Família de BH busca certidão de óbito para crime da ditadura
Parentes de Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, que desapareceu aos 31 anos, em 1971, entram com pedido para obter comprovação de que ele foi assassinado
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Siga noUma família que vive a dor de ter um parente desaparecido durante a ditadura militar brasileira (1964-1985) e que luta para encontrar respostas sobre o paradeiro dele. É a história de “Ainda estou aqui”, filme de Walter Salles baseado no livro homônimo e autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado Rubens Paiva, torturado e assassinado pelo regime militar. E também é a história da família Soares de Freitas, de Belo Horizonte. Assim como Eunice Paiva, mulher de Rubens Paiva, o casal Jaime e Alice buscou incessantemente por notícias do filho, Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto. Ele era membro da organização clandestina de esquerda VAR-Palmares e desapareceu aos 31 anos, em fevereiro de 1971, no mês seguinte ao sequestro de Rubens.
Anos depois, por meio de uma amiga de Beto, Inês Etienne Romeu, a família descobriu que ele foi torturado e morto na chamada “Casa da Morte”, em Petrópolis, na Região Serrana do Rio de Janeiro. Assim como Rubens Paiva, Beto teve sua história contada em livro, “Seu amigo esteve aqui”, de 2012. Mas foi o sucesso do filme de Salles que proporcionou à família Soares de Freitas o direito de ter a certidão de óbito de Beto retificada, para constar a causa da morte dele como violenta e provocada pelo Estado brasileiro. O Estado de Minas ouviu familiares de Beto e conta com exclusividade a luta da procura pelo seu paradeiro.
A repercussão de “Ainda estou aqui” fez o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicar, em dezembro do ano passado, a Resolução nº 601, que regulamenta a retificação de certidões de óbito de vítimas do regime militar. A norma estabelece que, no campo referente à causa da morte dessas pessoas, passe a constar a informação de “morte não natural, violenta, causada pelo Estado a desaparecido no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política no regime ditatorial instaurado em 1964”.
A emissão das novas certidões é gratuita e pode ser solicitada pelos familiares das vítimas ou qualquer outra pessoa. Pela resolução, os cartórios têm 30 dias para fazer a correção. Depois disso, os documentos são enviados para o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), que faz a entrega aos parentes. A família de Beto está à espera dessa entrega, que ainda não tem data para ocorrer.
A retificação das certidões de óbito pelos cartórios foi uma das orientações que a Comissão Nacional da Verdade fez em seu relatório, publicado em 2014, em consonância com as determinações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em relação aos presos políticos, desaparecidos e mortos.
LEMBRANÇAS DE FAMÍLIA
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Carlos Alberto Soares de Freitas era o caçula dos oito filhos do casal Jaime e Alice. É descrito por familiares como uma pessoa carinhosa, generosa e carismática. Ele cursava sociologia quando se aproximou do movimento estudantil e influenciou outros jovens na resistência contra a ditadura. Entre elas, estava Dilma Rousseff, então com 16 anos. Mais tarde, entrou para a VAR-Palmares e se mudou para o Rio de Janeiro.
Sérgio Soares Ferreira é primo-irmão de Beto. Conta que conheceu o primo aos 11 anos, em 1962, quando voltou a morar no Rio de Janeiro, depois de passar alguns anos vivendo nos Estados Unidos. A diferença entre ambos era de 11 anos. Ele descreve o primeiro encontro como chocante. “Eu voltando dos Estados Unidos, ‘filho da Guerra Fria’, com todo o discurso anticomunista e ele me mostra uma foto dele ao lado do Fidel Castro [que havia comandado a Revolução Cubana em 1959]. Fiquei chocado. Como pode um parente meu ter uma foto com o inimigo”, brinca o primo. Mas, mesmo com toda a diferença de idade, eles criaram uma amizade.
PICHAÇÕES E PRISÃO

Depois do golpe de 1964, Sérgio diz que o primo chegou a ser preso por nove meses, por fazer pichações contra a ditadura. Saiu por um habeas corpus. Conseguiu se formar em sociologia pela UFMG no ano seguinte. “Ele já era ligado ao movimento estudantil, mas organizou a primeira associação de favelas de Belo Horizonte, participou de ligas camponesas”, lembra.
O primo ressalta ainda a ligação de Beto com a cultura. “A primeira peça de teatro que vi foi com ele: ‘Morte e vida severina’, de João Cabral de Melo Neto, com música do Chico Buarque. Eu tinha uns 15 anos”, relembra. Em 1967, Beto entrou para a clandestinidade: “Começou a militar mais no Rio, mas viajava o país todo.”
Durante esse período, Sérgio conta que se encontrava com o primo em peças de teatro ou na casa de amigos até com certa frequência. “Mas, depois do sequestro do embaixador americano [Charles Elbrick, em 1969], as coisas começaram a ficar mais complicadas. Minha mãe pediu para ele não me procurar mais porque a repressão aumentou muito, veio o AI-5”, pontua.
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Sérgio ressalta que ainda viu Beto algumas vezes antes de o primo ser preso. “Ele era sempre muito calmo, nunca andou armado, nunca praticou nenhuma ação armada. Era um cabeça política [da organização]. Em janeiro de 1971, foi a última vez que cruzei com ele, em Ipanema.” Sérgio disse que não falou com o primo, pois estava acompanhado.
CARTA À FAMÍLIA
Depois da prisão de Beto, a família recebeu uma carta que ele deixou preparada caso fosse pego pelo regime. Depois disso, começou a busca por notícias do paradeiro dele. César Vanucci é cunhado de Beto. A esposa dele era a irmã mais velha e a única dos sete que está viva, mas tem um quadro de saúde delicado.
Vanucci diz que eles conviveram pouco com Beto, porque moravam em Uberaba, no Triângulo Mineiro. Quando se mudaram para Belo Horizonte, em 1965, segundo ele, Beto logo foi morar no Rio. Mas acompanhou a luta dos sogros pelo paradeiro do filho. A última vez que Beto esteve em Belo Horizonte foi no Natal de 1968.
“Morreram mais cedo, acredito eu, do que lhes estava reservado, por causa do sofrimento que maculou a vida deles. Porque não encontravam em lugar nenhum, respostas para as perguntas angustiantes que eles faziam. Nunca ninguém lhes deu essas respostas”, lamenta Vanucci.
Ele cita ainda que a carta de Beto deu origem a uma outra, escrita pela família e encaminhada ao ministro da Justiça na época, Alfredo Buzaid. “Nela, meu sogro abriu o coração, pediu que fosse facultada a ele a possibilidade de ver o filho. Ele não estava endossando o que o filho teria feito. Não se tratava disso. Era um pai angustiado que queria notícias do filho desaparecido porque isso estava trazendo desassossego e sofrimento atroz à família.”
O pedido produziu algum efeito, segundo ele. A mãe e a irmã de Beto, a esposa de Vanucci, foram recebidas em Brasília, pelo chefe do gabinete militar da Presidência da República para uma reunião. “A elas foi dito que ele estava desaparecido.” A esposa de Vanucci teria, então, feito um apelo por notícias do irmão. Os militares prometeram que fariam uma nova verificação nos quarteis e presídios e retornariam com informações. Dias depois, ela recebeu um telefonema, mas o militar disse que Carlos Alberto continuava desaparecido.
CASA E QUARTO INTOCÁVEIS
Cláudia Vanucci é filha de César e sobrinha de Beto. Ela fala da última lembrança que tem do tio com vida.“Eu tinha 7 anos. Ele era jovem, tocava violão. Nós, os sobrinhos, amávamos ver o tio Beto porque era um cara muito alegre. Amava crianças. Esse último Natal foi na nossa casa. Ele já estava clandestino no Rio, veio escondido. Foi um momento muito lindo porque ele chega tocando violão. Foi uma alegria.”
A falta de informações sobre o paradeiro de Carlos Alberto deixou marcas na família Soares de Freitas. Cláudia relembra o sofrimento da avó. “Ela morreu esperando ele chegar. Não deixava, nem ela nem meu avô, trocarem a chave da casa”, conta, emocionada. O quarto do tio também ficava sempre arrumado. “Ela esperou 30 anos e o Beto não apareceu. Os militares prometendo uma resposta e a gente já sabia [que ele estava morto].”
A mãe de Cláudia, Addi, era a irmã mais velha de Beto, e se sentia no dever de buscar informações sobre ele. Segundo ela, a mãe foi a Juiz de Fora e a Brasília atrás de notícias do irmão. “Minha avó e meu avô envelheceram muito antes da hora, com uma angústia e tristeza. A lembrança que eu tenho da minha avó era de uma pessoa ‘meio robô’, triste, parada. Sem vida, sem ânimo.”
A sobrinha conta ainda que os avós nutriam a esperança de que o tio fosse voltar em algum momento. “Quando ele some, ele estava com a chave do apartamento. Por isso, não se podia mexer na fechadura da casa. Uma época cogitou-se vender o apartamento para tirá-los da tristeza. Era um apartamento fúnebre, com a dor da não certeza da morte.”
Mas os dois foram terminantemente contra a venda do imóvel. Eles acreditavam que o filho poderia voltar. “Eles morreram esperando o tio Beto voltar. Primeiro, o meu avô e, alguns anos depois, a minha avó. Continuou uma mulher triste. Era uma tristeza da alma, a alma dela não conseguia sorrir”, afirma Cláudia, emocionada.
SOFRIMENTO
Ela lembra quando ajudou a mãe a desfazer o quarto do tio desaparecido, depois da morte da avó. “O quarto era 'imexível', tinha uma boina, uma estante de tijolinhos lotada de livros de sociologia. Foi quando resolveram vender o apartamento, depois que a vó foi embora.”
A sobrinha ressalta que a dor da família é não ter recebido um corpo para ser enterrado e por não saber o que foi feito com ele após a morte do tio. “Está na ossada de Perus, foi jogado no mar? O que fizeram depois de torturá-lo ao extremo?”, pergunta.
A Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos colheu material genético de Cláudia e da mãe dela. O objetivo é tentar localizar o corpo do desaparecido. “Já localizaram pela comissão um corpo na ossada de Perus. Entregaram para a família os ossos para poder fazer um ritual.” A sobrinha diz que está em contato com os geneticistas, mas o processo é demorado. “Isso já tem uns dois anos e ainda sem muito avanço.” A família, porém, tem esperança de conseguir encontrar os restos mortais de Beto e dar a ele um enterro digno.
“Seu amigo esteve aqui”
A procura por Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, desaparecido aos 31 anos, em fevereiro de 1971, durante a ditadura militar, é uma longa história de sofrimento e dor para os seus familiares. Rompeu as fronteiras brasileiras, chegou à Anistia Internacional, virou livro e agora vai render um documentário.
Sérgio Soares Ferreira, primo de Beto, conta que, depois do desaparecimento, a falta de notícias o fez acreditar que ele estava morto. “Mas desaparecido é isso, você nunca tem certeza de nada”, disse ele ao Estado de Minas. Em 1974, Sérgio viajou para a Inglaterra e procurou a Anistia Internacional. “Tinha um relatório sobre tortura no Brasil. Fui olhar as mortes e foi aquele choque. Tinha uns 80 nomes e o dele estava lá: morto sob tortura, em 2 de abril de 1971. Inês Etienne [amiga de Beto] testemunhou sua morte”, descreve.
O primo conta que voltou e ligou para Eduardo, outro irmão do Beto. “Ele disse que conhecia a Inês, que frequentava a casa da família em BH.” Mas Sérgio só conseguiu visitar Inês, que estava presa pelo regime, em 1978. “Ficamos amigos. A Inês para mim é como se tivesse ressuscitado o Beto. Passei a visitá-la toda semana no presídio.”
A sobrinha Cláudia Vanucci relembra que Inês, amiga de infância de Beto, foi até a casa da avó quando saiu da prisão para contar o que aconteceu. Enquanto era torturada na ‘Casa da Morte’, em Petrópolis, Região Serrana do Rio, um sargento do Exército, que conhecia tanto Beto quanto Inês, do tempo em que viveu em Minas Gerais, informou a ela que o amigo passou por lá. “Seu amigo esteve aqui”, teria dito. A frase dá nome ao livro que narra a história de Beto.
‘A Casa da Morte’ era um centro clandestino do Centro de Informações do Exército (CIE) para torturar e matar guerrilheiros, com papel de destaque em suas respectivas organizações. Inês Etienne Romeu foi a única sobrevivente das torturas praticadas no local e contou o que sofreu em depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2014.
A ideia do livro surgiu da vontade do primo Sérgio, da jornalista Flávia Cavalcanti, também ex-militante do VAR-Palmares, e de Sérgio Campos, companheiro de militância do Beto, de contar a história do amigo. Eles convidaram a também jornalista Cristina Chacel para fazer as entrevistas e escrevê-lo. O livro foi publicado em 2012 e tem entre os depoimentos o da ex-presidente Dilma Rousseff, que também foi tortura pelo regime, feito por Chacel no Palácio do Planalto.
DOCUMENTÁRIO
O filme ‘Ainda estou aqui’, de Walter Salles, que recebeu três indicações ao Oscar, é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado Rubens Paiva, morto pelo regime militar em 1971. A vida de Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, contada no livro ‘Seu amigo esteve aqui’, também vai virar filme. O diretor do documentário, José Carlos Asbeg, disse ao Estado de Minas que foi convidado pelos amigos de Beto, responsáveis pelo projeto do livro, em 2020. “Em setembro ou outubro; estava fora do Rio, me resguardando da pandemia. Nos últimos quatro anos, mantemos reuniões semanais.”
Ele diz que não conhecia a história de Beto. “Quando fui convidado, não hesitei, em nenhum momento. Recebi o livro, ele é extremamente emocionante, muito bem escrito.”
Asbeg lamenta, porém, não ter conhecido a autora, a jornalista Cristina , já falecida. “Mas o filme não é baseado no livro. É inspirado no livro. O livro se atém ao passado, o filme vem ao presente. É uma honra ter sido procurado e ter a confiança dessas pessoas que conviveram com ele e viveram aquele período”, ressalta.
O cineasta destaca o que mais chamou sua atenção depois que leu a história. “A generosidade dele de entregar a vida por justiça social no Brasil. Impossível não se sentir comovido pela história do Beto. Ele podia ter saído do país, ter se preservado, ter tido uma carreira política brilhante. Todo mundo via nele um líder nato. Ele foi um homem que faz falta para o Brasil. É o tipo de pessoa que eu gostaria de ter sido amigo”, comenta.
Ele se recorda também de quando entrevistou a ex-presidente Dilma Rousseff para o filme. “Perguntei a ela qual a falta que ele fazia. Ela respondeu que ele não teve tempo; enquanto ela constituiu família, ele não teve tempo de ter a dele. E era um homem absolutamente afetuoso e familiar, tanto que escreveu sete cartas para os pais durante o período em que esteve na clandestinidade.”
O filme ainda não tem previsão para ser finalizado, já que conta com recursos de leis de incentivo à cultura. “Entrei em mais um edital de longa-metragem, do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). É um mecanismo de apoio ao audiovisual. Agora é aguardar a seleção para ver se sou contemplado”, diz Asbeg.
O cineasta destaca ainda o momento importante vivido com a repercussão do sucesso do filme de Walter Salles. “Tem uma série de circunstâncias favoráveis no caso do Beto e de centenas de outros desaparecidos políticos. O filme ‘Ainda estou aqui’ trouxe esse tema de uma forma muito contundente. Além da importância do filme, o STF acaba de votar, por unanimidade, a favor de nova ação penal relacionada à morte de Rubens Paiva. A morte dele sendo analisada, vai criar uma jurisprudência para que todos os demais casos sejam analisados, inclusive o do Beto.”
A “Casa da Morte” também está em processo de tombamento, segundo ele. “Já houve o provisório. Falta o governador Cláudio Castro, assinar o tombamento e publicar no Diário Oficial. Já há recursos para remunerar a família que mora lá. A casa deve ser transformada em memorial.” Ele cita ainda a resolução do CNJ que estabelece a retificação da causa da morte nas certidões de óbito. “A retificação vai explicitar que essas pessoas foram desaparecidas por atos violentos de agentes do Estado. O Estado brasileiro será responsabilizado.”
Há ainda a decisão do ministro do STF Flávio Dino de rever a Lei de Anistia para casos de ocultação de cadáver. Segundo o magistrado, o sumiço dos corpos, sem a possibilidade de sepultamento pelas famílias, é um crime permanente. Na decisão ele cita o sucesso do livro e filme “Ainda estou aqui” para embasar seu parecer. “Existem todas essas circunstâncias que impulsionam o momento do país de se encontrar com sua memória, com sua história. É um momento único. O país precisa virar essa página, mas de uma maneira digna. Não encobrir, esquecer, tem que punir, responsabilizar. Para que não aconteça nunca mais”, conclui Asbeg.