Ailton Krenak: "Dra. Eunice ajudou a nos tirar da condição de tutelados"
Liderança indígena conta como Eunice Paiva foi decisiva na elaboração de uma nova ordem jurídica constitucional para os povos originários do país
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Siga noPara além do filme “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, que diante do terror de estado e a violência do “aparelho” repressivo da ditadura também sobre a sua família, a “resistência pelo afeto” é a dimensão biográfica de Eunice Paiva mais explorada, o livro de Marcelo Rubens Paiva, que deu origem ao nome do filme, abre o leque de uma mulher que atuou em múltiplas frentes, em defesa dos mais grupos sociais mais vulneráveis, principalmente povos originários.
Num tempo em que não havia Ministério Público, Eunice Paiva advogou e defendeu-os contra a política fundiária da ditadura e esbulho das terras indígenas, era acionada sempre que as aldeias se descobriam sitiadas por destacamentos militares destinados a desapropriá-las, e contra violações dos direitos humanos de toda ordem a que eram submetidos os povos originários, tratados pelo estado brasileiro como “incapazes” e, por isso, tutelados (Lei 6001, de 1973, conhecida como o Estatuto dos Índios).
Sobre a mãe, escreveu Marcelo Rubens Paiva: “Um dia cheguei na casa dela, tinha na sala um krenak, Ailton, de quem ficou muito amiga”. A referência é ao escritor Ailton Krenak, liderança indígena, ativista, de decisiva atuação na Assembleia Constituinte, atualmente, membro da Academia Brasileira de Letra (ABL) e Academia Mineira de Letras (AML). “Além de atuar como Corpo de Bombeiro contra a violência da ditadura sobre os indígenas, ainda mais importante foi a contribuição da dra. Eunice para pensarmos o futuro”, afirma Ailton Krenak, em depoimento sobre a amiga.
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“Naquele tempo indígenas eram considerados rios ou montanhas, sem direito a nada (...) Do ponto de vista da superação jurídica da condição dos indígenas de tutelados, foi a contribuição ainda mais excelente que a dra. Eunice proporcionou”, afirma Krenak, que conta ter tido apoio jurídico e orientação do coletivo de advogados que atuavam na Comissão Pró-Índio de São Paulo – além de Eunice, Dalmo Dallari e Carlos Marés – para a construção dos dispositivos que transformariam a Constituição de 1988, até hoje, na mais avançada da América Latina. Em uma década de debates e estudos, ao lado de lideranças como Krenak que articulavam, naquele momento, a organização dos povos indígenas, esses juristas se uniram a antropólogos para construir uma nova ordem jurídica.
Ailton Krenak sobre Eunice Paiva em depoimento a Bertha Maakaroun em 12 de fevereiro
“Tive a coincidência de vida de estar fazendo o meu trabalho para a organização do movimento indígena, ao final da década de 70, quando conheci a dra. Eunice Paiva. Organizar a causa significava me associar a outros coletivos de direitos humanos. Um dos coletivos de direitos humanos em que eu mais me apoiava era a Comissão Pró-Índio de São Paulo. Era um grupo fundado por antropólogos, naquele mesmo período, em resposta à tentativa da ditadura de retirar dos indígenas que estavam em áreas urbanas as suas tradições e o direito à terra, reconhecido desde o tempo do Brasil Colônia e protegido pelas constituições, desde 1934. Essa comissão tinha como conselheiro jurídico o professor Dalmo Dallari, as antropólogas Carmen Junqueira, Betty Mindlin e Lux Vidal, havia o corpo de professores da Unicamp que aconselhava, orientava. Eunice Paiva participava dessa comissão. Mas ela se juntava com esforços de proteção dos indígenas com qualquer outra frente, como a pastoral ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), muito relevante.
Vivíamos um tempo de ditadura feroz. Éramos chamados para reuniões, quase que como um convite pessoal, pois não eram assuntos que se podia conversar abertamente. Os movimentos sociais eram muito vigiados naquele tempo, às vezes até precisavam mudar de endereço. Ainda tínhamos um general na Presidência da República, João Batista Figueiredo, e havia um aparato de estado que monitorava a vida das pessoas, os eventos que frequentavam, vigiavam cidadãos comuns também. Então tínhamos encontros para ver como íamos atuar em casos de violência direta contra um povo originário, com tentativas de expropriações que aconteciam sem aviso, quando as comunidades eram cercadas por destacamentos militares inteiros para despejar as aldeias. Eunice Paiva era a nossa advogada de causas perdidas, como esses despejos. Éramos informados que havia destacamento militar inteiro avançando para despejar aldeias. Indígenas não eram avisados, eram surpreendidos. E quando reagiam, havia muita violência e mortes. Então, cercavam diversas aldeias como a do povo Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, do povo Pataxó, no Sul da Bahia, a do povo Kaingang, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Mobilizávamos quem a gente conhecia. Dra. Eunice conseguia mobilizar setores e fóruns que não eram de acesso direto dos indígenas, o que era muito importante. Ela acionava os meios conhecidos dela, juristas das universidades, para tentar deter ou diminuir a violência sobre os indígenas.
Nos primeiros anos em que convivi com o nosso coletivo dos direitos indígenas, em que atuava dra. Eunice e outros advogados, nunca a vi fazer referência ao próprio caso pessoal, o drama familiar vivido com o terror de estado. Ela não reportava o que estava acontecendo: se também estava sendo perseguida ou ameaçada. Sempre muito centrada e serena, vinha, ouvia relatos, participava das reuniões, pedia documentos, encaminhava. Pegava avião, para o Sul da Bahia, se reunia com o povo Pataxó ameaçado, a região era muito perigosa, as comunidades sofriam muitos ataques e tiros. Ela fazia o papel do Ministério Público, naquele tempo não tinha. Ou você tinha pessoas como ela para defender ou estava perdido. O trabalho voluntário dela é lembrado a partir do livro do Marcelo Paiva, “Ainda estou aqui”, que deu origem ao filme de grande sucesso, revivendo a presença dela. Dá para imaginar dona Eunice chegando nas reuniões e saindo com a gentileza e firmeza dela, fazendo trabalho da maneira mais competente.
Além de atuar como Corpo de Bombeiro contra a violência da ditadura sobre os indígenas, ainda mais importante foi a contribuição da dra. Eunice para pensarmos o futuro. À época, ela trabalhava com estudos sobre como superar a condição de tutela que os indígenas viviam, que era o "Estatuto do Índio", como ficou conhecida a Lei 6.001 de 1973. Essa lei manteve os princípios que já eram estabelecidos pelo velho Código Civil brasileiro (de 1916), de que os indígenas, sendo "relativamente incapazes", deveriam ser tutelados por um órgão estatal. Esse órgão entre 1910 e 1967 era o Serviço de Proteção ao Índio – SPI, depois veio a Fundação Nacional do Índio (Funai). A lei 6001 - ou Estatuto do Índio - bloqueava o livre acesso dos indígenas por exemplo à justiça. Só podia entrar em juízo se tivesse alguém “capaz” tutelando, representando.
O pensamento e a coragem da dra. Eunice ajudou muitos colegas antropólogos a compreender a importância de que derrubássemos o Estatuto do Índio, substituindo-o por uma outra proposta na Assembleia Constituinte. Ela trabalhou para superar a visão de muitos de suas colegas antropólogas na USP, que achavam que suspender a tutela dos indígenas seria jogá-los na arena, seria esmagá-los no confronto com o capitalismo e o agronegócio. Havia, à época, essa ideia, de que a Lei 6001 protegia os indígenas por sua incapacidade jurídica. A Funai fazia supostamente essa proteção e outros órgãos do estado podiam tutelar os indígenas. Antropólogos achavam que aquela tutela era proteção. E pessoas como dra Eunice consideravam inadmissível que no século 20 as comunidades fossem tuteladas. Naquele tempo indígenas eram considerados rios ou montanhas, sem direito a nada. A superação deste conceito, foi muito importante. Do ponto de vista da superação jurídica da condição de tutelados dos indígenas, foi a contribuição ainda mais excelente que a dra. Eunice proporcionou.
A proposta que levei à Constituinte foi resultado de quase uma década de trabalho, pesquisa, debate com dra. Eunice e os advogados que atuavam na Comissão Pró-Índio - Dalmo Dallari e Carlos Marés. Eles aconselharam, orientaram, foram importantes para enfrentarmos discussões sobre mineração em terras indígenas, para que incluíssemos no texto a proibição da autorização ao garimpo nas terras indígenas. Foi um processo de elaboração em que pensamos como íamos mudar a lei, o que hoje permite que mais de 50 mil indígenas estejam na universidade. A antiga lei declarava que todos indígenas em condição urbana não seriam mais indígenas. Foi muito importante na perspectiva dos direitos humanos a ação de dra. Eunice para trazer indígenas para este presente, com a autonomia das comunidades indígenas se auto-representando, foi conquista daquele período. Caso contrário estaríamos no século 21 ainda com o velho Estatuto do Índio, impedindo o exercício de nossa individualidade, de nosso direito à cidadania – ainda que hoje indígenas continuem sendo “meio cidadãos” no sentido de que ainda lutamos para que as conquistas jurídicas sejam implementadas.
Falando isso 30 anos depois, termos conquistado nossa cidadania, parece natural. Mas foi luta pesada e ainda dessa maneira, alguns povos em algumas regiões do mundo têm de sobreviver sem personalidade jurídica, quase como coisas. Hoje toda pessoa indígena é cidadão conceitualmente. Tem a integralidade do direito de se pronunciar diante de qualquer instituição. Hoje, além das mudanças de rotina, por exemplo, a Funai era agência anti-indígena, hoje a Fundação Nacional dos Povos Indígenas é dirigida por uma mulher indígena, Joenia Wapichana.
Joenia está à frente da Funai, mas antes teve mandato parlamentar, deputada por Roraima. É a primeira geração do século 21, em que os indígenas assumem posições dentro das instituições com mandato, muito diferente de quando Mário Juruna, primeiro indígena eleito em 1983, teve excepcional mandato e não era considerado cidadão, como pessoa tutelada, o mandato conflitava com a questão do direito de se auto-representar. Inclusive ele foi impedido de tirar passaporte e sair do país, pois era tutelado.
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Foi um presente para minha geração contar com pessoas como dra Eunice, Dalmo Dallari, Carmen Junqueira, Betty Mindlin, Lux Vidal e outros professores do coletivo de advogados para apoio jurídico do direito da USP, que aconselharam a feitura dos capítulos da Constituição que declaram o direito e reconhecimento das formas de associação e organização indígenas. É o direito natural. Todo mundo tem ao nascer. E no caso dos povos indígenas, por constituir comunidades, a Carta elenca um conjunto de valores que constituem direito originário. Indígenas não têm de renunciar a esse direito para se integrar a um sistema jurídico em que os direitos humanos estão vinculados. É avanço em relação ao resto da América Latina. Não tem nenhuma Constituição na América Latina que fez prevalecer o princípio de que a cidadania dos indígenas é natural, de que não precisam ser nacionalizados, alfabetizados para serem cidadãos. São cidadãos dentro das florestas e deste lugar emerge o lugar da florestania.”