Como a ditadura matou a mineira Zuzu Angel após assassinar seu filho Stuart
Estilista que dedicou vida e carreira a esclarecer a morte de Stuart Angel morreu sem obter respostas, em "acidente" depois ligado à máquina de repressão
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Siga noA estilista mineira Zuzu Angel morreu em 14 de abril de 1976, no Rio de Janeiro, quando o Karmann Ghia azul que dirigia derrapou na saída do túnel Dois Irmãos – anos depois batizado com o nome da estilista. O carro bateu contra a mureta de proteção antes de despencar em uma ribanceira. Quase um ano antes, em 23 de abril de 1975, a mineira, temendo pelo futuro, havia redigido uma carta entregue ao compositor Chico Buarque e outros amigos, na qual dizia: “Se algo vier a acontecer comigo, se eu aparecer morta, por acidente, assalto ou qualquer outro meio, terá sido obra dos mesmos assassinos do meu amado filho”.
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No ano seguinte à morte dela, Chico Buarque e Miltinho, do grupo MPB-4, compuseram Angélica, em homenagem a Zuzu Angel, em tom de acalanto: “Quem é essa mulher/que canta sempre esse estribilho?/Só queria embalar meu filho/que mora na escuridão do mar/Quem é essa mulher/que canta sempre esse lamento?/Só queria lembrar o tormento/que fez o meu filho suspirar”.

O reconhecimento do crime de Estado
Em março de 1998, 22 anos após a morte da mineira de Curvelo, o governo brasileiro reconheceu que ela foi vítima de atentado político, e não de acidente de carro. O reconhecimento de que a morte foi provocada, e não acidental, ocorreu por meio de trabalho do hoje assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Nilmário Miranda, que, como deputado federal, integrou a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), instituída no primeiro mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso pela Lei 9.140, de 4 de dezembro de 1995 – extinta pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em dezembro de 2022, no fim do seu governo, a comissão foi recriada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em julho de 2024.
Nilmário relata que em 1996, como membro da CEMDP, localizou em João Pessoa (PB) o advogado Marcos Pires, que tinha sido testemunha da morte da estilista. O ex-deputado informou que, ao prestar depoimento à comissão, o advogado que morava à época em um prédio em São Conrado, perto do túnel no Morro Dois Irmãos, onde ocorreu o “acidente” descreveu que, da janela de seu apartamento, viu dois carros emparelhados na saída do túnel, quando um deles se chocou com outro (onde estava Zuzu Angel), levando-o a despencar pelo barranco.
“Ele desceu do apartamento e chegou ao túnel quatro minutos depois. Ao chegar, o local já estava cercado, com a presença de viaturas, aqueles carros da polícia política do regime militar”, descreve Nilmário. Ainda segundo ele, a partir do depoimento do advogado, chegou-se à conclusão de que o Karmann Ghia guiado por Zuzu Angel foi prensado por um jipe e jogado para fora da pista na saída do túnel.
Nilmário acrescenta que, logo após a morte de Zuzu, o advogado Marcos Pires se mudou para a Paraíba e procurou o então deputado federal de Pernambuco Marcondes Gadelha para confidenciar o que sabia sobre o caso. Teria sido orientado pelo parlamentar a não contar nada sobre o que testemunhou, para não correr o risco de também ser morto pela repressão.
Por isso, explica Nilmário, o advogado só deu o seu verdadeiro testemunho em depoimento à Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos mais de duas décadas depois. “Eu só vi um carro saindo (do túnel) e logo em seguida um outro carro que emparelha com esse carro. (…) Eu vi quando o carro que ultrapassa o carro da direita (…) abalroa este carro (…) e faz com que ele caia a uma distância que estimei na hora em cinco metros (…)”, declarou o advogado Marcos Pires em depoimento ao próprio Nilmário, em 12 de fevereiro de 1996, conforme o livro-relatório “Direito à memória e à verdade”, editado pela CEMDP.
O ex-deputado relata que a versão de Marcos Pires contrariava frontalmente o laudo oficial sobre o acidente. Diante disso, o relator da comissão, o advogado Luiz Francisco Carvalho Filho, procurou dois especialistas em perícias de trânsito em São Paulo – Valdir Florenzo e Ventura Raphael Martello Filho –, para analisar os documentos policiais e emitir um novo relatório. “Os especialistas foram procurados para fazer a análise de forma gratuita, para não ter nenhuma conotação de laudo encomendado”, explica Nilmário.

“Acidente” com laudo inverossímil
Valdir Florenzo e Ventura Martello emitiram um relatório detalhado, em que desmentem a versão oficial do acidente que vitimou Zuzu Angel. “Ao reexaminar o laudo original, duas circunstâncias chamaram minha atenção. Em primeiro lugar, o documento é instruído com 16 fotografias mas, aparentemente, nenhuma delas se destinava a mostrar, especificamente, as marcas da derrapagem (28 metros) na pista e as marcas da atritagem nos pneus dianteiros”, descreve trecho do relatório.
“Em algum lugar, na perspectiva de um observador leigo, surgiram as seguintes indagações: o meio-fio da direita seria um obstáculo capaz de provocar uma mudança de trajetória tão drástica como a que foi descrita? Levando-se em consideração que, segundo os próprios peritos, o meio-fio é de altura normal e que, segundo as fotos que instruem o laudo da época, estava visivelmente coberto por vegetação rasteira, o veículo, naquela trajetória, não iria simplesmente transpor o obstáculo?”, registra outro trecho.
Os peritos também descartaram a possibilidade de Zuzu ter dormido ao volante. “A dinâmica pretendida pelo laudo correspondente ao exame do local é absolutamente inverossímil. Primeiro, porque um veículo jamais mudaria de direção abruptamente única e tão somente por conta do impacto de qualquer de suas rodagens contra o meio-fio, o qual seria galgado facilmente, projetando-se o veículo pelo talude antes de chegar ao guarda-corpo do viaduto”, acrescentaram
“O laudo oficial sobre o acidente da Zuzu Angel foi desmoralizado. Era um laudo que deliberadamente falsificava a lei da física. Não restou dúvida de que a morte dela foi provocada”, assegura Nilmário Miranda, ex-integrante da a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
As trajetórias de Zuzu e Eunice Paiva
A jornalista Hildegard Angel faz um paralelo entre a trajetória de sua mãe, Zuzu Angel, e Eunice Paiva, duas mulheres que se notabilizaram por travar batalhas na tentativa de descobrir o paradeiro de pessoas queridas que foram vítimas da ditadura brasileira – a primeira, para encontrar o filho Stuart Edgard Angel; a segunda, à procura do marido, Rubens Paiva.
“Foram mulheres diferentes, em contextos diversos, com as próprias cruzes. Eunice era mais jovem, tinham oito anos de diferença. Em 1971, quando o sanguinário (brigadeiro João Paulo Moreira) Burnier (1919/2000) trucidou Stuart e Rubens Paiva, Zuzu tinha 49 anos, e os filhos já nos 20 anos. Eunice tinha 41 e filhos pequenos”, relata Hildegard. “Zuzu sobrevivia de seu trabalho, a costura, a moda, com que sustentou a criação e a formação dos três filhos. Ela costurava para a elite. Eunice era a elite. Mas, numa ditadura fardada e truculenta, como foi a nossa, nem a elite escapava”, completa a jornalista.
Ela destaca que a mãe usou o ofício de estilista como “instrumento de luta”. “A profissão lhe abriu as portas da mídia, a simpatia de pessoas influentes, artistas inclusive. Ela se agarrou desesperadamente a qualquer conhecido que pudesse lhe abrir nem que fosse uma nesga de porta ou janela a que pudesse recorrer”, relata.
“Zuzu peregrinou sua dor, distribuindo relatos, textos e poesias sobre a tragédia de seu filho e 'santinhos' com a foto dele – que imprimia aos milhares –, fosse no ateliê de costura, na loja, em agências bancárias, no comércio do entorno, nas redações dos jornais, no cabeleireiro, nas reuniões sociais, nos desfiles de moda, na vizinhança, e até sob a porta do também vizinho de rua, general Orlando Geisel, irmão do (ex-presidente) Ernesto Geisel, que se recusou a recebê-la como presidente”, descreve.
“Ela não poupava os ouvidos de ninguém, numa época em que raros desejavam escutar. Mas expressava dor tão pungente, que mesmo os mais indiferentes se compadeciam. Na fachada de sua loja, cintilava em néon um anjo, marca de sua moda, que de fato representava o filho que partira – e todos sabiam. Dali saiu Liza Minnelli, então a maior artista do mundo (a Madonna da época), levando na sacola as camisetas de anjo de Zuzu, que ela vestiu nos ensaios do show que faria no Rio, transmitidos pela TV”, afirma a jornalista.
“Zuzu arriscou sua vida o tempo todo, atirou-se na denúncia como uma guerrilheira em ação. Entregou dossiê sobre a morte do filho ao secretário Henry Kissinger, em visita ao Rio, reuniu-se com a Anistia Internacional no Brasil e no exterior, mobilizou os movimentos de direitos humanos, os religiosos católicos e movimentos feministas. Foi ao Senado americano, visitando pessoalmente os parlamentares em seus gabinetes, conseguindo que eles cobrassem por escrito nossas autoridades pelo desaparecimento de Stuart”, afirma.
Duas lutas, dois métodos
A jornalista também enaltece o esforço de Eunice Paiva, retratada no filme “Ainda estou aqui”. “Eunice lutou sua luta com outro instrumental, a seu tempo, se dedicou aos estudos, articulou-se com a academia e os políticos, voltou seu interesse para os indígenas, excluídos de tudo, uma trajetória bonita, importante”, destaca.
Para ela, houve um “encontro” nas histórias de Eunice e Zuzu, pelas perdas de pessoas queridas em período sombrio da ditadura. “Elas experimentaram da forma mais desumana e dura a experiência do desaparecimento da pessoa mais amada. Agravado pela proibição de falar, de procurar, de questionar. Impedidas de expor sua dor, de comentar, de protestar, denunciar”, relata.
Hildegard lembra que Eunice Paiva tinha cinco filhos para criar “e não podia compartilhar com eles seu desespero, nem fazê-los solidários no sofrimento”. “Vivia a proibição de sentir.” “Mamãe viveu a mesma coisa: não podia fragilizar as filhas sobreviventes. Buscou soluções para fortalecê-las. Uma filha, enviou para estudar no exterior, com grande sacrifício, mesmo a contragosto da jovem. Para a outra – eu – providenciou outra profissão, pois percebeu que, como atriz, ela seria alvo fácil da ditadura. Inseriu-a na equipe da então maior colunista social do país, Nina Chaves, em 'O Globo'. Dessa forma, estaria blindada. Uma estratégia silenciosa de que só há pouco tempo me dei conta”, relata a filha de Zuzu Angel.
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“A ausência do ente amado esteve fortemente presente na consciência de Eunice e de Zuzu, todo o tempo, o tempo todo, eternamente. O desaparecimento do físico correspondendo ao aparecimento da ausência vitalícia. Acordadas e dormindo, sonhando e tendo pesadelos, condenadas à tortura da eterna esperança da volta impossível”, descreve a jornalista.
“As lutas de Zuzu e Eunice foram por causas igualmente trágicas, legítimas, em circunstâncias diferentes e com métodos diversos. Ambas se mostraram efetivas para a memória e a história”, conclui Hildegard Angel.