Há 30 anos, sempre que vai à praia, a bióloga Mônica Ferreira Lopes, do Instituto Butantan, aproveita para coletar peixes venenosos. De volta ao laboratório, ela e sua equipe extraem o veneno para desenvolver soros e tratar vítimas de acidentes causados por alguns tipos de animais do mar e de rios. Até agora, o grupo obteve sucesso com o bagre-amarelo (Cathorops spixii), comum em toda a costa brasileira, a arraia de rios da Amazônia (Potamotrygon orbignyi), o niquim ou peixe-sapo-do-nordeste (Thalassophryne nattereri) e um parente próximo do peixe-leão, o peixe-escorpião (Scorpaena plumieri), encontrado nos recifes. Lopes e o médico Vidal Haddad Júnior, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), do campus de Botucatu, escolheram essas espécies por causarem acidentes frequentes, com base em relatos de pescadores de vilas litorâneas do Nordeste e do Norte.
Testados em camundongos, os soros são produzidos como aqueles usados contra picadas de serpentes ou escorpiões: doses minúsculas de veneno são inoculadas em cavalos, dos quais depois se extraem os anticorpos usados para tratar pessoas. Em testes em camundongos, os soros se mostraram eficazes para deter os efeitos das toxinas dessas quatro espécies, como descrito em um artigo publicado em maio na revista científica International Journal of Molecular Sciences. Novos testes e a produção em maior escala, no entanto, dependem de o Ministério da Saúde (MS) reconhecer os acidentes com peixes como um problema relevante de saúde pública.
De 2007 a 2013, de acordo com o levantamento mais recente, publicado em 2015, o órgão registrou 4.118 acidentes com animais de rio e mar, incluindo ouriços e águas-vivas – ou 1,6 por dia. “Como a notificação não é obrigatória, o número real certamente é muito maior”, afirma Haddad, um dos autores do levantamento, publicado em 2015 na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.
Existem quase 200 espécies conhecidas de peixes venenosos que causam acidentes no Brasil – esse número aumenta pouco a pouco. “Recentemente, reconhecemos os pintados [Pseudoplatystoma corruscans], usados para fazer isca à milanesa nos bares brasileiros, como peçonhentos”, afirma Haddad.
Nos registros médicos, cerca de 70% dos acidentes são atribuídos a arraias de água doce, provavelmente os mais notificados porque as lesões são profundas e doloridas. Com base em suas próprias observações, porém, Haddad e Lopes consideram que os bagres, conhecidos como mandis de água doce, são os peixes que mais causam acidentes, por viverem em toda a costa e em rios.
De 126 pescadores do município de Miranda, em Mato Grosso do Sul, 38 haviam se machucado com bagres e, em Corumbá, 111 dos 355 pescadores relataram lesões causadas por mandis, segundo estudo publicado em 2018 na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Nas praias, os pescadores costumam descartar bagres pequenos na areia, que podem ser pisados por banhistas.
Há 30 anos estudando esses acidentes, Haddad tem observado que as pessoas não costumam procurar atendimento médico porque, em geral, a dor das ferroadas passa após poucas horas, ainda que as toxinas do veneno possam causar grandes danos ao organismo. “As infeções bacterianas são comuns nos ferimentos e podem levar a complicações graves como amputação e sepse”, observa. Lopes acrescenta: “Os médicos raramente identificam a verdadeira causa do ferimento, confundido com cortes de cacos de vidro ou ferroada de siri, que não é venenoso e não causa ferimentos graves. Alguns médicos ficam surpresos quando conto que peixe tem veneno”. O fato de esses peixes não serem citados nos formulários de notificação médica dificulta o trabalho.
Em parceria com a Secretaria da Saúde de Santa Catarina, a bióloga tem feito palestras para profissionais da área da saúde para aumentar a notificação dos acidentes com peixes. Também tem ajudado a produzir folhetos informativos para a população. Haddad, por sua vez, publicou em 2007 um manual para profissionais da saúde chamado Animais aquáticos potencialmente perigosos do Brasil: Guia médico e biológico.
Em seu doutorado, quando atendeu no pronto-socorro de Ubatuba entre 1998 e 1999, o médico constatou que não só os peixes perturbavam a paz dos moradores e turistas. Ali, os acidentes mais comuns, cerca de metade deles, eram com ouriços-pretos, um animal que não tem veneno ativo em humanos e vive em colônias de até 12 bichos, nas pedras. Os espinhos são tirados com duas agulhas grossas, sem anestesia. “Já atendi pacientes com até 50 espinhos, o que trava a fila do pronto-socorro”, relata Haddad.
A bióloga do Butantan testemunhou episódios dramáticos. Anos atrás, em um posto de saúde de Maceió, capital de Alagoas, ela conheceu um alfaiate que, 20 dias antes, pescava na lagoa de Mundaú, nos arredores da cidade, quando um bagre que balançava na vara espetou sua mão. O efeito do veneno do peixe foi tão intenso que parte dos músculos já estava necrosada e sem movimento 20 dias depois, quando foi ao posto. O médico que o atendeu teve de amputar os dedos indicador e médio da mão direita, e o alfaiate teve de antecipar a aposentadoria.
Lopes relata ter conhecido catadores de marisco no litoral de Alagoas que ficaram meses sem trabalhar após serem atingidos pelos espinhos do niquim, um peixe que fica enterrado em águas rasas. Mergulhadores também são vítimas frequentes: “As pessoas têm o péssimo hábito de tocar aquilo que observam e podem encostar no peixe-escorpião, escondido nos recifes”, diz ela. O veneno dessa espécie é o único que tem efeito em todo o corpo, e não apenas local, e pode causar problemas respiratórios e cardíacos.
Os venenos são compostos de proteínas e se somam a toxinas do muco da pele dos peixes, que normalmente protegem os animais contra patógenos. Em alguns peixes, como as arraias, o ferrão fica revestido pela pele e coberto de muco. O niquim é o único que injeta o veneno ativamente, como as serpentes. Ele contrai os músculos de glândulas que injetam o veneno por meio de quatro espinhos ocos, dois ao lado do corpo e dois nas costas. É o que mais causa ferimentos em quem pisa no animal sem perceber.
Os venenos dos peixes funcionam de forma parecida. Assim que entram na circulação sanguínea, geram uma intensa contração das artérias e veias. O fechamento dos vasos sanguíneos causa inchaço, vermelhidão na pele, inflamação, morte dos tecidos e infecções bacterianas. “A interrupção da circulação provavelmente é a causa da dor intensa, que os pacientes descrevem como excruciante”, comenta Haddad.
Embora usados como sinônimos, os termos veneno e peçonha expressam diferentes comportamentos, alerta o biólogo Carlos Jared, também do Butantan: “Animais peçonhentos, como as serpentes, atacam, mordem e injetam o veneno quando vão se alimentar ou se defender. Já os peixes usam o veneno apenas como forma de defesa, quando são pisados ou mordidos”. Os baiacus (Takifugu sp.), além de produzirem veneno, inflam o corpo, dando aos predadores a impressão de que seriam bem maiores, impossíveis de serem comidos. Suas toxinas estão na pele e em órgãos como o fígado, removidos antes de serem consumidos.
O avanço das arraias
Em 1982, o fechamento das comportas da usina hidrelétrica de Itaipu gerou um imenso lago que cobriu o salto de Sete Quedas, até então uma barreira natural às arraias. Com o caminho livre, elas subiram o rio Paraná, chegaram ao Paranapanema e continuam se espalhando.
“Por volta de 2005, coletamos as primeiras arraias no rio Tietê, hoje com quase um terço de seu curso ocupado por esses peixes”, relata Haddad. Sua previsão é de que as arraias avancem pelo Tietê acima e, pelos rios Grande e Paranaíba, cheguem a Minas Gerais. Ele recomenda andar arrastando o pé no leito do rio, principalmente no Pantanal e na Amazônia, para afugentar arraias escondidas.
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Na estação reprodutiva, em julho e agosto, as arraias migram de áreas mais profundas, onde se alimentam, para as rasas, onde se enterram no lodo para se esconder de predadores. A pisada de visitantes no leito do rio Araguaia, por exemplo, dispara um movimento reflexo de contração do rabo no peixe, com um a quatro ferrões de até 10 centímetros. Os ferrões são serrilhados e difíceis de serem removidos quando enterrados na perna.
O tratamento recomendado contra acidentes com peixes venenosos consiste em imergir o membro atingido em água quente a uma temperatura tolerável, remover o ferrão ou espinho e restos que tenham se quebrado no corpo, lavar a ferida com água e sabão, procurar ajuda médica, tomar os remédios receitados e fazer curativos até o ferimento desaparecer.