar desinformação sobre o processo eleitoral e de ter realizado ataques a autoridades. Isso foi alvo de críticas alegando que não teriam sido obervadas as etapas processuais normalmente esperadas neste caso.
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Depois, os relatórios foram usados por Moraes em decisões tomadas no STF, como bloqueio de contas em redes sociais, suspensão de passaporte e congelamento de contas bancárias.
Moraes esteve à frente do TSE em um contexto de fortes ataques ao processo eleitoral, que culminaram no 8 de janeiro de 2023, quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) insatisfeitos com a eleição do presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) invadiram e depredaram o Palácio do Planalto, o Congresso e o STF.
O ministro justificou sua atuação argumentando que era presidente do TSE e, portanto, tinha poder de polícia para solicitar os relatórios.
Conforme revelou o jornal Folha de S.Paulo, esses documentos foram produzidos pela Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED), órgão ligado à presidência da Corte eleitoral.
Segundo mensagens privadas trocadas entre assessores de Moraes no STF e no TSE, o ministro teria orientado o teor dos relatórios, já mirando determinados alvos e visando determinadas punições.
A BBC News Brasil procurou o TSE por meio da sua assessoria, mas a Corte não respondeu sobre críticas à atuação do ministro.
A atual presidente da Corte, a ministra do STF Cármen Lúcia, disse na quinta-feira (15/8) que Moraes foi "um grande ex-presidente [do TSE], que cumpriu um enorme papel, como é de conhecimento geral do país, nas eleições de 2022".
Moraes, por sua vez, refuta que tenha cometido qualquer ilegalidade e disse, em uma nota, que "todos os procedimentos foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria Geral da República".
Ele também argumentou que, "no exercício do poder de polícia, tem competência para a realização de relatórios sobre atividades ilícitas, como desinformação, discursos de ódio eleitoral, tentativa de golpe de Estado e atentado à Democracia e às Instituições".
O episódio levantou questionamentos sobre os limites da atuação do TSE. Especialistas em direito eleitoral ouvidos pela BBC News Brasil explicam quais, afinal, são os poderes desse tribunal – e divergem sobre se houve abusos no uso da Corte eleitoral por Alexandre de Moraes.
Entenda a seguir, em três pontos, o que faz a Justiça Eleitoral, o que é seu poder de polícia e qual a atuação da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação – órgão criado em 2022 e chamado de "obscuro" por críticos do ministro.
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1. O que faz a Justiça Eleitoral?
A Justiça Eleitoral tem natureza diferente de outros braços do Poder Judiciário, como as Justiças Estaduais, Federal ou do Trabalho, conforme ressaltam a advogada Carolina Lobo, integrante da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), e o advogado Horácio Neiva, professor do Instituto de Ensino Superior (iCEV).
Para além de julgar processos eleitorais, sua principal função é executar eleições a cada dois anos e garantir que o processo eleitoral ocorra de forma íntegra, sem favorecimentos a um ou outro concorrente.
Para cumprir essa missão, o TSE tem atuação legislativa, ao aprovar resoluções com regras para o processo eleitoral. Essas resoluções regulamentam leis aprovadas pelo Congresso ou criam novas diretrizes quando não há legislação ainda, como foi feito este ano com a adoção de restrições ao uso de inteligência artificial na campanha eleitoral.
Além disso, a Justiça Eleitoral tem atuação administrativa, ao executar e fiscalizar as eleições. Isso, explica Neiva, permite a criação de órgãos, como a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação, e dá aos juízes um papel mais pró-ativo na tomada de algumas decisões.
"Usualmente, associamos a atuação da Justiça àquela ideia de ter um processo judicial, em que o juiz só atua quando é demandado por alguém", nota Neiva.
"Mas a Justiça Eleitoral tem funções tipicamente administrativas. Talvez tenha mais funções administrativas do que propriamente jurisdicionais, porque cabe a esses juízes, inclusive ao presidente do TSE, organizar as eleições e fiscalizar o processo eleitoral."
É nesse contexto, acrescenta o professor do iCEV, que é dado poder de polícia aos juízes eleitorais para coibir de maneira célere ilegalidades no processo eleitoral. Mas esse poder também tem limites, ressalta Neiva.
Cármen Lúcia estará à frente da Justiça Eleitoral nas eleições municipais desse ano, enquanto as eleições de 2026 ocorrerão na presidência do ministro André Mendonça.
O TSE tem composição rotativa e é sempre formado por sete integrantes, sendo três ministros do TSE, dois do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e dois advogados nomeados pelo presidente da República, a partir de uma lista formada pelo Supremo.
A presidência do TSE é sempre exercida por um ministro do STF.
2. O que é o poder de polícia? Houve abuso por Moraes?
O poder de polícia, explicam os especialistas, é quando órgãos do Estado têm poder para fiscalizar e garantir o cumprimento de normas no seu âmbito de atuação. Isso é mais comum no Poder Executivo.
"Então, órgãos sanitários têm poder de polícia em relação a medicamentos e à limpeza de ambientes públicos. A guarda municipal, em muitos municípios, têm poder de polícia relativo ao trânsito", exemplifica João Pedro Pádua, professor de direito processual penal da Universidade Federal Fluminense (UFF).
No caso do Poder Judiciário, a Justiça Eleitoral é a única com poder de polícia, ressalta a advogada Carolina Lobo, integrante da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).
Para alguns analistas, esse poder está previsto de forma ampla no artigo 35 do Código Eleitoral, que prevê que compete aos juízes "fazer as diligências que julgar necessárias à ordem e presteza do serviço eleitoral". "O juiz pode agir de ofício para cessar práticas ilegais", afirma Lobo.
"Se estiver acontecendo, no dia da eleição [quando não é permitido fazer campanha], uma passeata de um candidato, uma aglomeração enorme de pessoas, o juiz eleitoral pode determinar, por exemplo, a apreensão dessas pessoas."
Já outros entendem que o poder de polícia está restrito à atuação contra a propaganda eleitoral irregular, porque isso está previsto expressamente no artigo 41 da legislação eleitoral. Mas própria Lei Eleitoral, porém, estabelece limitações a esse poder, nota Horácio Neiva.
"O poder de polícia se restringe às providências necessárias para inibir práticas ilegais, vedada a censura prévia sobre o teor dos programas a serem exibidos na televisão, no rádio ou na internet", diz trecho do artigo 41.
Além disso, a súmula 18 do TSE também estabelece que esse poder de polícia não permite aplicação de multa por propaganda eleitoral em decisão de ofício.
Para alguns especialistas, como Horácio Neiva, a atuação de Moares teria extrapolado esse poder de polícia.
Neiva ressalta que a jurisprudência do TSE alargou o conceito de propaganda ilegal para abarcar também a disseminação de desinformação no contexto eleitoral.
Na sua visão, porém, Moraes não poderia usar esse poder de polícia para bloquear contas nas redes sociais ou aplicar multas de ofício, nem tomar decisões em inquéritos criminais, ou seja, fora do âmbito da Justiça Eleitoral.
"Algumas decisões não estavam sendo tomadas no âmbito de questões afetas à propaganda eleitoral. Elas estavam sendo tomadas no âmbito de inquéritos criminais, que estão em tramitação no Supremo Tribunal Federal", ressalta.
"E, não só para determinar retirada de conteúdo das redes, como o poder de polícia autoriza. Eram decisões que extrapolam os limites desse poder de polícia, que é uma aplicação de multa e também bloqueio de perfis."
Moraes comentou as reportagens do jornal Folha de S.Paulo na quarta-feira (14/8), durante sessão do STF.
"Como presidente [do TSE], tenho poder de polícia e posso, pela lei, determinar a feitura dos relatórios", argumentou o ministro.
Ele disse ainda que não acionou a Polícia Federal (PF), porque a instituição não estaria colaborando com as investigações.
A fala parece uma referência ao período do governo Bolsonaro (2019-2022), já que o presidente tem poder de nomear a direção da PF. O órgão do TSE, porém, continuou sendo acionado em 2023, já durante o governo Lula, segundo a reportagem da Folha de S. Paulo.
"Obviamente, o caminho mais eficiente da investigação naquele momento era solicitação ao TSE, uma vez que a Polícia Federal, lamentavelmente, num determinado momento, pouco colaborava com as investigações", disse.
Para Neiva, o TSE não tem poder de substituir a PF: "O TSE não é um órgão de investigação. A omissão da PF não pode ser suprida por um órgão do Tribunal. Tanto é que, em casos de crimes eleitorais, o inquérito é conduzido pela PF, e não pela própria Justiça Eleitoral".
3. O que é a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação?
O TSE adotou, nos últimos anos, novas normas e estruturas para lidar com a disseminação de informações falsas e ataques ao sistema eleitoral brasileiro, principalmente no ambiente digital.
O objetivo era tanto combater possíveis conteúdos ilegais das campanhas, como coibir ataques falsos ao sistema eleitoral, como alegações infundadas de que as urnas eletrônicas não seriam seguras.
Uma portaria do TSE criou em 2019 o Programa de Enfrentamento à Desinformação, tornado depois uma política permanente, em 2021, em outra portaria.
Já em 2022, quando o TSE era presidido pelo ministro Edson Fachin, a AEED foi criada por meio da resolução TSE nº 23.683, que reorganizou vários órgãos internos da Corte.
Não há, porém, um documento oficial que preveja as atribuições da AEED, órgão diretamente ligado à presidência da Corte eleitoral.
De acordo com a assessoria do TSE, "a unidade é responsável por coordenar as ações promovidas para conter o impacto negativo das notícias falsas sobre as urnas eletrônicas, o processo eleitoral e os integrantes da Justiça Eleitoral".
Segundo a BBC News Brasil apurou, a AEED tinha uma função mais analítica na gestão do Fachin. Foi na gestão Moraes que ganhou um caráter investigativo.
As mensagens reveladas pelo jornal mostram que servidores do gabinete de Moraes no STF passaram a acionar diretamente Eduardo Tagliaferro, então chefe da AEED, com pedidos de informações.
As conversas teriam ocorrido entre agosto de 2022 e maio de 2023 — ou seja, durante e depois da campanha eleitoral que levou à vitória de Lula e à derrota de Bolsonaro.
Airton Vieira, juiz instrutor dos inquéritos no STF, solicitava, informalmente, por meio de mensagens, relatórios sobre investigados nos inquéritos das chamadas fake news e das milícias digitais.
Algumas mensagens reveladas mostram, por exemplo, que Moraes e assessores pediram a produção de um relatório sobre o economista Rodrigo Constantino, apoiador de Bolsonaro, a partir de publicações dele nas redes sociais.
Em novembro de 2022, Airton Vieira encaminhou para Tagliaferro uma captura de tela de conversa com Moraes na qual o ministro pediria: "Peça para o Eduardo analisar as mensagens desse [Constantino] para vermos se dá para bloquear e prever multa". Vieira pediu para Tagliaferro "caprichar" no relatório.
Segundo a Folha de S.Paulo, em nenhum dos casos havia a formalização de que os relatórios do TSE teriam sido produzidos a pedido de Moraes ou do STF.
No caso de Constantino, uma decisão do início de janeiro de 2023 ordenou a quebra de sigilo bancário do investigado, bem como o cancelamento de seus passaportes, bloqueio de suas redes sociais e intimações para que fosse ouvido pela Polícia Federal.
Essa decisão mencionava "ofício encaminhado pela Assessoria Especial de Desinformação Núcleo de Inteligência do Tribunal Superior Eleitoral", sem esclarecer que o pedido partira do gabinete do ministro no STF.
Outras mensagens entre assessores do ministro reveladas pelo jornal mostram que a AEED teria sido acionada, também, para checar ameaças a Moraes e seus familiares e, ainda, para verificar a ficha criminal de um prestador de serviço que faria uma obra em sua casa.
A BBC News Brasil questionou a assessoria de imprensa do TSE sobre as críticas ao funcionamento da AEED, mas não obteve uma resposta.
A reportagem apurou que o comando da Corte entende que não houve qualquer desvio no uso do órgão, porque é sua função também contribuir para a segurança dos integrantes do TSE.
Para a advogada Carolina Lobo, não houve uso irregular da AEED, porque o órgão foi usado apenas para produzir relatórios sobre conteúdo ilegal que estava público, como mensagens inverídicas sobre o processo eleitoral.
"E o poder de polícia dá ao juiz eleitoral o dever de fazer cessar práticas ilegais, então ele [Moraes] se restringe a essas providências, de inibição de práticas Ilegais", argumenta.
Já críticos do ministro, como o ex-procurador da Lava Jato e ex-deputado federal Deltan Dallagnol, dizem que o órgão seria "obscuro".
Em abril, quando a rede social X disponibilizou ao Congresso dos Estados Unidos notificações para derrubar conteúdos por ordem de Moraes, Dallagnol criticou o fato do Ministério Público não ser acionado previamente às decisões de Moraes fundamentadas nos relatórios.
"Os arquivos do Congresso dos EUA mostram que o órgão alertava Moraes, que mandava censurar, e só depois pedia opinião do MP [Ministério Público]", escreveu em sua conta no X.
Para Horácio Neiva, não há qualquer problema em a AEED produzir relatórios. Ele considera questionável, porém, que o órgão produza documentos visando conclusões solicitadas previamente por Moraes.
"Por exemplo, o juiz eleitoral, no município em que ele está atuando, pode todos os dias passear pela cidade para ver se tem algum ato ilícito. Isso está dentro do poder de polícia dele. Então, esse órgão fazer monitoramento de redes sociais também não tem nada necessariamente ilícito", compara.
"A grande questão não é se o órgão estava fazendo um monitoramento de forma imparcial, verificando atos ilícitos, e sim se ele estava sendo direcionado para produzir relatórios com vistas a dar uma aparência de legitimidade a decisões de ofício do ministro Alexandre de Moraes no Supremo."