As recentes polêmicas envolvendo o governo federal e o Movimento Negro revelam dinâmicas profundas de fragilidade na construção de políticas de igualdade racial e de gênero. Em ministérios como o das Mulheres e o da Igualdade Racial, onde a promoção de pautas relacionadas à inclusão deveria ser uma prioridade, a convivência com denúncias de racismo, assédio moral e exonerações arbitrárias tanto expõe uma crise interna quanto provoca um distanciamento dos movimentos sociais que historicamente lutam por esses direitos.

No Ministério das Mulheres, os relatos sobre racismo e o ambiente de trabalho tóxico, especialmente para as mulheres negras, apontam para um cenário que contrasta fortemente com a imagem de avanço nas pautas raciais e de gênero defendidas pelo governo. O impacto disso sobre a imagem pública do ministério tem sido devastador. Ao longo dos últimos meses, houve um esvaziamento institucional que contribuiu para aumentar o clima de instabilidade e desconfiança.

A relação entre as pautas raciais e o governo, que deveria ser de fortalecimento e construção conjunta, começa a dar sinais de desgaste. Isso é exemplificado pelas críticas feitas por entidades importantes do Movimento Negro ao Ministério da Igualdade Racial. As demandas por maior participação social e por uma abordagem mais contundente nas políticas de igualdade racial refletem uma insatisfação acumulada. O afastamento de lideranças-chave dentro da estrutura do governo, como o ex-secretário Yuri Silva, só aprofunda essa desconfiança, criando um vazio que o Movimento Negro tem encontrado dificuldade em preencher.

Por outro lado, essa desconexão não se limita apenas às questões internas do governo. As exonerações e demissões de figuras que representam as lutas históricas do Movimento Negro ecoam um sentimento de deslegitimação dessas pautas, sugerindo uma ruptura entre a base social que apoiou a eleição de Lula e a estrutura governamental que, em tese, deveria representar esses interesses. Em particular, a crítica dos terreiros de candomblé à condução das políticas para as comunidades tradicionais e quilombolas indica que há uma percepção de que o governo, apesar de suas promessas, não tem sido capaz de articular as devidas respostas para esses grupos.

O esvaziamento do diálogo entre o governo e as organizações representativas das comunidades negras e tradicionais também levanta preocupações sobre o futuro das políticas públicas voltadas para essas populações. A falta de diálogo mencionada pelas entidades religiosas é um sintoma de uma gestão que parece mais preocupada com a manutenção de sua imagem do que com a construção de políticas que respondam efetivamente às necessidades desses grupos. A crítica sobre a falta de continuidade de programas iniciados em gestões anteriores reforça essa percepção.

Para além das questões imediatas envolvendo as exonerações e os incidentes de racismo, há uma preocupação de que o distanciamento do Movimento Negro possa ter consequências de longo prazo na formulação e implementação de políticas públicas no Brasil. As tensões revelam que o atual governo enfrenta dificuldades em conciliar suas promessas de campanha com a realidade dentro das estruturas de poder, e a ausência de respostas rápidas e eficientes pode comprometer o avanço de políticas essenciais para a igualdade racial e de gênero.

Os episódios recentes, ao escancarar a fragilidade das políticas raciais e de gênero, também mostram o quanto o racismo estrutural continua a permear as instituições de poder no Brasil. Mesmo em espaços criados para proteger e promover os direitos de grupos historicamente marginalizados, como o Ministério das Mulheres e o Ministério da Igualdade Racial, práticas de discriminação e deslegitimação de pautas persistem. Isso expõe a dificuldade do governo em lidar com essas questões de forma sistemática, apontando para uma desconexão entre a retórica progressista e a prática efetiva.

Os desafios enfrentados pelos dois ministérios refletem uma tensão mais ampla dentro do governo Lula: como transformar a promessa de inclusão em ação concreta? A resposta a essa pergunta será decisiva para a continuidade do apoio do Movimento Negro e de outros grupos sociais comprometidos com a luta por igualdade. Enquanto o governo não der respostas claras e ações eficazes para corrigir os rumos, as críticas continuarão a crescer, alimentando a percepção de que as promessas de justiça social e racial podem não passar de um discurso vazio.

Esse cenário aponta para um momento crucial na relação entre o governo e os movimentos sociais. Se as ações corretivas não forem tomadas, o governo corre o risco de perder a credibilidade e o apoio de setores que historicamente estiveram ao seu lado. Essa ruptura seria especialmente prejudicial para um governo que se comprometeu, desde sua eleição, a colocar a igualdade racial e de gênero no centro de suas políticas.

Fillipi Nascimento é cientista Social. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper