Talvez tenhamos que recorrer a Recuerdos para avaliar os debates que esquentaram a temperatura na posteridade do Plano Real.

Vencida a inflação desatinada dos anos 1980 e começo dos 1990, o debate econômico dedicou-se a questionar as conquistas do desenvolvimento brasileiro. Sociólogos, economistas e demais pensadores do tucanato moveram uma guerra implacável contra o ideário que pregava o “desenvolvimento nacional promovido pelo Estado (sic)”.

Inauguradas, dizem, por Getúlio Vargas, tais ideias e políticas comandaram o Brasil por mais de 50 anos. A velha economia primário-exportadora, entre tantas, deixou a herança de deficiências na infraestrutura (energia elétrica, petróleo, transportes, comunicações), nas desigualdades regionais e na péssima distribuição de renda.

Eleito em 1950, Getúlio Vargas impulsionou o projeto de industrialização. Lançou em 1951 o Plano de Eletrificação, criou o BNDE em 1952, a Petrobras em 1953.

Juscelino tomou posse em 1956 e prometeu avançar 50 anos em 5. O desenvolvimento da indústria prosseguiu com a modernização dos setores já existentes e a constituição dos departamentos industriais que produzem equipamentos, componentes, insumos pesados e bens duráveis. O governo concentrou os gastos na infraestrutura.

O Plano de Metas contemplava cinco prioridades: energia, transportes, alimentação, indústrias de base e educação. A construção de Brasília e a abertura de estradas como a Belém-Brasília faziam parte do projeto de interiorização do desenvolvimento.

No âmbito das relações internacionais, o projeto juscelinista integrou a economia brasileira ao vigoroso movimento de internacionalização do capitalismo do pós-Guerra. Nas pegadas da prosperidade dos 30 Anos Gloriosos, as empresas europeias e americanas transladavam suas filiais para os países em desenvolvimento.

Na década de 1950, a economia brasileira apresentou um crescimento acumulado de 99%; na de 1960, de 80%; e nos anos 1970, de 131%. Nos 50 anos que terminaram no início da década dos 80, a economia brasileira cresceu de forma acelerada e sofreu notáveis transformações.

A desorganização dos anos 1980, a década perdida, de um lado revigorou o cosmopolitismo das camadas dominantes, fazendo caducar os compromissos firmados em torno do objetivo comum do desenvolvimento; de outro, aumentaram as pressões das classes subalternas pelo reconhecimento integral de seus direitos políticos, sociais e econômicos.

O cosmopolitismo liberal não tem nada de novo. Vem de longa data a atitude basbaque da fração majoritária das camadas dominantes com o que vem de fora para dentro. O liberalismo à brasileira sempre combinou a rejeição (de todos os liberais) às intromissões da política na economia com uma profunda e mal dissimulada desconfiança na capacidade nativa de alcançar por conta própria as conquistas da sociedade industrial e de seus padrões modernos de convivência.

Essa aventura “estúpida” liberou o Brasil e os brasileiros da dependência da exportação de café e de outros produtos agrícolas menos votados (além do bicho-do-pé, da febre amarela e da hemoptise), forjando a mais importante economia urbana e industrial do chamado Terceiro Mundo. Não conseguiu livrá-lo, infelizmente, do aventureirismo crônico das suas classes dominantes e adjacências.

As políticas “inteligentes” prometiam tirar o país do atraso e aproximar o padrão de vida dos brasileiros daqueles gozados pelos povos do Primeiro Mundo. Isso seria feito mediante a abertura da economia, a liberalização financeira, o recuo do Estado, as privatizações, a flexibilização do mercado de trabalho e a reforma da Previdência.

Depois de cinco anos, os resultados não foram brilhantes. Primeiro, ampliaram-se os constrangimentos que atuam do “lado da demanda”: ao contrário do que apregoava Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, a dependência do humores dos mercados financeiros é constitutiva da forma de inserção internacional adotada pelo Brasil. Naquele momento, o temor de assustar os possuidores de riqueza financeira – nacionais e estrangeiros – vinha bloqueando a adoção de uma política monetária capaz de prover crédito em volume e em condições decentes para a indústria e a agricultura, de induzir o investimento privado ou estimular as exportações.

Segundo, em uma situação de parcas reservas em moeda estrangeira, ainda eram duros os constrangimentos originados no setor externo: projeções realistas mostravam que o balanço de pagamentos não iria aguentar por muito tempo taxas de crescimento mais elevadas. A remessa de lucros e dividendos, a despesa com juros e a maior elasticidade das importações (em boa medida decorrente da valorização do real que lançou a preferência dos investidores e consumidores pelas manufaturas importadas) iriam impor limites mais estritos ao crescimento.

Terceiro, tornaram-se dramáticas as dificuldades do “lado da oferta”: alguns “nacionalistas” do governo perceberam que as privatizações, a perda do controle sobre as empresas, desarticularam os mecanismos de governança e de coordenação estratégica da economia brasileira. O setor produtivo estatal – num país periférico e de industrialização tardia – funcionava como um provedor de externalidades positivas para o setor privado.

O investimento público corria na frente da demanda corrente, as empresas do governo ofereciam insumos generalizados em condições e preços adequados, e começavam a se constituir, ainda de forma incipiente, em centros de inovação tecnológica. Depois da privatização e da desnacionalização, as grandes empresas “exportaram” os seus departamentos de P&D, os escritórios de engenharia reduziram dramaticamente seus quadros e iniciativas importantes, como o Centro de Pesquisas da Telebrás, foram praticamente desativadas. Progresso!!!

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autor de vários livros, entre eles “Valor e Capitalismo” e “Os Antecedentes da Tormenta”, e ocupou cargos públicos como o de secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e o de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo

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