Na contramão da universalização do saneamento como um serviço básico a que todos devem ter direito, prevista para 2033, a tributação do setor incluída na reforma tributária deverá atrasar investimentos já previstos, adiar os novos e, de quebra, dificultar o fim das fossas improvisadas e irregulares a que muitos brasileiros ainda recorrem, alternativa a um sistema que falha ao não oferecer a toda a população redes de esgoto e água tratada.
O cenário, traçado por executivos de empresas do setor em evento nesta terça-feira, 29, em Brasília, para tentar sensibilizar o governo e o Congresso Nacional, respinga ainda na saúde. “Nos últimos três anos, a falta de saneamento respondeu por 1 milhão de internações no sistema público de saúde, 200 mil mortes e por quase 10% das internações de crianças entre um e quatro anos de idade”, destaca Roberto Barbuti, presidente do conselho de administração da Abcon, a associação que reúne as empresas de saneamento. “Saneamento é saúde”, enfatiza, citando cálculos da Organização Mundial Saúde (OMS) segundo os quais cada US$ 1 investido em saneamento economiza US$ 5,5 nos gastos da área de saúde.
O apelo, ainda que com certo atraso, tenta reverter a tributação da indústria, incluída na regulamentação da reforma tributária e que, nos cálculos dos executivos do setor, deve resultar num aumento de 18% na tarifa cobrada da população em geral pela prestação do serviço e de 6,5% no valor pago pela população de baixa renda. Essa conta considera o abatimento garantido pelo governo no texto com um mecanismo de cashback. Ele permite a devolução de 100% do novo imposto federal (CBS) e de 20% do imposto local (IBS), no caso da população de menor renda.
Segundo os executivos, essa foi a aposta do Ministério da Fazenda para aliviar o aumento da tributação do setor. “Essa é a mais grave incoerência no texto que veio da Câmara: não ter equiparado o setor de saneamento ao da Saúde”, afirmou o senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), líder do governo no Congresso. “Há sensibilidade na Fazenda e no Planalto para reverter essa mudança”, assegurou. “O que não pode é ter aumento de tributação. Esse será o pior dos quadros porque eleva gastos com saúde”, completou o senador Eduardo Gomes (PL-TO), vice-líder da oposição, numa sinalização de que os argumentos do setor ganharam coro entre partidos da base e da oposição.
Serviços essenciais
O conceito do texto da reforma tributária elaborada pelo governo foi o de que todos devem pagar igual. Os serviços essenciais, no entanto, teriam tratamento diferenciado e a população de baixa renda contaria com o mecanismo do cashback. O problema foi que saneamento ficou de fora da lista dos com tratamento diferenciado, como a Saúde. E a pressão do setor não foi suficiente para garantir o mesmo benefício. “Não estamos falando de reduzir a carga tributária do saneamento, mas de garantir a neutralidade, que não haja aumento”, diz Christianne Dias, diretora executiva da Abcon.
Até hoje, as empresas de saneamento não pagam ICMS (imposto cobrado pelos estados sobre a comercialização de produtos), nem ISS (imposto devido aos municípios e incidente sobre a prestação de serviços). Porém, com a regulamentação da reforma tributária em tramitação no Congresso Nacional, a indústria foi incluída no grupo tributado com o IBS. Com isso, a carga tributária efetiva do setor, atualmente em 9,75% sobre a receita bruta das empresas (referentes a PIS e Cofins), passará para 26,5%. Isso, nos cálculos dos técnicos, resultará em 18% de aumento nas tarifas cobradas dos consumidores.
“Se permanecer da maneira como o texto está no Congresso, isso vai para a tarifa sem dúvida, além de atrapalhar o ciclo de investimentos atuais já contratado”, afirma Ricardo Soavinski, vice-presidente da Aesbe, entidade que reúne as empresas estaduais de saneamento, e presidente da Saneago, companhia de saneamento de Goiás. “Não cumpriremos o prazo para universalização”.
Sem esgoto, mas com celular
Esse prazo prevê que até 2033, 90% da população brasileira terão acesso à rede de esgoto e 99% se beneficiarão de água tratada. Hoje, os dados da indústria apontam que 44% dos brasileiros estão sem atendimento de rede de coleta e tratamento de esgoto. Se forem consideradas as fossas, muitas delas feitas de forma precária, esse número cai para 24%, de acordo com censo do IBGE. Os executivos lembram que o aumento das tarifas em função da maior tributação das empresas irá dificultar a solução de outro problema sério no país: as fossas improvisadas e construídas de forma precária para evitar o pagamento de tarifas.
“Como explicar para a população que ela pagará mais não para ter melhorias, mas por aumento de imposto”, questiona Christianne Dias, da Abcon. Para ela, isso estimula os “puxadinhos”. “Fossas irregulares contaminam solo e podem comprometer os lençóis freáticos. Isso é um problema no fornecimento de água também”, diz.
“Com aumento de tarifas, as pessoas não vão aderir à rede e vão buscar alternativas irregulares”. Os investimentos previstos para o setor saneamento são uma aposta também para estimular a economia e estão sendo comparados ao efeito que a privatização do setor de telecomunicação teve para o país: melhoria de serviço e aumento da base beneficiada. Atualmente, estima-se que há mais celular no país do que gente. “O país dos ‘com celular’ é também o dos ‘sem esgoto’”, compara Dias.