Depois de dois anos sem usar maquiagem, a enfermeira Nicole Neves decidiu contratar uma maquiadora profissional para a sua festa de aniversário de 30 anos e acabou barrada na entrada do próprio prédio.
Diante do seu rosto agora coberto por corretivo, base, pó, iluminador, contorno, blush, sombra, delineador, rímel e batom, o sistema de reconhecimento facial do edifício decretou: "Não identificado". Foi preciso acionar o porteiro para ter o acesso liberado.
"Eu sei que maquiagem pode afinar o nariz e o rosto, tirar manchas e olheiras, mudar os olhos e criar um bocão. Mas aquilo foi muito bizarro", lembra ela.
"Irreconhecível" foi também como a atriz Pamela Anderson foi classificada no final do ano passado justamente porque deixou a maquiagem de lado e surgiu de cara limpa no tapete vermelho da Semana de Moda de Paris.
"Será que as pessoas ainda lembram como é um rosto [sem maquiagem]?", questionou a atriz após suas fotos sem make viralizarem. "Preferi sair para caminhar e observar a arquitetura de Paris em vez de ficar três horas sentada na cadeira de maquiagem", explicou a musa da série "SOS Malibu", dos anos 1990, agora com manchas e rugas à mostra.
Numa era em que a arte da maquiagem ganhou alcance inédito na esteira dos tutoriais de internet e da profusão de blogueiras e influenciadoras em redes sociais, a indústria da beleza cresce como nunca, e o Brasil já é o quarto maior mercado de cosméticos do planeta.
Além da transformação na aparência, um estudo da Universidade Harvard (EUA) identificou efeitos subjetivos do uso de maquiagem. Mulheres maquiadas se sentem mais confiantes e até mais inteligentes, no que foi chamado de "efeito batom".
Na contramão desse movimento, existem mulheres que têm buscado autoestima e autoconfiança longe de bastões e pincéis, seja para desafiar padrões de beleza, seja porque têm novas prioridades ou ainda para preservar o meio ambiente de químicos e plásticos presentes em boa parte desses produtos.
Retrato de um comportamento que cresce, a hashtag #nomakeup (sem maquiagem, em inglês) tem quase 20 milhões de postagens no Instagram.
Nicole faz parte desse time desde que deixou um trabalho ao qual era obrigada a ir maquiada. "Você se vê mais bonita, as pessoas elogiam, e você acha que tem de estar sempre assim. Vira refém de make", avalia.
Com o tempo, sua pele "começou a pedir arrego". "Dava para fritar um ovo na minha testa de tão oleosa que ficou minha pele", relata. A dermatologista apontou o excesso de maquiagem como uma das causas, e Nicole começou a diminuir a quantidade de produto aplicado no rosto.
"Foi como um desmame. Quando mudei de emprego e tive meu filho, larguei a mão de vez", afirma ela, que diz ter desistido de acordar uma hora mais cedo para fazer a maquiagem. "Minhas prioridades mudaram. Mas, quando você não se maquia, as pessoas comentam: ?Nossa, que cara de cansada!?. E eu respondo: ?Mas eu estou cansada mesmo", ri.
A modelo e influencer Maria Fernanda Coelho, 23, não saía de casa sem pintar as sobrancelhas para esconder uma falha. "Como muitas outras mulheres, eu usava maquiagem por não me aceitar e achava que precisava estar de um determinado jeito para ser bonita e elegante", admite ela.
Depois de um processo que definiu como de "autoamor e descamação de tudo o que a sociedade impõe às mulheres", começou a gostar de sua beleza natural. "Descobri que não precisava usar maquiagem para ser aceita e para as pessoas gostarem de mim, e hoje me sinto muito mais livre", diz ela, para quem também pesou na decisão o fato de maquiagens virem em embalagens plásticas de difícil reciclagem e terem em sua composição químicos que poluem o meio ambiente.
Já para a educadora física Roberta Ladeira, 42, deixar a maquiagem de lado foi uma mudança natural depois que sua vida ficou por um fio quando descobriu um tumor no cérebro e duas doenças raras: panhipopituitarismo e diabetes insipidus.
"Mudei meus valores, e a vida se tornou muito mais importante do que a minha aparência", afirma ela. "Passei por uma aceitação muito grande e hoje valorizo outras coisas. A verdadeira beleza não pode escorrer pelo ralo junto com a maquiagem que se tira do rosto."
Essa desconstrução dos ideais de beleza e da necessidade (ou não) de persegui-los é um debate relativamente novo na longa história das mulheres com a maquiagem.
Desde cedo, a mulher passa por um treinamento pesado do que é bonito ou feio e acha que tem que usar maquiagem, que tem que carregar certas coisas na bolsa? São pressões que, em geral, os homens não têm, e que viram uma bigorna no pescoço das mulheres", avalia a maquiadora e psicanalista Fabiana Gomes.
"Fomos ensinadas que algumas características do nosso corpo ou rosto não eram válidas e deveriam ser corrigidas. Só que, nos últimos dez anos, isso se inverteu, e virou cafona não se aceitar", explica ela.
A ironia, aponta Fabiana, é a tendência "no makeup makeup", que emergiu dessa virada, e que usa muita maquiagem para dar a impressão de que não se está usando nada. "É uma das maquiagens mais difíceis de fazer", alerta.
A estética da beleza natural ganhou atenção quando celebridades surpreenderam o público ao surgirem de cara limpa (ou quase isso) em eventos públicos e programas de televisão. "Ver pessoas que você admira e respeita sem nada de maquiagem causa estranhamento, mas também um quentinho no coração de que isso é possível", diz Fabiana.
A cantora Alicia Keys puxou a fila em 2016 ao exibir suas até então desconhecidas sardas para as câmeras, num momento que ela definiu como de "rebeldia" e "autoconhecimento". "Não sou escrava da maquiagem, mas também não sou escrava de não usar maquiagem", declarou à época.
Mas que as mulheres não se enganem: a estética da beleza natural das celebridades, quando não envolve maquiagem disfarçada, depende de uma pele bem cuidada, o que demanda tempo e dinheiro e dá à tendência contornos de classe, avalia Fabiana. Talvez não seja coincidência que, após suas aparições sem makes ou filtros, tanto Alicia Keys como Pamela Anderson tenham lançado suas próprias marcas de skincare.
Um estudo que examinou a relação entre o surgimento do movimento #nomakeup no Twitter de 2009 a 2016 e as vendas de cosméticos nos Estados Unidos apontou uma correlação entre o movimento e um aumento geral, e não redução, de venda de produtos de beleza.