Após o primeiro turno da eleição municipal (6/10), escolas municipais na zona rural de Melgaço (PA) — município com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil — quase não abriram as portas.
Moradores e funcionários de escolas entrevistados pela BBC News Brasil disseram que, em todo o mês de outubro, só houve sete dias de aula na região.
A redução das atividades ocorreu após a prefeitura atrasar salários de funcionários e a compra de combustível para barqueiros que fazem o transporte escolar na zona rural de Melgaço, onde vivem 80% de seus 28 mil habitantes.
Moradores e funcionários das escolas associam a suspensão dos pagamentos ao resultado da eleição municipal, na qual o candidato apoiado pelo atual prefeito da cidade, Tica Viegas (União Brasil), foi derrotado.
Eles afirmam que, na tentativa de eleger o candidato apoiado pelo prefeito, a prefeitura promoveu uma "gastança" na véspera do pleito, ampliando a folha salarial de forma irresponsável e esvaziando o caixa do município.
A derrota, porém, frustrou expectativas de receitas futuras, e agora faltam recursos para salários e o transporte escolar, segundo os moradores e funcionários.
Já o prefeito admite que gastos excepcionais na véspera da eleição afetaram o caixa da prefeitura, mas nega qualquer motivação política (leia mais abaixo).
A 250 km da capital Belém, Melgaço fica no arquipélago do Marajó e não tem ligação por terra com outros municípios.
As comunidades na zona rural do município são ribeirinhas — vivem principalmente do Bolsa Família e da venda de produtos da floresta, como o açaí.
A BBC News Brasil esteve no município em setembro para produzir um documentário sobre as cidades com maior e menor IDH do Brasil.
O município paraense é o último no ranking nacional de IDH, com a pontuação de 0,418. No outro extremo do ranking está São Caetano do Sul (SP), com 0,862.
Quanto mais perto de 1, melhor o IDH de um lugar.
Melgaço tem alguns dos piores indicadores de educação do país. Ali, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 14,6% das crianças entre 6 e 14 anos estão fora das escolas, e 20% dos habitantes com mais de 15 anos são analfabetos.
O documentário da BBC retratou vários problemas na educação do município paraense, como escolas sem água corrente, falhas no transporte escolar e cancelamento frequente de dias letivos.
Outra grande queixa de moradores é sobre a merenda escolar, muitas vezes limitada a suco com bolacha — ou nem isso. Segundo um barqueiro entrevistado no documentário, crianças chegavam a chorar de fome no caminho de volta da escola.
"A merenda vinha para sete dias. Se nós tivéssemos 15 dias letivos [no mês], a criança estudava sete dias sem merenda e oito com merenda", relatou.
Sete moradores ou trabalhadores da educação de diferentes comunidades ouvidos pela BBC dizem que, após a eleição, o cenário se agravou — especialmente quanto à frequência das aulas.
Uma moradora de uma comunidade ribeirinha disse que, desde a eleição, seus dois filhos passam praticamente todos os dias da semana em casa ou a acompanhando em afazeres nas redondezas.
A moradora — que pediu para não ser identificada por temer represálias aos filhos — afirma que os professores enviaram trabalhos escolares para que os alunos ficassem ocupados nos dias sem aulas.
Mas diz que, com tanto tempo livre, as crianças já terminaram as tarefas, e agora ela mesma tenta lhes passar novas atividades para que os filhos não se desmotivem.
"Eles me dizem: 'E agora, mãe? A gente não está indo para a escola, a gente está perdendo muito trabalho [escolar]…' Quem está saindo no prejuízo são os alunos", afirma.
Um professor que também pediu para não ser identificado diz à BBC que as aulas perdidas não serão repostas — ainda mais porque as férias escolares, em dezembro, se aproximam.
Ele avalia que, entre o início e o fim deste ano escolar, dificilmente as escolas da região completarão 100 dias letivos, embora a ??Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) exija 200 dias letivos no ensino básico por ano.
"Isso acaba dificultando muito o ensino", diz o professor.
Para ele, nas condições atuais, os estudantes da zona rural de Melgaço não são capazes de aprender o que é esperado em cada ano letivo.
Muitos podem até estar na série adequada a sua idade, diz ele, mas apresentam sérias deficiências de aprendizagem.
Salários atrasados
Professores disseram à BBC que as aulas em Melgaço foram suspensas por causa do atraso nos salários de professores e funcionários das escolas.
Eles afirmam que os atrasos começaram no início do semestre, mas que os pagamentos têm sido realizados em prazos ainda mais longos após a eleição.
Os pagamentos referentes a setembro só foram feitos em 24 de outubro, segundo o grupo.
Um membro do Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Pará (Sintepp) diz que, com os atrasos frequentes, muitos trabalhadores se endividaram e não conseguem ir às escolas, pois não têm dinheiro para combustível e comida.
Ele também não quis ser identificado por medo de ser demitido. Grande parte dos professores de Melgaço tem contratos temporários.
O sindicalista afirma que muitas vagas nas escolas do município são preenchidas por indicações políticas.
Derrota eleitoral
A interrupção das aulas afeta principalmente a zona rural, embora escolas na zona urbana também tenham fechado por alguns dias por conta de atrasos nos pagamentos.
Moradores e professores dizem que o prefeito Tica Viegas (União Brasil) é o responsável pela situação por, segundo eles, ter esvaziado o caixa da prefeitura na tentativa de eleger um afilhado político: o ex-secretário de Educação de Melgaço Éder Vaz (União Brasil).
Em uma disputa acirrada, Vaz perdeu para um primo do prefeito que concorreu pela oposição, Zé Viegas (MDB). O derrotado recebeu 46,9% dos votos, contra 53,1% do vencedor.
A BBC questionou a Secretaria de Educação de Melgaço sobre a suspensão de aulas na cidade e as visões de que o atraso de salários se deve a gastos em prol da candidatura do ex-secretário.
Não houve resposta até a publicação desta reportagem.
No fim de seu segundo mandato na prefeitura, Tica Viegas disse à BBC que de fato têm faltado recursos para pagar funcionários e professores em dia.
Mas Viegas negou ter ampliado os gastos para favorecer seu afilhado político e atribuiu o problema a uma regra da legislação eleitoral.
Segundo o prefeito, a prefeitura costuma demitir todos os funcionários temporários das escolas em junho e recontratá-los em agosto.
O objetivo, diz ele, é reduzir os gastos com a folha salarial em julho, quando as escolas estão em férias e esses funcionários não são necessários.
Neste ano, porém, o prefeito diz que não foi possível demitir os funcionários temporários em junho, pois seria ilegal recontratá-los em agosto. Afinal, a legislação eleitoral impede a contratação de funcionários temporários a menos de três meses da eleição.
Segundo o prefeito, os gastos imprevistos com salários em julho comprometeram um orçamento já bastante apertado.
Questionado se não era possível antever esses gastos — já que a lei que impede contratações a três meses da eleição vigora desde 1997 —, Viega disse que desconhecia a legislação.
Na eleição anterior, quando ele já era prefeito, Viegas disse que não se deparou com o problema porque o país enfrentava a pandemia de Covid e os pagamentos seguiram outros ritos.
Ele disse que está tentando normalizar os pagamentos para que as aulas sejam retomadas o quanto antes.
Fraca arrecadação
Problemas de caixa não são novidade em Melgaço.
Segundo o IBGE, o município só arrecada 6% do que gasta. Com uma economia modesta e alta informalidade, a cidade depende quase integralmente de repasses externos — como o Fundo de Participação de Municípios (FPM), uma verba que todas as prefeituras recebem da União, mas que só garante serviços mínimos.
'Nem o básico está sendo garantido'
Para Ivan Gontijo, gerente de Políticas Educacionais da ONG Todos pela Educação, Melgaço destoa da maior parte do Brasil, onde o ensino básico foi universalizado e hoje se discute como melhorar a educação.
"Se em Melgaço as escolas não estão abrindo e os professores não estão recebendo salários, como falar em educação de qualidade? Ali nem o básico está sendo garantido", afirma. "É uma violação de direitos."
Gontijo diz que, apesar da gravidade do cenário, é difícil responsabilizar judicialmente autoridades que descumpram exigências legais no campo da educação, como a garantia de transporte escolar e a oferta de 200 dias letivos ao ano.
Para ele, o caminho mais efetivo para sanar os problemas é a intervenção de órgãos de fiscalização como o Tribunal de Contas do Municípios do Pará (TCMP) e o Ministério Público do Estado.
Segundo ele, se verificarem que a prefeitura violou regras fiscais ou eleitorais — ao suspender pagamentos irregularmente ou gastar recursos com fins eleitorais, por exemplo —, os órgãos podem pedir à Justiça a cassação de mandatos e direitos políticos dos responsáveis.
Gontijo diz que a justificativa do prefeito para o atraso nos pagamentos — a impossibilidade de demitir funcionários temporários por causa da legislação eleitoral — revela o "amadorismo da gestão".
Segundo ele, muitas prefeituras contratam funcionários de escolas de forma temporária para garantir o apoio político do grupo.
"Elas dizem: 'se você não apoiar o prefeito, não vamos renovar seu contrato'. É uma artimanha muito ruim, de alto fisiologismo, e que politiza a escola", critica.
A BBC questionou o TCMP sobre os problemas citados nesta reportagem, mas o órgão não se manifestou até a publicação desta reportagem.
O Ministério Público do Estado do Pará, por sua vez, disse ter "expedido ofício solicitando esclarecimentos" ao município sobre a suspensão das aulas.
A nota é assinada pelo promotor de Justiça em Melgaço, Paulo Ângelo Nogueira Furtado.
A BBC então enviou novo questionamento ao promotor, perguntando se ele já realizou outras investigações sobre cancelamentos de dias letivos, más condições de escolas e a qualidade da merenda em Melgaço.
Não houve resposta até a publicação deste texto.
Ivan Gontijo, da ONG Todos pela Educação, diz que os problemas da educação em Melgaço são agravados pelos altos custos de transporte e alimentação em áreas remotas da Amazônia.
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Ele afirma que o governo federal transfere recursos para a merenda e o transporte escolar em todos os municípios brasileiros, mas que os valores são calculados com base no número de alunos e não levam em conta diferenças regionais.
"O valor da merenda por aluno que vai para São Paulo é o mesmo que vai para Melgaço, mas em Melgaço o custo é bem mais elevado por questões de logística", ele diz.
Uma solução que está em discussão, segundo Gontijo, é mudar o cálculo para municípios amazônicos, para que recebam mais recursos.
Gontijo defende ainda que a Secretaria de Educação do Pará também se engaje na solução dos problemas educacionais em Melgaço, ainda que escolas com mais dificuldades sejam municipais.
"O Estado não manda nos municípios, mas tem um papel importante de coordenação no território", diz Gontijo.
Questionada sobre a situação em Melgaço, a Secretaria de Educação do Pará não se manifestou até a publicação desta reportagem.
O Ministério da Educação também foi procurado, mas disse que as questões deveriam ser encaminhadas ao Ministério Público do Pará e ao Tribunal de Contas do Município.
Gontijo afirma ainda que as escolas estaduais do Pará podem servir de exemplo às escolas municipais de Melgaço no quesito merenda.
Segundo Gontijo, as escolas estaduais paraenses têm investido na "logística local e inseriram açaí nas refeições dos estudantes". Amplamente disponível na região e parte da dieta dos moradores, o fruto melhorou a qualidade da alimentação dos alunos, diz ele.
"Se o aluno não chega na escola e não se alimenta direito, o ensino não funciona. Nesse cenário, falar de currículo, material didático ou metodologias inovadoras não faz nem sentido", diz.
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