RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Miguel Caleb tinha só 4 meses quando sua mãe percebeu que seu coração era muito grande para sua idade. Alan Martins do Santos tinha 36 anos quando uma veia em sua cabeça se rompeu.

 



Os dois estão em pontas opostas no programa nacional de doação de órgãos. Em 2018, o menino precisou ganhar um novo coração às vésperas de completar 2 anos, após meses de um tratamento sem sucesso. Já o homem, vítima de um aneurisma, foi o doador do primeiro transplante multivisceral no estado do Rio de Janeiro, em 2018.

Em 2023, o tema da doação de órgãos ficou em alta após o apresentador Faustão, 73, passar por um transplante de coração por conta de uma insuficiência cardíaca. O episódio jogou luz e gerou dúvidas sobre a doação e a lista de espera por um órgão.

Para explicar o processo de doação, a Folha de S.Paulo acompanhou a rotina do Hospital Municipalizado Adão Pereira Nunes, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. A unidade é uma das referências do país na captação de órgãos.

 

Hoje, há 41.428 pessoas esperando por um transplante de órgão e 26.880 à espera de um transplante de córnea. Segundo o Ministério da Saúde, houve um  em 2023 da lista de 8,9% e 12,2%, respectivamente, em comparação 2022.

 

A lista de espera faz parte do SNT (Sistema Nacional de Transplante) e é administrada pelas Centrais Estaduais de Transplante. Os estados monitoram a lista e gerenciam as doações e para onde vai cada órgão. Para isso, seguem três critérios básicos: gravidade do paciente que vai receber a doação, compatibilidade do órgão com o receptor e antiguidade, isto é, há quanto tempo ele está à espera do órgão.

 

A doação só é feita com autorização da família de quem morreu por morte encefálica ?em geral, pacientes de trauma ou que sofreram algum acidente vascular. Este último foi o caso de Alan. Na manhã de 8 de março de 2021, ele sentiu uma forte dor de cabeça e ficou parcialmente paralisado.

 

Alan foi levado ao Hospital Adão Pereira Nunes, mas acabou não resistindo e teve a morte encefálica constatada.

 

"A morte encefálica é a morte do cérebro, e é ele que comanda todo o organismo. Com a morte do cérebro, os mecanismos neurofisiológicos fazem com que os outros órgãos continuem funcionando, mas é uma questão de tempo para eles também pararem", explica Roberto Andrade Simões, médico coordenador no no Adão Pereira Nunes, da CIHDOTT (Coordenação Intra-Hospitalar para Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes).

 

A CIHDOTT é a comissão responsável por identificar potenciais doadores e acionar as centrais de transplantes. Ela é formada por médicos, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos especializados para comunicar à família sobre a morte de seu parente e perguntar sobre a possibilidade de doação.

 

"Ao final do protocolo de morte encefálica, fazemos o que chamamos de entrevista familiar: você dá a notícia do óbito e logo em seguida faz a entrevista para saber se a família é favorável à doação", conta Gilberto Malvar, coordenador de enfermagem da CIHDOTT no Adão Pereira Nunes.

 

"Nosso trabalho é explicar a gravidade do paciente com suspeita de morte encefálica, o que é a morte encefálica e quais são as etapas para confirmá-la. Se a família não entender, não podemos nem falar de doação."

 

De janeiro a setembro, o Ministério da Saúde registrou uma queda nas negativas familiares. As pessoas tiveram uma maior aceitação para doar os órgãos de seus parentes. Foram 6.065 entrevistas durante esse período, com uma taxa de recusa de 42,8%. Em comparação ao ano passado, foram 5.575 entrevistas, com a negativa em 45,4% dos casos.

 

"Você não pode fazer uma entrevista apelativa e sem ter cuidado. Tem que ser com muita técnica, com muita empatia e humanização. Temos que dar o máximo de informações para que a família tome a decisão mais consciente possível", diz Malvar.

 

Nos nove primeiros meses deste ano também houve um aumento de 15% de doadores efetivos em comparação ao ano passado. Até setembro, foram feitas 2.776 doações.

 

Um único doador pode ajudar até oito pessoas. No caso de Alan, ele doou para o mesmo receptor o fígado, o pâncreas e o intestino. Além disso, também doou o coração, os rins e as córneas para outros pacientes.

 

A irmã de Alan, Angélica Martins dos Santos, conta que ficou receosa ao ser perguntada sobre a possibilidade da doação. Mas, ao refletir melhor, decidiu seguir com o processo.

 

"Eu falei para o Gilberto [Malvar], ?por que não doar?? O meu irmão era uma boa pessoa, o que era dele também era dos outros. E hoje me conforta muito [ter feito a doação]. É claro que não gostei de meu irmão ter morrido, preferia ter ele aqui. Mas sinto orgulho dele por ter ajudado muita gente."

 

 

 

O CUIDADO COM O DOADOR

 

Após a morte encefálica e o aceite da família, se inicia uma corrida contra o tempo para finalizar todo o processo de doação e entregar o doador para o sepultamento. É previsto em lei que ele seja devolvido à família de forma digna.

 

"A gente dá um tratamento especial ao doador, é o nosso paciente mais grave. Não é aquele negócio de que ?o paciente está morto, deixa ali no canto?. Nada disso. [Depois do aceite da família] começa a nossa guerra de manter o doador nas melhores condições para que ele consiga doar e ser devolvido à sua família", diz Simões.

 

A Folha de S.Paulo acompanhou uma cirurgia de captação de órgãos no início de dezembro e presenciou todos os cuidados comuns a qualquer outro tipo de cirurgia ?a diferença é que, no caso da doação, o paciente está morto.

 

Todos os instrumentos utilizados são esterilizados, assim como a sala de cirurgia. Além dos médicos cirurgiões e dos enfermeiros, o doador também é acompanhado por um anestesista, responsável por manter a circulação do sangue nos órgãos.

 

O doador era Raul (nome fictício), 64, que morreu em decorrência de um traumatismo. Ele doou o fígado e os dois rins. A morte encefálica do doador foi constatada na noite de sábado, e a cirurgia de captação foi feita no domingo de manhã.

 

Cada órgão tem uma equipe especializada para fazer sua captação e um tempo de isquemia (sem fluxo de sangue) diferente. O fígado pode durar de 8 a 12 horas fora do corpo, enquanto o rim já consegue ficar até 24 horas.

 

Essa diferença também muda o processo de doação. Os órgãos com menor tempo de isquemia já tem os receptores definidos no momento em que a captação é feita. Por exemplo, em casos de transplante de coração, que dura só quatro horas fora do corpo, a pessoa que vai recebê-lo já entra no centro cirúrgico no mesmo momento do doador. E isso acontece em hospitais diferentes. Então há uma logística de transporte do órgão para evitar qualquer atraso.

 

O fígado de Raul já tinha o receptor definido. Ele foi levado de helicóptero para Itaperuna, cidade no noroeste do Rio que fica a 285 km de Caxias. De carro, o trajeto levaria cerca de 5 horas, mas, por via aérea, a viagem dura cerca de 1 hora e meia.

 

Já os rins, por ter um tempo de isquemia maior, foram levados ao PET (Programa Estadual de Transplante) do Rio. De lá, a central analisa quem serão as pessoas que receberão os órgãos ?seguindo os critérios de gravidade, compatibilidade e antiguidade da lista? e os encaminha para os hospitais onde será feita a doação.

 

 

 

A OUTRA PONTA

 

Malvar conta que o trabalho na CIHDOTT, que possibilita todo o processo de doação, é árduo e muitas vezes consome os profissionais que estão à frente das conversas com as famílias. Mas é também um trabalho gratificante.

 

"A gente tem que lidar com o ápice da dor do ser humano. Só lidamos com quem está perdendo seu ente querido, é preciso ter uma força mental muito grande. Mas fazemos o trabalho, porque sabemos que do outro lado está alguém que precisa muito do transplante."

 

O menino Miguel, que recebeu o coração às vésperas de completar 2 anos, está hoje com 7. Aos 4 meses, foi diagnosticado com miocardiopatia dilatada, doença que aumenta o tamanho dos ventrículos do coração e atrapalha o bombeamento de sangue para o resto do corpo.

 

A mãe do menino, Paloma Maria Barreto, conta que o filho passou 1 ano e 9 meses praticamente morando no hospital de Laranjeiras, na zona sul do Rio, onde fazia tratamento.

 

Sem sucesso e com o quadro de saúde agravado, Miguel entrou para a lista à espera de um novo coração. O órgão, captado no Hospital Adão Pereira Nunes, veio 17 dias depois. O menino foi operado em 18 de maio de 2018.

 

"Eu nunca pedi que uma criança morresse para que o Miguel pudesse viver. Pedia a Deus para que ele se curasse, que não precisasse de transplante. Mas nossa vontade não é igual a de Deus, né?", diz Paloma.

 

"Se não fosse pelo transplante, meu filho não estaria aqui hoje. E eu agradeço muito a essa família que doou o coração do filho deles. Sem ele, Miguel não estaria aqui hoje", ressalta a mãe.

 

Cinco anos depois da cirurgia, Miguel é um menino de cabelos cacheados e sorriso largo que sonha em jogar futebol.

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