O governo tenta criar uma nova narrativa para recuperar a credibilidade na área fiscal com o conjunto de medidas a ser anunciado nos próximos dias. Ainda sem data oficial para o lançamento, o pacote já está desacreditado antes mesmo de ser divulgado. Na última semana, dos debates internos com o presidente Lula saiu a linha de discurso que será usada como justificativa com os atingidos dentro do governo. A ordem é dizer que “todos terão que dar a sua contribuição”, no sentido de que os cortes atingirão todos os ministérios, em um momento de necessidade do país.
No entanto, externamente, o vaivém do governo com a data do anúncio e a polêmica gerada diante da pressão de movimentos sociais, que teve participação ativa da própria presidente do PT, Gleisi Hoffmann, só reforçaram as especulações de que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e sua equipe estarão limitados a redobrar esforços para garantir, apenas, o cumprimento da meta fiscal anual. Só que o foco de investidores e analistas, agora, é a trajetória de crescimento da dívida pública. Ela ganhou protagonismo.
Em 2023, quando foi anunciado o conjunto de regras do arcabouço fiscal, o mercado financeiro deixou a dinâmica da dívida em segundo plano, se conformando com o compromisso de resultado primário. Haddad aproveitou o voto de confiança e surfou nos discursos sobre análise das receitas. A ministra do Planejamento, Simone Tebet, e sua equipe se debruçaram sobre as despesas, mas ficaram falando sozinhos. Porém, o cenário deu uma reviravolta. Os ventos, sobretudo externos, com a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, mudaram e expuseram as fragilidades da contabilidade oficial.
“O Brasil estava nadando pelado e era claro que, se a maré baixasse, ia mostrar. Se ela subisse, ele continuaria nadando. Só que a maré baixou com as incertezas frente ao desempenho da economia americana”, compara o analista de um grande banco privado. Com isso, agora, espera-se mais do que a fala de Haddad dos últimos dias afirmando que o corte a ser anunciado será “expressivo” e que irá “reforçar o nosso compromisso de manter as regras fiscais estabelecida desde o ano passado”, o chamado arcabouço fiscal.
Ritmo lento
No lado econômico, a conta é simples. Se o conjunto de regras do arcabouço fiscal for cumprido como está prometido, ainda assim a melhora no resultado primário (receitas menos despesas sem gastos financeiros) ano a ano acontecerá num ritmo muito lento. Isso fará com que a dívida pública siga crescendo por mais tempo, antes de estabilizar, já que o saldo primário é a economia usada para abater a dívida. “O arcabouço como está gera uma melhoria no resultado primário de cerca de 0,15% do PIB (a soma de tudo o que é produzido no país) por ano. Muito pouco diante da dinâmica crescente da dívida”, estima um ex-integrante do governo.
Nos cálculos do mercado financeiro, ao contabilizar receitas e despesas, o governo deve gerar neste ano um déficit primário de cerca de 0,6% do PIB – isso considerando a manutenção do arcabouço fiscal como está, onde a principal regra limita o aumento das despesas públicas ao equivalente a 70% do crescimento das receitas.
Risco de engessamento
“Nesse ritmo, o governo levaria 17 anos para conseguir fazer a dívida parar de crescer”, estima o analista. É o problema um. Na avaliação de investidores e analistas de mercado, para garantir que a dívida pública fique estabilizada no médio prazo, o resultado primário deveria ser um superávit de cerca de 2% do PIB em vez do déficit de 0,6% do PIB. No entanto, sabe-se que esse é um valor muito elevado, que deixaria o governo paralisado, sem espaço para fazer políticas públicas.
Problema dois: além do fato de o arcabouço como está atualmente levar a uma melhora lenta do resultado primário, esse já não reflete mais a situação fiscal do Brasil. Isso porque vários gastos estão fora da conta, como os créditos extraordinários para a recuperação do Rio Grande do Sul após as enchentes no início do ano e programas sociais como o Auxílio Gás, destinado às famílias de baixa renda.
Com isso, soma de um lado e diminui do outro, a meta fixada pela equipe econômica dentro do arcabouço não representa mais a situação fiscal do país. Assim, os analistas voltaram a olhar com lupa a “rubrica nominal” na contabilidade pública, que inclui as despesas com encargos sobre a dívida pública, e a própria dívida, capturando algo que não esteja no resultado primário.
Para se contrapor a essas análises, Haddad vem reforçando o “conceito” que a equipe econômica está usando para alinhar o pacote de medidas dentro do governo e que segue a linha de que o arcabouço fiscal será fortalecido. Segundo o ministro, “as rubricas (leia-se despesas) devem, na medida do possível, ser incorporadas à visão geral do arcabouço, para que ele seja sustentável no tempo”.
Haddad não entra em detalhes sobre medidas nem valores, mas reforça que esse é o espírito. “Para o arcabouço dar certo, ele tem que ser reforçado”, disse na véspera do feriado, antes de mais uma reunião sobre tema. Ele destacou que a regra geral estabelecida no ano passado é um guarda-chuva e o que estiver saindo dessa regra deve ser incluído. “Esse é o princípio.”
Contabilidade política
O problema três vem da contabilidade política ao analisar esse “princípio”. Com o país dividido, um clima antipetista pesa nas pesquisas de avaliação do governo, traduzido em queda de popularidade. O presidente Lula sabe que dificilmente passará a ter espaço entre o fã-clube da direita e do ex-presidente Jair Bolsonaro. E, por outro lado, também conta com o apoio do seu fã-clube da esquerda.
Para fazer um ajuste mais forte, que atenda a esse conceito de Haddad de forma convincente, será preciso desagradar justamente a sua base eleitoral favorecida por programas sociais, como Bolsa Família, abono salarial, seguro-desemprego, previdência, BCP. “Juntos esses gastos equivalem a 70% das despesas públicas”, destaca o ex-integrante do governo.
Assim, o presidente e sua equipe econômica estão numa encruzilhada. A narrativa interna de que todos darão sua contribuição não se aplica para os eleitores de Lula. O ministro Haddad sabe que, para agradar o mercado, precisa ir além de um “conceito”. Os analistas identificaram a dificuldade política e já precificaram um corte de despesas em torno de R$ 30 bilhões. Mas ainda permanece a dúvida se o espaço, que será aberto caso esse corte seja confirmado, será integralmente usado para o governo poder gastar em outras despesas discricionárias, como investimento, ou se pelo menos parte dele será usado para reforçar o resultado primário. Nesse último caso, o compromisso com a estabilidade da dívida num horizonte menor estaria configurado.
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Vale lembrar, também, que a dívida pública é fortemente influenciada pela alta de taxa de juros. E o Banco Central iniciou neste ano um ciclo de elevação dos juros, o que faz o endividamento do governo subir. Declarações recentes do secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, apontam que a dívida bruta do governo, que está em torno de 78% do PIB, deverá chegar em 2028 a cerca de 82% do PIB. A Dívida Bruta do Governo Geral, conhecida pela sigla DBGG, compreende o total dos débitos do governo federal e dos governos estaduais e municipais junto ao setor privado, ao setor público financeiro e ao resto do mundo.