Se eu te pedisse para lembrar uma canção de ninar, possivelmente você cantaria o famoso “Wiegenlied, Opus 49, nº 4” de Johannes Brahms (1833-1897). Tema clássico para fazer as criancinhas adormecerem (e musicalizar algumas caixinhas de joias), a composição lançada em 1868 foi dedicada à sua amiga, Bertha Faber, por ocasião do nascimento de seu filho.

Um fato interessante é que o compositor de uma das mais célebres canções de ninar não dormia tão bem assim. Brahms nunca foi casado, mas os relatos bem-humorados do barítono George Henschel (1850–1934) durante sua turnê conjunta acende uma luz amarela.




Segundo Henschel: “Nós nos retiramos para o quarto nº 11 e foi meu esforço instantâneo e mais ardente dormir antes de Brahms, pois eu sabia por experiência anterior que, caso contrário, seu hábito impertinentemente saudável de roncar significaria a morte de qualquer esperança de dormir em meu sono”. Além disso,“minha alegria ao vê-lo pegar um livro e ler na cama só foi igualado pelo meu horror quando, depois de alguns minutos, o vi apagar a luz de sua vela. Alguns segundos depois, a sala estava tocando com os ruídos mais sobrenaturais emitidos por seus órgãos nasais e vocais”

Além disto, algumas características importantes nos ajudam a suspeitar do seu diagnóstico:

  1. Brahms era um homem baixo, mesmo para os padrões da época. Embora magro quando jovem, tornou-se progressivamente obeso com a idade, até sua doença final
  2. Aos 35 anos, ele já era gordo demais para usar seu casaco de pele e no início da década de 1890, ele tinha dificuldade em alcançar além da barriga para pegar as chaves
  3. Brahms tinha um pescoço grosso e curto, claramente demonstrado em fotografias e esboços das décadas de 1850 e 1860; então desapareceu sob a barba espessa de meados da década de 1870.
  4. Em 1853, adormeceu durante a execução da sonata em si menor de Liszt
  5. Anos depois, Brahms frequentemente cochilava à tarde nos cafés de Viena, e sua barba menos esvoaçante constituía uma visão familiar para turistas curiosos
  6. Gustav Mahler em 1890 foi interrompido por um “bufo estranho”
  7. Brahms nunca foi um bêbado, mas consumiu quantidades substanciais de bebidas alcoólicas ao longo de sua vida
  8. “uma celebração da impotência” - o compositor repetidamente e intencionalmente evitou intimidade e casamento de longo prazo
  9. Brahms tinha uma personalidade dura e mesmo amizades longas e íntimas eram frequentemente pontuadas por explosões de rancor e falta de consideração

Após uma leitura mais cuidadosa destes relatos, sugere-se fortemente que ele sofria de apneia obstrutiva do sono (AOS), uma condição desconhecida à época e descoberta pela medicina somente em 1965.

A apneia do sono é um distúrbio grave do sono comum (acomete cerca de 33% da população brasileira), em que leva a pessoa a parar de respirar durante o sono. As vias respiratórias ficam bloqueadas repetidamente durante o sono e a quantidade de ar que chega aos pulmões é limitada. Quando isso acontece, os pacientes podem roncar alto ou emitir ruídos sufocantes. Nessa situação, seu cérebro e corpo ficam privados de oxigênio e você pode acordar. Isso pode acontecer algumas vezes por noite ou, em casos mais graves, várias centenas de vezes por noite.

Em muitos casos, uma apneia, ou uma pausa na respiração, é causada pelo colapso do tecido na parte de trás da garganta. Os músculos das vias aéreas superiores relaxam quando você adormece. Dormindo de costas, principalmente, a gravidade pode fazer com que a língua caia para trás, estreitando as vias aéreas causando ronco.

Se você se sentir cansado ou não revigorado depois de acordar, mesmo tendo uma noite inteira de sono, pode ser devido à apneia do sono. O sintoma mais comum da apneia do sono é o ronco. No entanto, nem todo mundo que ronca tem apneia do sono. É provável que o ronco seja um sinal de apneia do sono quando é seguido por pausas respiratórias silenciosas e sons de asfixia ou respiração ofegante. Pessoas com apneia do sono geralmente apresentam sonolência diurna ou fadiga.

Os sintomas comuns da apneia do sono incluem:

  • Ronco alto ou frequente
  • Pausas silenciosas na respiração
  • Sons de asfixia ou ofegante
  • Sonolência diurna ou fadiga
  • Sono não reparador ou agitado
  • Insônia
  • Dores de cabeça matinais
  • Acordar frequentemente durante a noite para ir ao banheiro
  • Dificuldade de concentração
  • Perda de memória
  • Diminuição do desejo sexual e dificuldade em manter uma ereção
  • Irritabilidade

A falta de oxigênio que o corpo sofre pode tem impacto negativo na saúde. Vários estudos demonstram que a apneia do sono pode aumentar o risco cardiovascular e de doenças do sistema neurológico, dentre outros.

Os fatores de risco incluem:

  • Excesso de peso: a obesidade aumenta muito o risco de AOS; os depósitos de gordura ao redor das vias aéreas superiores podem obstruir a respiração
  • Circunferência do pescoço: pessoas com pescoço mais grosso podem ter vias aéreas mais estreitas
  • Uma via aérea estreitada: além de amígdalas ou adenoides, os quais também podem aumentar e bloquear as vias aéreas - principalmente em crianças
  • Ser homem: os homens têm entre duas a três vezes mais probabilidade de ter apneia do sono do que as mulheres. No entanto, as mulheres aumentam o risco se estiverem acima do peso ou se tiverem passado pela menopausa
  • Idade: a apneia do sono ocorre significativamente mais frequentemente em adultos mais velhos
  • Histórico familiar: ter familiares com apneia do sono pode aumentar o risco
  • Uso de álcool, sedativos ou tranquilizantes: essas substâncias relaxam os músculos da garganta, o que pode piorar a apneia obstrutiva do sono
  • Fumar: os fumantes têm três vezes mais probabilidade de ter apneia obstrutiva do sono do que as pessoas que nunca fumaram; fumar pode aumentar a inflamação e a retenção de líquidos nas vias aéreas superiores
  • Condições médicas: insuficiência cardíaca congestiva, hipertensão arterial e diabetes tipo 2 são algumas das condições que podem aumentar o risco de apneia obstrutiva do sono. A síndrome dos ovários policísticos, distúrbios hormonais, acidente vascular cerebral anterior e doenças pulmonares crônicas, como asma, também podem aumentar o risco

Os números não mentem

Estudos já mostraram que a apneia do sono aumenta consideravelmente a mortalidade, além de ser associada a doenças cardiovasculares, depressão e câncer.  Dois estudos apresentados, em 2012, no encontro anual da Sociedade Europeia Respiratória, em Viena, na Áustria, apontaram para as graves consequências da apneia do sono grave. 

Uma das pesquisadas apresentadas no encontro revelou que pessoas que sofrem de apneia do sono e que passam ao menos 14% do tempo em que dormem com baixos níveis de oxigênio, provocados justamente quando a respiração é interrompida, chegam a apresentar o dobro de risco de morrerem por câncer do que indivíduos que não sofrem do distúrbio. 

Leia também: Você dorme bem? Conheça as doenças relacionadas ao sono

Ao normalizar uma “vida cansada”, deixamos de diagnosticar este distúrbio do sono tão comum e com um tratamento simples. Se você apresenta algum dos sintomas relatados acima, não deixe de comunicar o seu profissional de saúde de referência. Apneia tem tratamento e traz consigo uma importante melhora na qualidade de vida e redução dos riscos à saúde.

Brahms faleceu em 1897, na Áustria, em decorrência de um câncer. E para a nossa surpresa, a correlação entre o câncer e apneia é válida. Três estudos recentes apresentados no Congresso Internacional da Sociedade Respiratória Europeia (ERS) em Barcelona, na Espanha, encontraram associações entre o transtorno e o risco elevado de cânceres, declínio cognitivo e trombose. 

Será que se o diagnóstico de apneia do sono fosse dado no momento correto, teríamos sido agraciados com outras inúmeras composições deste gênio? Nos resta esta dúvida. E tu, roncas?

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