Acompanhar a política nacional nos últimos anos tornou-se uma atividade indissociável de consumir também as pautas religiosas que regem votações, propõem leis e elegem nomes para todos os poderes da República. Nesse sentido, a bancada evangélica do Congresso Nacional se destaca por seu tamanho e organização. O estágio contemporâneo, contudo, não se deu do dia para a noite e a influência das igrejas protestantes históricas e neopentecostais foi construída ao longo de décadas de transformações das denominações que impactaram no cenário social do Brasil e suas casas legislativas. Essa história é contada em “A bancada da bíblia: uma história de conversões políticas”, lançado pela Todavia neste mês de setembro.


O livro narra a história da participação evangélica na política brasileira desde quando o país era oficialmente católico e outras religiões eram proibidas de participar da vida pública. Passando pela aceitação do jogo eleitoral dentro das próprias instituições, o jornalista André Ítalo Rocha conta como os chamados ‘crentes’ se organizaram, foram voz importante na Assembleia Nacional Constituinte após a ditadura militar e, desde então, só aumentaram sua relevância em Brasília e, por conseguinte, em todo o território nacional.


Em entrevista ao Estado de Minas, o autor fala sobre a obra, comenta momentos-chave para a formação da bancada evangélica no Congresso Nacional e conjectura os próximos passos da frente parlamentar que vive hoje seu momento mais midiático.





 

Como se deu a ideia da pesquisa e criação de um livro com foco na história da bancada evangélica?


Eu sou jornalista, então estou sempre lendo o noticiário e acompanhando o que está acontecendo. Em geral, a imprensa costuma fazer aquelas matérias sempre após a eleição para dizer sobre o crescimento da bancada evangélica e eu comecei a me perguntar desde quando existe a bancada, desde quando existem evangélicos no Congresso Nacional. Porque as coberturas que se fazem hoje sobre bancada evangélica falam muito sobre o momento atual.


Então eu comecei a pesquisar e a primeira coisa que eu encontrei foram trabalhos acadêmicos. Tem muitos cientistas políticos e sociólogos que pesquisam bastante a relação entre religião e política e um nome que me chamou atenção ao longo das minhas leituras foi o de Levy Tavares (primeiro líder evangélico eleito para o Congresso), porque era um nome apenas citado nos trabalhos e nas matérias que eu já tinha encontrado.


Antes de ele morrer, eu descobri que ele morava em São Paulo e entrei em contato, expliquei que estava curioso e perguntei se ele topava falar comigo.  Ele me deu longas entrevistas e foi muito legal, ele me contou toda a história e foi a partir daí que eu pensei que poderia fazer um livro contando a história dos evangélicos na política. Eu pensei “achei o primeiro, agora vamos atrás dos outros”.



No livro você fala também sobre a dificuldade em estabelecer um número exato para a bancada, como foi trabalhar com essa questão?


Foi uma dificuldade , principalmente porque a imprensa começou a acompanhar a bancada evangélica muito recentemente. Existe uma cobertura mais sistemática, talvez de uns 15 anos pra cá. Um momento simbólico foi quando o deputado Marcos Feliciano se tornou presidente da Comissão de Direitos Humanos e aquilo causou um grande alvoroço. Acho que é a partir daquele momento que a imprensa passou a acompanhar mais de perto os evangélicos. Antes disso havia reportagens muito pontuais. 


Nesse contexto, a própria imprensa começa a ter essa curiosidade, de saber quantos são os deputados da bancada e os próprios jornalistas começam a fazer seus levantamentos e pedem para a Câmara dos Deputados tentar estimar quantos são. Mas são números que muitas vezes não batem em levantamentos feitos por jornalistas, outros por cientistas políticos e até os feitos dentro da própria bancada evangélica.


Eu fui então tentando estabelecer alguns critérios. O primeiro deles foi só confiar em listas que apresentam todos os nomes, porque aí eu posso checar. Eu percebi que algumas listas não eram muito confiáveis, inclusive uma que a própria Assembleia de Deus divulgou na eleição passada que coloca Celso Russomanno como um deputado evangélico e ele não é. Ele é católico, mas teve uma época em que ele era muito próximo da Igreja Universal e aí rolou um engano.  E tem também a dificuldade de que muitos evangélicos não tenham a agenda cristã como a sua principal agenda. Há muitos evangélicos, especialmente os protestantes históricos, que são mais ligados às pautas econômicas, por exemplo.



A Assembleia Nacional Constituinte foi vista como uma oportunidade para os evangélicos ingressarem na política. Podemos dizer que ali está o embrião da bancada hoje existente?



A Constituinte foi o divisor de águas, tanto é que naquela época surge pela primeira vez a expressão” bancada evangélica”, um termo que foi criado pela imprensa. O aparecimento repentino de de muitos evangélicos na constituinte com 32 deputados eleitos  foi impressionante, porque até então você tinha só casos pontuais. E eles foram eleitos a partir de uma mobilização, principalmente a partir da Assembleia de Deus, que colocou também pastores, embora eles fossem e seguiram sendo uma minoria entre os parlamentares evangélicos.


Isso chamou a atenção da Imprensa e o pessoal começou a fazer matérias. A própria repercussão sinaliza a relevância que o que o bloco evangélico assume a partir dali e não só porque eles estavam lá, mas também porque eles passaram a ter uma agenda. Ainda que ela estivesse apenas engatinhando e eles não fossem tão organizados como são hoje, houve ali um esforço inicial para definir aqui alguns pontos em comum, algumas pautas pelas quais a brigariam. Então a Constituinte, de fato, pode ser definida como o embrião do que é hoje a bancada evangélica ou um primeiro esboço do que é hoje a bancada evangélica




O livro narra episódios da Constituinte que ajudam a entender o lado moral e fisiológico dos evangélicos em Brasília. De um lado, a luta pela concessão de rádios e televisões, de outro uma atuação para evitar que nossa legislação adotasse termos como “orientação sexual”. Como a atividade dos evangélicos naquele momento nos explica sobre seu comportamento no poder?



Esse foi um foi um esforço meu ao longo do livro: tirar um pouco esse senso comum de que os deputados evangélicos são basicamente uma bancada fanática. De que eles são meramente deputados ideológicos que estão ali para para defender pautas de costumes. Eles muitas vezes têm esse comportamento e algumas pautas que são bastante inegociáveis, mas também agem como políticos do centrão, tanto é que a maioria dos deputados evangélicos está nos partidos do centrão.


Essa atuação da bancada evangélica na constituinte é uma uma caracterização, uma primeira movimentação que indica como eles agem até hoje. Na questão das concessões de rádio, por exemplo, você tem uma negociação muito baixa de troca de votos por concessão de rádio e o curioso é que, embora eles já tivessem um pouco dessa característica fisiológica e pragmática, como eram ainda muito inexperientes politicamente eles não tinham muita vergonha disso. Muitas vezes, eles falavam mesmo que trocavam os votos porque as rádios fariam o bem da igreja, então isso seria justificável. Então eles tinham um pouco dessa inocência ou ingenuidade política que foi se reduzindo ao longo do tempo.


A entrada da Igreja Universal do Reino de Deus na política deu um novo gás à bancada?


Acho que, na verdade, a Universal conseguiu manter o protagonismo dos evangélicos  presente nos anos 1990. Ela chegou no momento em que a bancada estava um pouco em baixa porque teve a história das concessões de rádio que pegou muito mal na comunidade, tanto é que na eleição de 1990 a bancada diminuiu. E como os principais temas em termos de costumes já tinham sido encaminhados na Constituinte, eles chegam na nova década sem ter muito o que discutir.  


Quando a Universal chega com essa pauta muito focada em TV e rádio, impostos e questões mais institucionais  é um momento que a bancada evangélica está um pouco enfraquecida e a Universal chega para agir quase que sozinha. Por isso eu digo que ela não reforça muito a bancada, já que estava atuando de maneira muito isolada e só vai se aliar a outras igrejas mais para frente. Mas é curioso porque a Universal chama a atenção para a importância de ter essa atuação também institucional, algo como “a gente não está aqui só para falar de aborto, casamento gay e drogas” com uma certa megalomania do Edir Macedo, ela se diferencia da bancada da Constituinte.



O livro chega aos anos 2000 mostrando como os evangélicos se adaptaram ao jogo político, ora apoiando Lula e Dilma, ora se aliando ao impeachment. Como você avalia esse momento de volubilidade até a chegada de Jair Bolsonaro como um elemento aglutinador?


O curioso dos anos 2000 é que você começa a ter, pela primeira vez, uma disputa muito clara dos candidatos presidenciais pelo apoio das igrejas. Isso chegou a acontecer um pouco na eleição do Collor e nas duas eleições do Fernando Henrique mas não de maneira decisiva. A partir de 2002 é que começa a ter uma uma briga para ter apoio dos dos pastores já no primeiro turno. A Assembleia de Deus apoia José Serra, o Malafaia chegou a apoiar o Lula naquela eleição. O Anthony Garotinho, por ser evangélico, já conseguiu ter ali um apoio maior de outras igrejas. No segundo turno a briga foi maior ainda. Então havia essa divisão. 


O Bolsonaro chega um pouco para para aglutinar todos esses apoios em torno dele. Claro que sempre vai ter aqueles pastores mais progressistas que vão apoiar um candidato de esquerda, mas eles vão sempre vão ser minoria. Se antes você tinha muitos candidatos e nenhum deles muito claramente identificado com a pauta  cristã conservadora, o Bolsonaro chega para ser esse cara que consegue atrair quase todo mundo.


Ele, embora fosse um deputado do baixo clero e não tivesse tanta importância nas negociações, estava familiarizado com o fisiologismo e pragmatismo do centrão. E ele também soube se moldar saindo das pautas mais ligadas ao militarismo para abraçar com muita ênfase questões morais como a luta contra o casamento gay, por exemplo. Ele abraça de vez essa essas pautas à medida que vai se aproximando a eleição presidencial de 2018 e com mais força ainda quando de fato está em campanha. Mesmo depois de eleito ele percebeu que não podia deixar isso de lado. Ele se batiza no rio Jordão e ao mesmo tempo ele não nega o batismo católico, então ele fica um pouco um pé em cada lado. Mas ele de fato foi o presidente que mais que mais conseguiu atrair esse voto evangélico.



Mesmo com comportamento fisiológico que levou a diferentes comportamentos ao longo do tempo, a bancada evangélica manteve em agendas de costumes como a luta contra o casamento gay uma espécie de âncora ou bússola moral. Isso pode fazer o caminho reverso e influenciar no comportamento visto dentro das igrejas?


Esse tema aparece ao longo de toda a história, o próprio Marco Feliciano fala que foi isso que motivou ele a entrar pra política, sendo que antes ele era um cara meio avesso ao jogo. Mas existe um desafio para a bancada evangélica que é a sociedade. A sociedade muda e hoje você tem uma aceitação muito maior de temas relacionados à pauta LGBTQIAPN+. Então vai ficando cada vez mais difícil manter acesa essa chama. Eu digo isso porque as igrejas evangélicas e os evangélicos de uma maneira geral, não só os políticos, não são alheios ao que acontece na sociedade. Eles também se deixam influenciar assim como buscam influenciar a sociedade.


Hoje há dois movimentos: os evangélicos estão crescendo, mas ao mesmo tempo a aceitação aos homossexuais e a comunidade LGBTQIAPN+ de uma maneira geral também está crescendo. Então pode chegar um momento em que você pode ter um grupo relevante de evangélicos moderados que talvez aceitem essa questão. Só que só que aí tem um outro detalhe: A comunidade evangélica é muito mais heterogênea do que quem está lá no Congresso. Se a maioria dos evangélicos são pessoas negras pobres e mulheres, quem está lá no Congresso, em geral, são homens brancos, muitos deles com uma origem privilegiada. Os deputados até podem ter entre eles uma convicção em relação a essa pauta que talvez não mude, mas pode se tornar mais difícil para eles continuar a defendendo e encontrar o mesmo grau de apoio dos seus eleitores  evangélicos. 


Há também o desafio de que os evangélicos não são maioria no Congresso. Hoje eles são ali um pouco menos de 20%. Se eles quiserem defender uma pauta mais polêmica vão precisar do apoio de mais gente, vão precisar pelo menos fazer uma aliança com o pessoal do centrão e o pessoal do centrão também é sensível ao que a sociedade fala em termos de costumes. A gente viu muito isso nesse último projeto do aborto (PL 1.904/2024, que equiparava o aborto ao homicídio, mesmo em casos de violência sexual) que foi que foi discutido no primeiro semestre. Pareceu que a coisa ia andar, o tema estava ganhando força, mas imediatamente houve uma repercussão na sociedade muito contrária e a pauta logo deu uma esfriada porque os deputados do centrão não evangélicos perceberam que era mesmo uma roubada manter aquela discussão.



SERVIÇO


A bancada da bíblia: uma história de conversões políticas

André Ítalo Rocha

304 páginas

Editora Todavia

2024

R$ 79,90

e-book: R$ 64,90


 

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