SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O começo de "A Segunda Mãe" parece falar de um fim. Lena vê para seu casamento um futuro tão sombrio quanto o céu carregado com o toró que se anuncia.
Esmerou-se para dar à filha de sete anos o melhor dos aniversários, com um bolo de unicórnio que aprendeu a fazer na internet. Os adultos da festa são babás ou outras donas de casa, como ela. Mulheres com coluna muito ereta e a mesma trança lateral, do tipo que se cumprimentam sem amassar os vestidos. A postos para julgar cada deslize da anfitriã.
O carro de Dedé encosta na praça quando a chuva já arruinou tudo. Perrengues no trabalho são a desculpa dada para não ter chegado a tempo na festinha.
Num primeiro momento, o livro de Karin Hueck nos conduz a um drama passado nas rebarbas da classe alta. O dilema central soa banal, uma história como tantas outras que vemos por aí, e que por isso mesmo precisa ser recontada quantas vezes forem necessárias, para que nunca mais naturalizemos a figura da mulher oprimida por uma dinâmica patriarcal que a confina ao trabalho doméstico.
Está lá o debate sobre papéis de gênero e desigualdades conjugais que a maternidade escancara. Mas já nas primeiras páginas vem o primeiro indício de que o romance de estreia de Hueck vai enveredar por caminhos bem menos óbvios.
Dedé é Andrea, uma funcionária de alta patente do governo. A relação homoafetiva dela com Lena é coalhada de arapucas típicas do mais corriqueiro machismo. E essa quebra de expectativas nem é a maior cambalhota na narrativa.
Aqui, é bom que o leitor saiba, a gente entra no terreno do spoiler ?não siga adiante se quiser evitá-lo.
Dedé e Lena são um casal lésbico como todos os outros num futuro distópico não muito distante. Os homens são minoria nesta sociedade sob jugo feminino. Os poucos que restam, mantidos para fins procriativos, vivem em campos de concentração. Assim não voltam ao poder para perpetuar o ciclo de violência contra as mulheres, ao planeta e também uns aos outros.
A ideia, conta Hueck, lhe veio quando ela, jornalista de formação, editava uma seção de realismo fantástico na revista Superinteressante. Uma das edições previa a publicação de um conto que nunca chegou. Ela decidiu tapar o buraco com material próprio. Mas escrever sobre o quê?
Tinha acabado de ler "O Conto de Aia", a ficção de Margaret Atwood sobre uma teocracia que eleva a repressão contra a população feminina a patamares sem precedentes. Lembrou-se de Holly Maddox, mãe da protagonista, uma feminista que a certa altura solta que homem só serve mesmo para procriar.
Aquela ideia ficou matutando na cabeça de Hueck, que a aproveitou na distopia que primeiro rendeu o conto, depois foi melhor desenvolvida no livro. Uma temporada na Universidade Livre de Berlim, onde estudou política e gênero enquanto ela e o marido cuidavam do filho de 2 anos sem rede de apoio, ajudou a estofar a premissa literária.
Ela conta que nunca se sentiu tão mulher quanto quando virou mãe, mas aquela potência recém-adquirida não a livrou de impasses que acompanham tantas de nós. Enquanto pesquisava temas como políticas públicas para a maternidade, vivia o conflito interno de quem não queria nem viver uma experiência materna chocha, nem parar de trabalhar depois de parir seu primogênito, hoje com 8 anos ?também tem uma bebê de 1 ano.
"A Segunda Mãe" reconhece as atrocidades patrocinadas por uma configuração social machista, que na ponta mais extrema faz disparar o número de feminicídios. A autora, contudo, evita a armadilha de tratar um lado como essencialmente podre, e o outro, virtuoso. Tampouco passa pano para uma solução tão radical quanto encarcerar todos os homens para que o matriarcado puro impere.
"Acredito que não exista exclusividade de emoções. Já vivi o suficiente para conhecer mulheres ruins e homens bonzinhos", diz. "Mas a gente sabe que, na grande estrutura, o patriarcado é a parte mais violenta."
Homens não detêm por natureza o monopólio da agressividade. Em várias passagens, as personagens reproduzem violências, da psicológica à física, mais comuns ao universo masculino.
Hueck diz que aprendeu com o feminismo interseccional, que agrega à teoria feminista variantes como classe e raça, a pensar múltiplas formas de opressão. "Se você elimina a categoria gênero, não quer dizer que todas as mulheres vão ser iguais."
Para ela, é compreensível que as mulheres debatam tanto o feminismo, até porque, quando "a água bate na bunda", é preciso saber se movimentar para não reprisar arranjos sociais que as prejudicam.
Mas Hueck acha que a humanidade não vai muito longe sem repensar os modelos de masculinidade que aprisionam homens a um padrão vicioso e nefasto, que em última instância provoca sofrimento também em quem faz sofrer. "A gente sabe que tem mil formas de ser mulher. O homem ainda está mais preso [a um molde único]."
Ela brinca que vai ser cancelada pelo que tem a dizer na sequência, mas diz mesmo assim: "Talvez seja hora de discutir a masculinidade também com compaixão".
Claro que os recuos ainda existem, como um STF (Supremo Tribunal Federal) que, em vez de incorporar mais mulheres, voltou a ter uma só representante, Carmen Lúcia, após o presidente Lula indicar Flávio Dino para substituir Rosa Weber na corte.
A autora, porém, prefere a via otimista ao especular sobre o amanhã. "A gente nunca está parada. Vejo ações, vejo homens assumindo papéis diferentes. Não sei se na nossa vida vamos ver um mundo sem o patriarcado, mas estamos indo para um lugar melhor."
Prova disso, afirma, é que hoje sua avó entende que assédios antes normalizados são inaceitáveis, "que 'não é não'". Abaixar a cabeça vem deixando de ser opção.
A SEGUNDA MÃE
- Preço Preço R$ 69,90 / R$ 44,90 ebook (176 págs.)
- Autoria Karin Hueck
- Editora Todavia