Aos 81 anos, a memória de Ângela Maria Alexandrino Oliveira, muitas vezes falha, mas as lembranças da noite de Natal de 1969, último dia que viu o irmão, o bancário Pedro Alexandrino de Oliveira Filho, morto e desaparecido pela ditadura militar aos 19 anos, ainda estão presentes. “Estávamos na casa da minha avó, em Belo Horizonte, comemorando o Natal. Ele passou por lá, cumprimentou todo mundo, beijou todo mundo e saiu de fininho. Nunca mais o vimos”, conta a jornalista mineira e monja zen budista.
Ângela e seus familiares viveram o mesmo drama da família do deputado Rubens Paiva, retratada no cinema pelo filme “Ainda estou aqui”, sucesso de bilheteria e cotado para conseguir uma das vagas na disputada categoria de melhor filme internacional no Oscar 2025.
Em 20 de janeiro de 1971, homens armados invadiram a casa onde Rubens Paiva morava com a esposa, Eunice Paiva, e os cinco filhos, no Leblon, no Rio de Janeiro, e, sem mandado de prisão e nenhuma identificação, o levaram para depor em seu próprio carro. Ele nunca mais voltou.
Paiva e Alexandrino fazem parte da lista de centenas de mortos e desaparecidos pelo regime militar (1964-1985), período da história brasileira que segue assombrando a democracia e os espectadores, mesmo quando o filme termina. Segundo Ângela, o filme e as notícias recentes sobre uma tentativa de golpe, que envolvia até mesmo o envenenamento do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva(PT), e o sequestro e morte do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, reavivaram as lembranças do desaparecimento de “Pedrinho” e acenderam o alerta sobre “quão frágil ainda é nossa democracia”.
Entre as memórias que retornaram, ainda que meio embaralhadas pelo tempo, ela destaca as paredes de sua casa espirradas de sangue e a cara de espanto de Pedro Alexandrino ao deixar o prédio do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) com marcas de tortura no pescoço, nas mãos e nos pés. Quando foi preso pela primeira vez, ainda em 1969, ele estava na casa de Ângela, em Belo Horizonte, junto com as filhas dela, Claudia Castellar Alzamora e Denise Castellar Alzamora, na época com 2 e 3 anos.
Na hora em que sua casa foi invadida para a prisão de Pedro, ela estava trabalhando na extinta TV Itacolomi, dos Diários Associados. Ela conta que três policiais foram até a emissora, a colocaram dentro da viatura e, sem falar nenhuma palavra ou dar nenhuma explicação, a deixaram em casa. É que a empregada, assustada com a violência a que Pedro foi submetida na frente dela e das sobrinhas, fugiu, deixando as crianças sozinhas. Pedro passou alguns dias preso e sendo barbaramente torturado e só deixou o Dops devido à influência de um tio, que era da Polícia Militar.
Triste recordação
“Esses dias não têm sido fáceis. A mesma coisa que eu sinto agora, eu senti lá atrás. É a coisa mais difícil. Não acaba, não tem fecho, não temos um corpo, não temos a história da existência dele lá, de como ele foi morto”, relata Ângela que, 54 anos depois, ainda se emociona com o desaparecimento do irmão.
“Como no caso da família do Rubens Paiva, a história do meu irmão é uma coisa que não acaba nunca, porque não tem corpo, não teve velório, não tem onde você chegar, todo mundo junto, como acontece quando morre uma pessoa da família. A gente também não teve isso”, compara Ângela, que ainda não foi ver o filme dirigido por Walter Salles e estrelado por Fernanda Torres. Disse que está aguardando tomar “um pouquinho de coragem”.
Assim como Rubens Paiva, a confirmação de que Pedro Alexandrino foi morto pelo regime militar só ocorreu oficialmente em 2014, quando a família recebeu o atestado de óbito, depois que o governo da ex-presidente Dilma Rousseff, também presa e torturada na ditadura, instalou a Comissão Nacional da Verdade (CNV), extinta em 2020, pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
Segundo Ângela, a vida inteira de sua mãe, Diana Piló Oliveira, que faleceu em julho passado, aos 100 anos, foi em busca do corpo do filho. Diana se recusou a receber a indenização assegurada pela Lei 9.140/95, que reconheceu as pessoas apontadas até então pelos familiares como desaparecidos políticos como vítimas do Estado. “Ela não quis receber o cheque. Ela queria notícias e o corpo do filho”, afirma Ângela, que batizou seu filho com o nome do irmão.
Pedro Alexandrino Martins, de 53 anos, não conheceu o tio, mas herdou dele o gosto pela militância. Produtor cultural, está sempre à frente de atos e movimentos realizados na capital mineira em defesa da democracia e das pautas da esquerda. Para ele, o fato de o filme “Ainda estou aqui” estar em cartaz no mesmo momento em que uma tentativa de um novo golpe é investigada pela Polícia Federal não é “uma mera coincidência”. “É que não houve um ponto final nessa história, ninguém foi punido. E a sociedade também precisa saber de tudo que aconteceu, pois hoje tem pessoas que negam isso e elas precisam saber do risco que a gente ainda corre, do que foi o período da ditadura”, defende Pedro Martins, como ele é conhecido entre a militância de esquerda.
Certidão de óbito
Uma das comoventes cenas de “Ainda estou aqui” mostra o momento em que Eunice Paiva, esposa de Rubens Paiva, interpretada no filme pelas atrizes Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, pega a certidão de óbito do marido, 25 anos após sua morte, graças à Lei 9.140/95, conhecida como Lei dos Desaparecidos. Só que nele não consta a real causa da morte, e sim o número dessa lei que reconheceu, durante o governo Fernando Henrique, como mortas as pessoas desaparecidas pelo regime militar.
De acordo com o assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Nilmário Miranda, também preso e torturado durante a ditadura, já há acordo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para que todas as certidões de óbito dos mortos e desaparecidos sejam retificadas para que conste no documento o reconhecimento da responsabilidade do Estado.
Segundo ele, essa alteração é uma das recomendações da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos (CEMDP), criada pela 9.140/95, mas cujas atividades foram interrompidas durante o governo Bolsonaro, mas retomadas em agosto deste ano.
Uma das conselheiras da CEMDP é Vera Paiva, filha de Rubens Paiva. Ela foi presa junto com a mãe logo após a detenção do pai. A prisão de Vera é uma das passagens da história de Rubens Paiva retratada no filme de Walter Salles.
O pedido da comissão é para que conste no documento o reconhecimento da “morte não natural, violenta e causada por perseguição política pelas forças repressivas do Estado”. De acordo com a comissão, em 407 dos 434 casos de mortes e desaparecimentos que a Comissão Nacional da Verdade confirmou em 2014, os termos lavrados nas certidões de óbito não refletem a real causa das mortes. “Na certidão de Rubens Paiva tem que constar que ele foi sequestrado na sua casa, levado a um aparato do Estado, torturado, morto e desaparecido, e que seus restos mortais jamais foram encontrados e não ‘Lei 9.140’”, defende Nilmário. Para ele, essa retificação representa “dignidade pós morte”.
Memorial
Outra iniciativa do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania em busca do resgate da memória dos anos de regime militar é a transformação da Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), em um Memorial de Liberdade, Verdade e Justiça sobre a ditadura. O imóvel foi usado durante o regime militar como um centro de tortura de civis. O nome da única sobrevivente do local, Inês Etienne Romeu, falecida em 2015, que foi quem revelou a existência da Casa, vai batizar o imóvel.
“Graças a ela, única sobrevivente, que ficou presa 100 dias e foi torturada e estuprada, essa história foi revelada”, afirma Nilmário, que defende ampla punição para os envolvidos em uma nova tentativa de golpe. Segundo ele, graças à anistia concedida aos agentes das forças de segurança do Estado envolvidos com tortura é que novas tentativas de imposição de um regime militar voltaram à tona. “Você sai do cinema depois de ver ‘Ainda estou aqui’ e, ao ler o noticiário, vê o vínculo entre o fim é o que está acontecendo hoje e percebe como esse processo malfeito permite que volte tudo”, crítica.