Duas cientistas brasileiras acabam de enviar para o espaço um experimento que pretende levar a descobertas que tanto podem ajudar a combater graves males mundanos, como o autismo e o Alzheimer, quanto a enfrentar problemas cósmicos, a exemplo do envelhecimento precoce do cérebro de astronautas quando estão fora da Terra.
"São organoides cerebrais criados em laboratório, mas com células humanas de verdade", explica a biomédica paulista Livia Luz, de 30 anos, em entrevista à BBC Brasil."Vamos testar, ao longo de trinta dias, o efeito da microgravidade e quais são as consequências possíveis para, por exemplo, um ou uma astronauta que passe muito tempo lá fora, no espaço."
Ao lado de sua colega e conterrânea, a bióloga fluminense Luisa Coelho, Livia operacionaliza o projeto. Elas enviaram três payloads, como se chamam, no termo em inglês, as cargas com o material de pesquisa, em um foguete lançado pela empresa americana SpaceX em 9 de novembro. Cada um deles contém milhares desses organoides cerebrais, que foram popularmente apelidados de minicérebros.
Os minicérebros são recriações minúsculas de redes neurais que simulam o desenvolvimento desse órgão em humanos. Após decolarem com o foguete no Kennedy Space Center, base da Nasa, a agência espacial americana, na Flórida, eles foram entregues com quase 3 toneladas de materiais a duas astronautas que estão na Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês).
"A ciência ainda sabe muito pouco dos efeitos da microgravidade nos nossos corpos e mentes", avalia Luisa Coelho, de 24 anos. "Se a Nasa quer mesmo enviar em breve a primeira viagem tripulada a Marte, isso precisa mudar."
A agência espacial americana tem planos de mandar ao planeta vizinho uma espaçonave com astronautas no ano de 2033. A ideia inicial é orbitar Marte e, na volta, fazer o mesmo com Vênus, antes do regresso à Terra. A proposta é ser a abertura do caminho para uma missão espacial que venha a pousar no Planeta Vermelho, programada para 2037.
Mais velhos no espaço
A dupla de cientistas brasileiras trabalha para o laboratório Muotri, da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD). O departamento é liderado por outro brasileiro, o neurocientista paulistano Alysson Muotri, de 49 anos.
A equipe de Muotri tem enviado experimentos para a ISS desde 2019. Para arcar com os custos do primeiro deles, há quatro anos, o cientista chegou a hipotecar sua casa para levantar o dinheiro necessário ao financiamento da empreitada.
O envolvimento dele com os estudos espaciais começou três anos antes, em 2016. Após ler pesquisas da Nasa de experimentos realizados na ISS, o brasileiro discordou de parte das conclusões.
Para ele, estava provado que nossas células envelhecem mais rápido no espaço. Só que a Nasa achava que era um efeito temporário, enquanto o brasileiro teorizava que, no cérebro, seria permanente.
Na primeira vez em que alertou a Nasa da problemática, não lhe deram atenção. Depois dos resultados promissores do experimento financiado por ele próprio, porém, Muotri conseguiu financiamento para os outros. Em 2020, enviou outro para a ISS e, no ano seguinte, mais um.
O trabalho do qual agora participam Livia e Luisa é o quarto do laboratório que é mandado para o espaço, em parceria com a Nasa. "Foram materiais com variabilidades genéticas bem variadas. A ideia é ver como cada indivíduo pode reagir ao ambiente de microgravidade e, quem sabe, assim descobrir organismos mais resistentes e que podem nos levar a tratamentos eficazes para astronautas", diz Alysson Muotri à BBC Brasil.
Os experimentos feitos até agora revelaram que as células neuronais envelhecem mais rápido no espaço. Em um mês, avançam o equivalente a dez anos, de acordo com o cientista. Na volta para a Terra, chegam a se regenerar um pouco, mas não completamente.
Foram testadas algumas formas de manipular o material frágil dos minicérebros na ISS. No escritório de Muotri em San Diego é exposto um modelo de um robô desenvolvido pelo laboratório e que é responsável por replicar as experiências que ele e equipe realizam aqui na Terra. Ou melhor, assim era até agora.
"Os organoides cerebrais são muito sensíveis e a máquina não consegue mexer neles com a delicadeza necessária", diz a biomédica Livia Luz. "Desta vez testamos outro método."
A equipe de cientistas calculou formas de aproveitar a microgravidade do espaço para instigar as alterações que esperam ver. Assim, desta vez ninguém, nem máquina nem humano, terá de manipular o material na ISS.
Compreender como envelhece nosso cérebro e, ainda mais, quais são os mecanismos que podem acelerar ou conter esse processo pode levar a diversos achados. Como no campo do combate a doenças ligadas ao processo degenerativo de nossas células, como o autismo e a esquizofrenia, quem sabe levando a novos tratamentos para esses males.
"Tem quem não acredite, mas eu acredito na cura para o autismo", afirma Muotri, pai de um menino autista.
Além dessas pesquisas, o laboratório que leva seu nome realiza diversos experimentos com os minicérebros. Uma linha pioneira de estudos, por exemplo, reproduziu como eram esses órgãos em neandertais, espécie humana extinta há 40 mil anos, inaugurando um novo campo para a ciência, a neuroarqueologia.
Um 'lab' de brasileiros
O Lab Muotri na UCSD tem 39 cientistas, dos quais em torno de 80% são brasileiros.
"Há uma prevalência maior porque profissionais de nosso país, ao saber de mim aqui, acabam por me procurar, por querer trabalhar comigo", afirma Muotri.
Luisa Coelho nasceu em Petrópolis, no Rio de Janeiro, e, após se formar no colegial, se mudou para San Diego por incentivo de uma tia que morava na cidade californiana. Lá ingressou na UCSD, onde formou-se bióloga, fez o mestrado e conheceu os trabalhos do colega brasileiro.
"No segundo ano da graduação, minha família me encaminhou uma reportagem sobre o trabalho do Muotri", recorda ela. "Queria estudar questões espaciais e enviei um e-mail a ele. Comecei estagiando de graça e, hoje, trabalho como técnica no laboratório e pretendo iniciar meu doutorado aqui."
Já a biomédica Livia Luz começou a colaborar com Muotri durante o curso de doutorado na Universidade de São Paulo (USP). Após se formar, sugeriu uma pesquisa de pós-doutorado para a UCSD. Desde o ano passado, ela trabalha no laboratório.
Muotri e sua equipe participaram de estudos pioneiros. Por exemplo, além da fundação do campo da neuroarqueologia e dos experimentos espaciais, ele integrou o time que descobriu, em 2016, a relação do vírus da Zika circulando no Brasil com casos de microcefalia.
"Queremos trazer os melhores cérebros do mundo para cá e é importante termos mentes que sejam oriundas de experiências diversas", afirma a epidemiologista Corinne Peek-Asa, vice-reitora da UCSD, e responsável pela área de pesquisas científicas da universidade, em entrevista à BBC Brasil. "Há a questão da 'fuga de cérebros', tanto de países como Brasil quanto dos Estados Unidos, pois temos sofrido com isso nos últimos anos. Não sei qual é a solução, mas acredito que parta de incentivar parcerias transnacionais."
Sobre o laboratório majoritariamente de brasileiros liderado por Muotri, ela diz que vê no neurocientista um "pesquisador clássico, em busca de resolver problemas reais". E acrescenta: "É um time preocupado em influenciar a experiência humana, resolvendo questões urgentes de nossas vidas."
O cientista-astronauta
Para 2024 está programado um passo ainda mais ambicioso para Muotri. Há alguns procedimentos dos experimentos espaciais que, delicados, seriam melhores feitos por mãos humanas. A solução encontrada: Muotri está treinando para ser astronauta.
O convite para ir para o espaço veio no fim de 2022, em uma reunião com dois astronautas da Nasa. "A ideia inicial era treiná-los para realizar o trabalho na ISS. Mas aí perceberam que seria mais fácil e rápido me preparar para ser astronauta do que ensinar a eles técnicas avançadas que usamos", recorda o brasileiro.
Aí propuseram que Muotri embarcasse em um foguete para realizar os experimentos neurocientíficos na ISS, o laboratório espacial que orbita a Terra a 400 quilômetros de altitude. Ele topou e o voo está programado para ocorrer até o fim de 2024.
Será o primeiro cientista brasileiro a embarcar para o espaço. Os dois outros conterrâneos que realizaram o feito foram o hoje senador Marcos Pontes, ex-piloto da Força Aérea, em 2006, e o engenheiro Victor Hespanha, como turista, em 2022.
Está nos planos que Livia Luz, uma das cientistas que enviou os minicérebros para o espaço, seja treinada com ele, como sua substituta na missão caso ocorra alguma eventualidade. "Também procuro conseguir mais uma cadeira nesse foguete, quem sabe para ela ir comigo", comenta Muotri.
Além dessa primeira viagem, devem ser realizadas outras depois, para prosseguir com o trabalho.
"Minha ambição é transformar membros do laboratório em astronautas. Luisa é a segunda da lista, depois de Livia", afirma ele, citando o nome da outra brasileira envolvida com as pesquisas com os organoides cerebrais.
Por ora, a missão espacial, apesar de envolver brasileiros, é uma iniciativa primariamente dos Estados Unidos. "Provavelmente devemos ter, no fim, financiamento multinacional. Há interesse de países como Canadá e Coreia do Sul", diz o neurocientista. Ele tem se esforçado para que o Brasil também entre na jogada.
Em junho, após conversas com representantes do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, chegou a se reunir com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo conta, houve promessa de que o país ingressaria de alguma forma.
"Há poucas semanas, porém, recebi uma ligação na qual me disseram que o orçamento para esse projeto foi reduzido. Então, não sei dizer ao certo se o Brasil entrará, nem como", diz Muotri.
Cotada para ir também na missão, Livia Luz pontua que preferia fazer a viagem "com a bandeira do Brasil no uniforme". Se não for possível, porém, topará a aventura de qualquer forma, "mesmo que representando outro país".