As reformas recentes empreendidas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, trouxeram à tona um tema já conhecido na política econômica brasileira: a austeridade fiscal. Em um cenário de déficit público acumulado de R$ 105,2 bilhões, o pacote anunciado busca economizar R$ 70 bilhões em dois anos. No entanto, as medidas adotadas reacendem um debate essencial: quem, afinal, paga a conta do ajuste fiscal?

 

É impossível ignorar que o Brasil não enfrenta um problema de arrecadação, mas de má gestão dos gastos. Com um impostômetro que ultrapassa a marca de R$ 3 trilhões, a questão central reside em como os recursos públicos são alocados. Infelizmente, as reformas atuais demonstram mais uma vez uma tendência histórica: cortar onde é mais fácil e politicamente menos custoso, sacrificando os mais vulneráveis.

 

 

O Benefício de Prestação Continuada (BPC) é o exemplo mais emblemático. Criado para garantir uma renda mínima a idosos e pessoas com deficiência em situação de extrema pobreza, o BPC simboliza um dos pilares da proteção social brasileira. As alterações propostas pelo governo, sob o argumento de "aperfeiçoar" o controle, representam um retrocesso.

 



 

A ampliação do conceito de família para incluir rendas de parentes distantes e a exigência de incapacidade total para o trabalho e a vida independente, conforme a definição de deficiência, enfraquecem a efetividade do benefício.

 

 

 

 

Essas mudanças contradizem compromissos internacionais, como a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, e ferem direitos estabelecidos pelo Estatuto do Idoso e da Pessoa com Deficiência. Ao endurecer as regras de concessão, o governo não apenas diminui o alcance do benefício, mas também reforça barreiras sistêmicas que perpetuam a exclusão social.

 

De um ponto de vista sociológico, essas reformas refletem uma escolha política e estrutural. A sociedade brasileira, marcada por extensas desigualdades, tem operado historicamente dentro de uma lógica que privilegia os interesses das elites econômicas. Gastos com privilégios, como subsídios e renúncias fiscais a grandes empresas, raramente são alvo de cortes tão incisivos. Em contraste, políticas voltadas às classes populares frequentemente sofrem restrições sob a justificativa de equilíbrio fiscal.

 

A noção de "merecimento" no acesso a benefícios sociais reforça estereótipos sobre pobreza e invalidez. A ideia de que é necessário comprovar incapacidade total para receber auxílio desconsidera a complexidade das condições que afetam a vida de pessoas com deficiência e idosos em situação de vulnerabilidade. É uma visão reducionista que ignora a interseccionalidade entre classe, gênero, raça e deficiência.

 

Por outro lado, é preciso reconhecer que o ajuste fiscal é necessário para garantir a sustentabilidade das contas públicas. Contudo, a forma como ele é conduzido revela prioridades que nem sempre dialogam com as demandas de justiça e equidade. A austeridade não pode ser uma sentença que recaia exclusivamente sobre os mais pobres, enquanto as elites econômicas continuam a desfrutar de privilégios intactos.

 

 

O caminho para um ajuste fiscal mais justo passa pela revisão dos gastos com isenções fiscais, pela implementação de uma reforma tributária progressiva e pela reavaliação de subsídios direcionados às elites. O debate precisa transcender o imediatismo das contas e incluir uma visão de longo prazo sobre o papel do Estado na promoção do bem-estar social e na redução das desigualdades.

 

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As reformas de Haddad, embora apresentadas como uma necessidade técnica, são, antes de tudo, decisões políticas. Elas nos convidam a refletir sobre o modelo de sociedade que desejamos construir. Um modelo que prioriza o equilíbrio fiscal à custa dos mais vulneráveis amplia os abismos sociais e compromete os ideais de uma democracia inclusiva. As perguntas que ficam são: 1) Até quando a austeridade será a solução?; e 2) Por que o ônus dessa escolha recai sempre sobre aqueles que menos têm?

 

Fillipi Nascimento é cientista Social. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper

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