Conheça as múltiplas lutas de Eunice Paiva
Viúva do ex-deputado Rubens Paiva, assassinado pelo regime militar, foi de dona de casa a advogada que se tornou referência contra a ditadura
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Siga noApós 12 dias de tortura psicológica confinada numa cela, com cama pequena, sem banho e com a mesma roupa, numa base militar na Tijuca, no Rio de Janeiro, Eunice Paiva teve duas preocupações ao retornar para casa, na Rua Delfim Moreira, 80, no Leblon: desvendar o paradeiro do marido, Rubens Paiva, – levado por agentes da ditadura em 20 de janeiro de 1971 –, e cuidar das quatro filhas e do filho com os recursos financeiros que ele deixou antes de ser torturado e assassinado pela ditadura.
No livro “Ainda estou aqui”, escrito pelo filho do casal, Marcelo Rubens Paiva, e que inspirou o filme homônimo de Walter Salles, ele revela as múltiplas lutas de sua mãe, Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva (7/11/1929-13/12/2018), ao longo dos seus 89 anos. Ele conta a incrível trajetória de Eunice Paiva, que até a morte do marido era uma dona de casa oprimida pelo machismo da época.
Ficou viúva aos 41 anos, formou-se em letras e direito, começou a trabalhar e iniciou uma incansável luta para cuidar sozinha dos filhos e obter o reconhecimento oficial da morte de Rubens. Tornou-se advogada renomada de causas diversas e referência nacional das causas indígenas. E enfrentou a batalha final contra o Alzheimer, que impôs a ela um novo apagamento de memória, além do já forçado pelo regime militar sobre a atrocidade que fizeram com o marido.
Após a tragédia com Rubens, Eunice passou por grande transformação, embora chorasse escondida dos filhos para não demonstrar fragilidade. Marcelo conta: “Não ficou no balcão da solidão bebendo lágrimas de sal. E trabalhava demais (…) Eunice magra, viva, bem-vestida, bonita, sem drama, sem reclamar. Viúva recente, recebeu três propostas de casamento quando saiu do luto. Recusou todas”.
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Ele lembra também: “Minha mãe estava noutra. Dizia abertamente que ficava honrada com as propostas, mas achava ridículo se mudar com seus filhos adolescentes para a casa de outro pai que tinha também filhos na adolescência. Tinha a faculdade de direito e a luta contra a ditadura, não tinha tempo para redecorar casas de homens crescidos, organizar festas e jantares, preparar a cristaleira com uísque e gelo para, quando o mancebo chegasse de um dia de trabalho exaustivo, ajudá-lo a escolher gravatas, abotoar colarinhos, passar mangas e golas, preparar suflês, decorar árvores de Natal agenda compromissos, esperar bela e faceira o homem da casa voltar”.
A vida precisava seguir, assim como os cinco filhos precisavam dela. Eunice dispensou a empregada doméstica e disse a eles que passaria a cozinhar. “Remediou o silêncio em casa, antes solar e movimentada, com o ‘famoso’ suflê, o preferido das crianças e do marido. Veroca, Nalu, Babiu, Eliana e Marcelo dividiam parte das tarefas para auxiliar a mãe”, conta Marcelo também.
Ela não podia sacar dinheiro da conta do marido, nem receber os benefícios como viúva, porque ele não estava “oficialmente” morto, ainda que os gritos de Rubens Paiva ecoassem no mesmo galpão militar em que ela esteve detida e já deduzisse que o marido não voltaria para casa
Para garantir o sustento da família, começou a trabalhar como assistente na empresa aduaneira do pai de Rubens, a Paiva Companhia. Fluente em inglês e francês, fez traduções e revisões para uma editora de revistas, até que decidiu estudar direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo.
A família só conseguiu um atestado que oficializasse a morte de Rubens Paiva em 1996, e então foi possível acessar contas bancárias, executar apólices de seguro e negociar imóveis. A primeira prova objetiva do crime só foi encontrada 41 anos depois, em novembro de 2012, com uma ficha que confirmava a entrada de Rubens numa unidade do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), onde foi torturado e assassinado.
Marcelo Rubens Paiva relata o esforço da mãe para iniciar a graduação. “Aos 42 anos, prestou outro vestibular. Estudou sozinha, viúva, triste. Em Santos, para onde nos mudamos, estudou e entrou em primeiro lugar na faculdade de direito e se transferiu para a Mackenzie. Uma prima conta que minha mãe estudava o tempo todo, que nós corríamos pela casa, e ela estudava, estudava”, escreveu. Dessa forma, Eunice Paiva deu outra guinada em sua vida e iniciou mais uma luta ferrenha, agora como advogada.
Como advogada, Eunice se tornou uma grande referência no país em defesa dos perseguidos pelo regime militar e rejeitou a pecha de “família vítima da ditadura”. Ao lado da estilista Zuleika Angel Jones – Zuzu Angel –, de Crimeia de Almeida, Inês Etienne Romeu, Cecília Coimbra, entre outras mulheres, liderou campanhas pela abertura de arquivos sobre vítimas do regime. Foi a pesquisa independente de Eunice e da família, em grande parte, que levou ao esclarecimento do caso.
Além de leitora voraz de clássicos da leitura, Eunice se tornou “advogada para tudo”: “Batida de carro, contratos, desentendimentos trabalhistas, problemas com a Receita. Foi minha revisora e contadora, além de advogada de todos os cinco filhos e de uma dezena de primos, amigos e até de amigos de primos e pais de amigos. Divorciou casais amigos, inventariou bens de famílias amigas, foi advogada de fábrica, de empresas e de índios, foi advogada do divórcio do Ronnie Von”, conta Marcelo.
Consultora
Em outro trecho do livro, Marcelo destaca que a mãe “foi advogada de ilustres desconhecidos, foi consultora do governo federal, do Banco Mundial, da ONU. Depois de se estabelecer financeiramente, Eunice se apaixonou pelo direito indígena. “Aos poucos, ela se deu ao luxo de atuar numa área que não dava dinheiro, mas pela qual se apaixonou inexplicavelmente: o direito indígena. Passou a atender e a representar nações indígenas que tinham suas terras demarcadas não respeitadas”, escreveu Marcelo.
A Funai, em vez de defender os indígenas, defendia o interesse dos fazendeiros. “Uma das poucas especialistas em direito indígena, foi advogada no Brasil do Sting, que doava grana para os caiapós, ele ligava para ela em casa, com um sotaque inglês inconfundível: — Eunice Paiva, porrr fa-vorrr,” relembra Marcelo. No final da década de 1980, Eunice trabalhou no conselho consultivo da Fundação Mata Virgem, que administrava no Brasil os recursos de uma organização fundada pelo músico.
Demarcação
“Creh cateh catiji”, que significa “os da aldeia grande”, é autodenominação do povo Krikati, que vive na Terra Indígena Krikati, no sudoeste do Maranhão. A região é banhada por rios e córregos das bacias do Tocantins e Pindaré Mearim. A demarcação dos mais de 144 mil hectares foi homologada somente em 2004, resultado de uma batalha judicial que envolveu o governo federal, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e um grupo de trabalho de advogados e antropólogos contratados pela Companhia Vale do Rio Doce, à época uma empresa estatal. Entre eles, estava a advogada indigenista Eunice Paiva.
O processo de demarcação foi iniciado na década de 1970, mas só na década de 1980 a empresa mineradora resolveu terceirizar profissionais especialistas como consultores para acelerar o processo. “Esse convênio que a Vale assinou com a Funai em 1982 era exatamente para desenvolver ações de proteção ações de desenvolvimento econômico e também ações de demarcação, regularização das terras indígenas que estivessem no eixo nas proximidades da Estrada de Ferro Carajás, que é aquela estrada de ferro que foi feita lá de Carajás, no Pará, até São Luís, no Maranhão, que é por onde o minério era exportado”, explicou ao Estado de Minas o coordenador-geral de Gestão Estratégica da Funai, Artur Nobre Mendes.
“Eu me emocionei muito quando vi o filme. A Eunice era da forma que a Fernanda Torres interpretou. Discreta, não era extrovertida, mas parecia alegre. Muito humilde, colega, nunca se colocou como consultora, como superior, mesmo estando ali naquele papel. Durante o trabalho, não conversávamos muito, mas sempre saíamos em grupo para as cidades próximas para almoçar, ela nunca falou sobre o que aconteceu com o marido”, contou Mendes ao EM.
Eunice Paiva foi fundamental para comprovar que o território delimitado pela antropóloga Maria Elisa Ladeira era de fato do povo Krikati. “Os proprietários diziam que estavam lá antes dos indígenas, porque a Funai os levou para uma outra área e depois eles retornaram. Ela conseguiu provar, primeiro, que eles não eram proprietários de coisa nenhuma, nenhum deles tinha um título válido. Embora apresentassem algum título, ela conseguiu anular todos os títulos desses pretensos proprietários. E segundo ela mostrou que aquela terra era indígena, apesar desse intervalo que eles não moraram lá, eles jamais deixaram de reivindicar esse retorno deles para a terra originária deles”, relatou o indigenista.
“Ela conseguiu desmontar completamente a argumentação da outra parte, através das argumentações, convencer o juiz a fazer um novo estudo de delimitação dessa terra que foi feito através da indicação da antropóloga Maria Elisa Ladeira, pela Associação Brasileira de Antropologia”, completou Artur Mendes.
Entre seus feitos, ela foi consultora da Assembleia Nacional Constituinte, que promulgou a Constituição Federal Brasileira de 1988. Foi uma das fundadoras do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (Iamá), uma organização não governamental que colaborou na criação de diversos projetos de saúde, educação e política para povos indígenas. Ela atuou no instituto até 2001.
“[Eunice] Acreditava na Justiça. Orgulhava-se de fazer parte daquele meio. Me dizia sempre: 'Ela existe para defender os mais mais fracos'”, conta também Marcelo Rubens Paiva
Alzheimer
A última grande luta de Eunice, essa perdida, foi contra o Alzheimer. Ela sofreu os últimos 15 anos de vida com a doença, se perdendo um pouco a cada dia até morrer. “Para onde foi todo aquele conhecimento?”, onde estaria aquela mulher vaidosa e cheia de paixões que a mãe costumava ser?”, questiona Marcelo em seu livro. Nos momentos de lucidez, ela também questionou o filho, lembrou que ainda estava viva. “Seu orgulho era maior do que o seu esquecimento. Jamais sentiria pena de si mesma. Nem que sentíssemos pena dela. Jamais pediu ajuda. O nome do livro de Marcelo, inclusive, é a afirmação derradeira de Eunice: “Ainda estou aqui”.
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Eunice Paiva morreu aos 89 anos, em 13 de dezembro de 2018, exatamente na passagem dos 50 anos do Ato Institucional número 5 (AI-5), que endureceu a ditadura e levou Rubens Paiva à morte dois anos e um mês depois. Uma coincidência que jogou mais uma luz sobre as lutas exemplares de uma mulher que se agigantou diante do regime de exceção e segue como exemplo permanente de defesa da democracia e de justiça.