Militares têm influenciado a política e a Justiça, conseguindo vitórias relevantes no Supremo, em casos sobre a Lei de Anistia e sobre a expansão da Justiça Militar. Por isso, as recentes decisões sobre a prisão de Braga Netto e a não aplicação da Lei de Anistia aos desaparecimentos são indicativos de que, desta vez, talvez, a deslealdade constitucional não será premiada.
Ainda que a Constituição Federal de 1988 tenha promovido uma clara opção por manter os militares bem longe da política, os últimos anos foram marcados pela ampliação da influência dos militares nos governos.
Nos governos Dilma I e II, uma série de operações de Garantia de Lei e da Ordem (GLO) permitiram às Forças Armadas se imiscuírem indevidamente em assuntos de segurança pública. Sob Temer, a influência foi ampliada e chegou a ser criado um cargo de interventor de natureza militar na intervenção federal no Rio de Janeiro.
O ápice, claro, foi visto durante o governo Bolsonaro, momento em que mais militares ocuparam o governo do que no período da ditadura militar. Generais no Ministério da Saúde, na Defesa, na Casa Civil, na Abin, além de um exército de tenentes e coronéis, sem contar os lambe-botas em outros escalões.
Essa influência militar também incidiu sobre o Supremo Tribunal Federal. O julgamento que considerou a Lei da Anistia constitucional é um exemplo de como o tribunal ponderou, equivocadamente e a favor dos militares, a responsabilidade por graves violações a direitos humanos, como tortura, estupros e desaparecimentos forçados. Uma premiação, com impunidade, àqueles que foram desleais ao projeto constitucional.
Os militares colecionaram outras vitórias no tribunal: no final de 2023, por maioria apertada de 6 a 5, o tribunal entendeu que a Justiça Militar pode julgar civis em tempos de paz na hipótese de crimes que “afetem a dignidade das Forças Armadas”. Ainda que a maioria do Supremo entenda que a justiça militar seja mais justiça e menos militar, a realidade diz o contrário.
Nas últimas semanas, um ministro do Superior Tribunal Militar não viu “repercussão social” na morte, com mais de 80 tiros, de um músico e de um trabalhador informal durante uma GLO em 2019, negando a participação de organizações de direitos humanos no processo. A Justiça Militar permanece refratária às ideias de pluralização, democratização e transparência. Aliás, a expansão da Justiça Militar para crimes cometidos por militares em operações de GLO aguarda julgamento no Supremo.
A influência dos militares no Supremo, entretanto, parece ter ido além dos processos nos últimos anos. Não há como ignorar que um tuíte de general ameaçou o tribunal antes de julgamento que poderia liberar Lula da cadeia, em 2018. O tribunal decidiu pela não liberação de Lula e, naquele mesmo ano, Jair Bolsonaro se tornaria presidente da República e outro general, o Mourão, seu vice.
Durante o governo Bolsonaro, a presidência do Supremo reclassificou o golpe de 64 como um “movimento”, as Forças Armadas se negaram a cumprir ordens judiciais relativas à desintrusão em terras indígenas e ainda assumiram um papel no questionamento à integridade das urnas.
Agora sabemos que parte das Forças Armadas esteve envolvida diretamente no planejamento e na execução de uma tentativa de golpe de Estado e de abolição do estado democrático de direito, de novo. Conforme revelações da Polícia Federal, o plano, que teria participação do general Braga Netto (ministro do governo Bolsonaro e candidato à vice-presidência na chapa de Bolsonaro para as eleições presidenciais em 2022), incluía assassinar os opositores políticos, vencedores do pleito eleitoral, prender ministros do tribunal e montar um governo transitório. Além disso, a PF apontou que Braga Netto tentava frustrar as investigações impedindo que a delação de Mauro Cid tivesse desdobramentos.
Ainda que os fatos revelados sejam aterradores – a justificar, em qualquer cenário, a imposição de medidas contundentes -, a prisão de Braga Netto é um marco histórico no Supremo: trata-se de um general preso no âmbito de investigações sobre uma tentativa de golpe. Parece ser um sinal de que, ao menos desta vez, a deslealdade constitucional não será premiada.
Tão relevante e histórica quanto a prisão de Braga Netto foi a recente decisão do ministro Flávio Dino que reconheceu a repercussão geral em processo no qual se discute a não aplicação da Lei de Anistia a crimes de ocultação de cadáver, dado o caráter permanente do crime. Em momento no qual o general Mourão, ex-vice de Bolsonaro e agora senador, propõe anistia aos golpistas do 8 de janeiro, é importante que o Supremo revisite sua má posição sobre a validade da anistia para crimes dessa natureza.
De tuíte à prisão, da anistia à responsabilização, parece que o Supremo Tribunal Federal, entre os militares e a Constituição, escolheu a Constituição.
Eloísa Machado é coordenadora do projeto Supremo em Pauta, da Fundação Getúlio Vargas (FGV)