Os dados são acompanhados pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, que vai verificar a regularidade das contratações -  (crédito: Jair Amaral/EM/D.A Press - 24/04/2018)

Os dados são acompanhados pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, que vai verificar a regularidade das contratações

crédito: Jair Amaral/EM/D.A Press - 24/04/2018

"O quintal foi todo quebrado. Caiu tudo no rio. Agora, o medo é a casa da minha mãe terminar de cair". O depoimento é de uma moradora de São Geraldo do Baixio, no Vale do Rio Doce, que preferiu não se identificar. No último dia 14, a cidade teve decretada situação de emergência por conta da combinação entre as chuvas intensas do verão e a falta de infraestrutura.

 

Se, há cerca de duas semanas, o prefeito Juliano Filipe (Republicanos) pediu socorro ao Governo de Minas para conseguir verba para socorrer a população sob sua responsabilidade, a prevenção parece não ter feito parte do planejamento municipal ao longo do ano. A prefeitura local gastou, só neste ano, de acordo com dados do Tribunal de Contas, R$ 927 mil para financiar shows com dinheiro público.

 

A cidade de cerca de 3 mil habitantes, enquanto conta os prejuízos das chuvas, sediou, em 2024, apresentações de nomes conhecidos da música brasileira, como Gino e Geno (com custo de R$ 230 mil) e Amado Batista (R$ 267 mil). Pelo decreto assinado pelo governador Romeu Zema (Novo), São Geraldo do Baixio permanece em estado de emergência por 180 dias, até 13 de maio do ano que vem.

 

 

Das 16 cidades em situação de emergência por desastres naturais em Minas Gerais, na lista da Coordenadora Estadual de Defesa Civil (Cedec) publicada na última sexta-feira (29), 14 financiaram shows neste ano. As prefeituras, que hoje pedem socorro ao governo do estado para reparar os danos, gastaram quase R$ 5 milhões com atrações artísticas.


São Geraldo do Baixio lidera essa relação com os já citados R$ 927 mil. Na sequência, aparecem quatro cidades do Vale do Jequitinhonha: Ouro Verde de Minas (R$ 778 mil); Novo Oriente de Minas (R$ 629 mil); Carlos Chagas (R$ 607 mil); e Franciscópolis (R$ 530 mil). A lista completa está na arte publicada nesta página.

 

 

Ao menos nas redes sociais, a fala dos gestores é de preocupação com a situação de emergência, mesmo após gastarem tanto dinheiro com shows em um ano eleitoral. “Foram interrompidas várias estradas em nosso município. Nossa equipe de obras está trabalhando incansavelmente para liberar. As chuvas atingiram com mais força a zona rural. Gostaria de pedir ao morador da zona rural para evitar sair de casa até que as coisas sejam controladas. O abastecimento de água também foi interrompido”, afirma Juliano Filipe, reeleito em São Geraldo do Baixio, em vídeo gravado após o desastre na primeira quinzena de novembro.


TCE de olho

O diretor de fiscalização integrada e inteligência do TCE-MG, Henrique Quites, explica que, a partir dos dados levantados, as contratações serão investigadas pela Corte. “No âmbito das fiscalizações das despesas públicas, chamou a atenção a expressiva parcela dos orçamentos que está sendo destinada a shows artísticos. Outros desdobramentos poderão surgir, com avaliações tanto da regularidade das contratações, quanto da verificação da qualidade desses gastos”, afirma.

 

Quites esclarece, no entanto, que não há um teto de gastos estabelecido por lei que estipule o limite de gastos dos municípios com a contratação de shows. “O que será avaliado é a essência do gasto e, a partir daí, medir as políticas. Vamos verificar se os valores estão proporcionais ao que o município necessita”, diz.

 

 

Frederico Meyer, advogado especialista em direito público e sócio do escritório Lara Martins, afirma que a contratação de shows não é irregular e costuma acontecer via inexigibilidade de licitação, já que os artistas são únicos, sem possibilidade de comparação.

 

"Ainda assim, é preciso pensar. O Brasil é um país cheio de problemas na saúde, na educação. O que não pode acontecer é a priorização da realização de shows, que não tem efeito perene, um legado. A premissa é que não há crime, mas o que pode acontecer é uma irregularidade na prestação das contas. Quem julga, no final das contas, é a Câmara dos Vereadores", diz.

 

As cidades atingidas por desastres naturais podem recorrer a três tipos de decretos para obter benefícios para mediar as crises

As cidades atingidas por desastres naturais podem recorrer a três tipos de decretos para obter benefícios para mediar as crises

Arte EM

 

Ainda de acordo com o especialista, a improbidade administrativa, crime que vai contrário aos princípios básicos da administração pública, passou por recente mudança de entendimento junto ao meio jurídico.

 

"A improbidade hoje dispõe dolo daquele que pratica eventual crime. Então, um prefeito, por exemplo, tem que querer lesar o erário. Por exemplo, um prefeito que quer realizar um show e desfalca o orçamento de alguma outra área, como a prevenção contra as enchentes", afirma Frederico Meyer.

 

Tipos de decretos por desastre natural

As cidades atingidas por desastres naturais podem recorrer a três tipos de decretos para obter benefícios para mediar as crises. Os de emergência são divididos em níveis 1 e 2, a depender da intensidade dos danos. O de nível 3, que envolve prejuízos não superáveis, como os ocorridos no Rio Grande do Sul no início do ano, com várias mortes, costumam resultar em calamidade pública, que dá à cidade o direito de pedir até mesmo ajuda internacional.

 

O decreto de nível 1 costuma contar, principalmente, com recursos a nível municipal, a partir de algum complemento a nível estadual e federal. Já o de nível 2 pode resultar em mais aporte a nível estadual e federal. A quantidade de recursos, independentemente do patamar do desastre, não é definida por lei.

 

Além de ter acesso a mais verba pública, os prefeitos que decretam situação de emergência ou de calamidade por desastres naturais têm o direito, mediante comprovação de tal necessidade, de contratar serviços sem licitação. Esse recurso contribui para uma resposta mais rápida aos danos causados, sem a necessidade dos processos burocráticos, de maior controle governamental.

 

A reportagem tentou contato com as prefeituras citadas e, até o fechamento desta edição, apenas a de Uberaba retornou. De acordo com a administração municipal, a apresentação artística contratada ocorreu em abril, meses antes dos eventos climáticos que, em outubro, culminaram na publicação do decreto de emergência.

 

Itabirito e sertanejo ocupam liderança

O EM mostrou na edição da última quinta-feira que municípios de Minas gastaram cerca de R$ 940 milhões na contratação de shows entre janeiro de 2020 e 7 de novembro deste ano. Itabirito lidera a lista das cidades que mais destinaram recursos a eventos do tipo: gastos chegam a R$ 11,3 milhões. O cantor Eduardo Costa é o artista que mais faturou com apresentações para prefeituras mineiras nesse período: fez 65 eventos e recebeu cerca de R$ 19 milhões.