O Programa Farmácia Popular interage junto à Lei dos Medicamentos Genéricos - em que, o Sistema Único de Saúde (SUS) adota preferencialmente os genéricos -  (crédito: freepik)

Vale ressaltar que essa prática se distingue da automedicação orientada ou responsável, na qual a criança tem problemas de saúde crônicos ou recorrentes

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Uma em cada cinco crianças brasileiras de zero a 12 anos recebe medicamentos dos pais ou responsáveis sem prescrição médica para tratamento de quadros agudos, aponta um estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e publicado na Revista Paulista de Pediatria. Os principais remédios usados são analgésicos, antitérmicos e até mesmo antibióticos. A automedicação infantil cada vez mais se consolida como uma tendência crescente e é adotada como uma prática aceita (não apenas no Brasil, mas no mundo), apesar dos riscos envolvidos.?

A automedicação pediátrica pode levar ao agravamento do quadro clínico inicialmente apresentado, dificultar e atrasar a identificação de doenças que, muitas vezes, podem precisar de intervenção médica e hospitalar imediata, além de causar alterações metabólicas e imunológicas. Há ainda o risco de a automedicação levar a um quadro de intoxicação medicamentosa, que, em casos mais graves, pode levar à morte.



“Um problema muito comum é que os pais costumam usar as prescrições anteriores como uma referência para continuar usando a mesma medicação. Mas será que a febre que a criança apresenta hoje é a mesma do ano passado, da receita anterior? Pode ser que na consulta anterior fosse uma virose e talvez hoje aquela febre possa sinalizar um quadro mais grave, como uma meningite”, alertou o pediatra Tadeu Fernando Fernandes, presidente do Departamento Científico de Pediatria Ambulatorial da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).?“A automedicação tem esse problema. Ela pode mascarar uma doença e nos faz perder tempo em termos de atuar de maneira mais assertiva no combate àquele problema.”

A automedicação é recorrente

O estudo brasileiro analisou informações sobre a automedicação de mais de 7.500 crianças com até 12 anos cujos pais ou responsáveis responderam ao questionário da Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos (PNAUM). O estudo populacional ouviu mais de 41 mil pessoas, em 245 municípios brasileiros.?

Os autores constataram uma prevalência de 22,2% de automedicação das crianças, ou seja, uma em cada cinco delas recebeu pelo menos um medicamento para aliviar quadros agudos nos 15 dias anteriores à entrevista por indicação dos pais, do cuidador, de outras pessoas ou de profissionais de saúde não médicos ou dentistas.?

Vale ressaltar que essa prática se distingue da automedicação orientada ou responsável, na qual a criança tem problemas de saúde crônicos ou recorrentes e os pais já são orientados previamente pelo pediatra e usam doses de medicamentos predefinidas.

“Nós recomendamos que os pais tenham um pediatra de referência para poder orientar quando seu filho tiver dor, febre, resfriado etc. Nós, pediatras, também fazemos a medicina de prevenção primária e de prescrições caso seja necessário. O pediatra é fundamental porque é ele quem conhece melhor a criança”, disse Fernandes.

O estudo também não se aplica à automedicação infantil acidental, quando as crianças, especialmente as mais novas, têm acesso a medicamentos guardados em casa e, por desatenção ou negligência dos pais, fazem a ingestão dos fármacos.

O que leva à automedicação infantil?
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Segundo o estudo, o que mais leva pais e responsáveis à automedicação das crianças sem orientação e prescrição correta de um profissional é a urgência para resolver um sintoma de dor ou desconforto, sendo as principais causas dor, febre, resfriados e rinite. “Hoje vivemos a tirania da urgência. Muitos pais querem uma resolução rápida. Mas para um diagnóstico adequado é preciso esperar a evolução do quadro clínico das crianças”, disse Fernandes.

Os medicamentos mais usados sem prescrição médica, e citados no estudo, foram dipirona, paracetamol, ibuprofeno, ácido ascórbico, ambroxol, trimetoprima/sulfametoxazol, dexclorfeniramina, nimesulida, amoxicilina e ácido acetilsalicílico. Quase todos são vendidos livremente nas farmácias, isentos de prescrição médica, com exceção dos antibióticos, que, apesar de exigirem retenção de receita na venda, também aparecem na lista do uso sem prescrição.

“Sem dúvida, a maioria dos casos de uso abusivo de medicamentos envolve aqueles que são vendidos amplamente, sem a necessidade de prescrição médica. No nosso país, há a tendência de usar os medicamentos sem critério porque temos à disposição um leque de opções, muito superior às de outros países. O fácil acesso às medicações e a dificuldade de acesso ao serviço de saúde são fatores determinantes na decisão de usar um medicamento por conta própria”, afirma o pediatra Linus Pauling Fascina, diretor da Maternidade do Hospital Israelita Albert Einstein.?

Fascina destaca ainda que a automedicação costuma acontecer porque, muitas vezes, a família tem aquela medicação disponível em casa – possivelmente por ter sobrado alguma quantidade desde a última prescrição. “Nos Estados Unidos, a pessoa compra o medicamento que vai usar de acordo com o que foi prescrito. Se o médico indica antibiótico cinco dias, duas vezes ao dia, a pessoa conseguirá comprar dez comprimidos. No Brasil é diferente. A indústria não fraciona esses medicamentos e não é incomum serem vendidas caixas com mais comprimidos do que o necessário. O que acontece? Sobram medicamentos e a pessoa tende a guardá-los para usar em outra necessidade”, explica o pediatra.?

Outra constatação do estudo é que a automedicação acontece mais frequentemente entre famílias de menor renda, com menor escolaridade e sem acesso a planos de saúde, ou seja, famílias que dependem de atendimento médico na rede pública – o que levanta a questão sobre a dificuldade de acesso a profissionais de saúde.?

“Essa é uma realidade vivida, principalmente, nos países em desenvolvimento. Se o acesso à saúde fosse homogêneo para toda a população, o problema ocorreria em menor frequência. As famílias acabam buscando saídas diferentes e mais acessíveis para a solução de condições agudas nas crianças”, disse Fascina.

Quais os riscos?

Um dos problemas da automedicação é não concluir o tratamento de forma correta, pois, como os sintomas diminuem e o quadro melhora, a tendência é que os pais suspendam o uso do medicamento, já que consideram que não há mais necessidade. No caso de uso de antibióticos de forma errada, por exemplo, existe o risco de resistência bacteriana, ou seja, o medicamento deixa de ter o resultado esperado.

Outro problema é fazer uma associação de medicamentos de classes diferentes e chegar em algo mais potente. Há ainda o risco de usar doses inadequadas para aquela criança, superior à que seria indicada para o tratamento e entrar na chamada “faixa tóxica” da medicação. “Antigamente os pediatras costumavam indicar a medicação com base em uma colher de sobremesa, por exemplo. Hoje em dia não se faz mais isso, pois qual o tamanho da colher que a pessoa tem em casa? As pessoas não podem usar suas próprias medidas”, alertou Fascina.

Fernandes, da SBP, concorda e ressalta o risco de efeitos adversos, especialmente em crianças. “Muitos medicamentos vendidos livremente em farmácias e isentos de prescrição se tornaram a praga do nosso dia a dia. Entre eles estão os corticoides orais. Eles têm sido usados como um xaropinho da tosse, e não são. Eles podem ter efeitos colaterais graves quando não são bem indicados”, destacou o pediatra.

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Para reduzir essa prática, segundo os médicos ouvidos pela Agência Einstein, seria preciso adotar uma série de medidas, que vão desde o maior controle da publicidade e da venda dos medicamentos, passando pela criação de embalagens mais adequadas e pelo maior controle dos medicamentos à disposição, até um melhor acesso à atenção primária em saúde, com foco na conscientização dos perigos da automedicação e da importância do uso racional dos medicamentos.

“O abuso de medicamentos não é algo simples. Ele envolve toda uma rede que passa pela família, pelo ambiente, pela cultura, pelo acesso ou não ao sistema de saúde, pela dificuldade ou não de ter esses produtos em casa. Com o sistema de saúde pública cada vez mais sobrecarregado e as urgências sempre lotadas, a família tende a voltar a medicar a criança e perde a oportunidade de um diagnóstico mais precoce”, finaliza Fascina.