Pergunta: você sonha? Sempre, de vez em quando ou nunca? E lembra dos sonhos? Fica curioso, quer interpretar, busca por quem os decifram? Acredita que é um sinal, desejo, aviso? E pesadelo, também tem?  A empresária e jornalista Cristiane Araújo diz que sonha demais e, por isso, até nomeou seus sonhos de “longa-metragem”. Ela explica que é como no cinema: seus sonhos são sempre intensos e, na maioria das vezes, se tiver de apontar uma categoria, seria comédia, com bastante humor e com flashes de situações inusitadas, excêntricas e bizarras, sem qualquer conexão ou interpretação linear. 



“Tenho sonhos engraçados, sem lógica, impossíveis de entender. E lembro de tudo, com detalhes, a cor, a fala da pessoa, raramente esqueço. Inclusive, sonho tanto que, muitas vezes, acordo cansada, ora alegre, ora angustiada, porque é como se fosse extensão da minha vida acordada. Mas logo me recupero.” Ela acrescenta que ao despertar já lembra, imediatamente, do que sonhou ou, ao longo do dia. “Sonho com pessoas que gosto e não vejo há anos e, de repente, encontro essa pessoa.” 

Cristiane conta que, depois de anos de terapia, tem segurança para interpretar seus sonhos. “Além da minha própria análise, posso pesquisar e, se não encontro lógica, levo para o terapeuta, caso eu precise de uma conclusão. Acredito que alguns sonhos têm significados, têm a ver com a busca interior e outros simplesmente são reflexo do dia, da semana, não precisam ter uma explicação.” 

Com noites tão agitadas, Cristiane confessa que os sonhos chegam a atrapalhar seu sono. “A sensação é que sonho meio acordada e, se ele é angustiante, levantar no dia seguinte se apresenta como um cansaço físico mesmo, como se tivesse saído para passear e vivido algo que me custou certa energia.” 

O mesmo sonho  

Cristiane conta que sonha desde criança. Ela somente diminuiu o ritmo quando teve, em certo período, de ser medicada com ansiolíticos. “Foi quando o sono ficou mais profundo e não me lembrava dos sonhos, como se tivesse sido desligada”. Mas, agora, eles estão vivos e intensos novamente. 

A empresária tem uma relação tão forte com os sonhos que um, em especial, a acompanha desde os 8 anos. “É um sonho recorrente, um episódio da vida que só fui entender bem lá na frente. Perdi um irmão dependente químico ao ter um infarto aos 40 anos jogando futebol. Advogado, brilhante, trabalhador, mas que não tinha alegria de viver. Meu pai tinha um dodge dart laranja, do teto preto, e andávamos juntos, eu e mais dois irmãos, éramos os mais próximos (somos 8 filhos) no banco de trás. No sonho, o que morreu, o via magro, amarelado, com olhar triste e, como se sugado pelo lugar onde ficava o cinto de segurança, levantada os bracinhos e a cabeça pedindo socorro. Só eu via, tentava ajudar e não conseguia. Anos se passaram, o sonho me acompanhando, até o momento que ele me pediu ajuda, já na faculdade, por causa das drogas. Procuramos auxílio, mas, mesmo assim, o sonho permanecia e só sumiu quando o dividi com meus pais e outros irmãos. Acredito que era um aviso”. 

Leia: Em livro, neurocientista defende que sonhos ajudam a tomar decisões

E Cristiane completa: “Daí, tive outro sonho, lindo, em que num momento de desespero, estava dentro de uma igreja e Jesus desceu da cruz e me colocou no colo. Lembro com perfeição depois de tantos anos. É como se me acolhesse, para me aquietar, me dar paz”. 

E apesar de sonhar tanto, Cristiane enfatiza que, no mundo real, no corre-corre do dia, é bem acordada, atenta e de olhos abertos. “Sou totalmente realista, mas sou uma sonhadora.” 

Diante da vivência e experiência de Cristiane, o Estado de Minas/Bem Viver foi ouvir especialistas, estudiosos dos sonhos, do cérebro, psicólogos, médico neurologista, para saber mais sobre a importância dos sonhos, como eles afetam as pessoas, se têm significados, o quanto podem interferir na saúde física e mental.

O neurocientista Sidarta Ribeiro, fundador e professor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, biólogo, capoeirista e escritor, em várias entrevistas e nos livros que lançou, como o best-seller 'O Oráculo da noite: a história e a ciência do sonho' (2019), ao analisar os sonhos já declarou que “todos sonham, ainda que não se lembrem, e que esse fenômeno natural pode funcionar como um verdadeiro oráculo probabilístico”. E Sidarta recomenda que todos adotem o que chama de “sonhário”, um caderno de anotações que deve deixar perto da cama e anotar seus sonhos assim que se levantar para não esquecer, conversar com as pessoas e assim ir se descobrindo. 

Ao pensar sobre o sonho é quase impossível não ter o neurocientista Sidarta Ribeiro como uma referência no país. Biofísico, doutor em comportamento animal e pós-doutor em neurofisiologia, além de professor titular de neurociência e fundador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em seu mais recente livro, de 2022, o “Sonho manifesto: 10 exercícios urgentes de otimismo apocalíptico”, Editora Companhia das Letras, destaca novamente o valor do sonhos. Tema que também abordou em seu best-seller “O oráculo da noite”, quando o neurocientista compôs uma narrativa instigante sobre a ciência e a história do sonho. Já em “Sonho manifesto”, o autor compartilha conhecimentos de cientistas, pajés, xamãs, mestras e mestres de saber popular, artistas e inventores que nos lembram da importância de sonhar coletivamente com o futuro do planeta. 

E a psicóloga clínica Renata Mafra destaca a contribuição de Sidarta nessa abordagem. “Sidarta é um neurocientista interessante que atualiza e endereça a Freud, que também era um neurologista e, digamos assim, um neurocientista da história recente, ao falar que, além dos sonhos terem todos os significados, desde a tradição, todos os seus significados seja na psicanálise e na neurobiologia, nas tradições filosóficas e teológicas, na própria Bíblica, ele escreve em seu livro os sonhos manifestos. Ou seja, tem os sonhos que se sonha dormindo, mas tem os sonhos que se sonha acordado, que são os desejos. E, entre os sonhos manifesto, ele faz um livro lindo em que declara os sonhos, pensando na sustentabilidade de um planeta em declínio ambiental, social, em esgotamento econômico e financeiro. Então, sonhos manifestos também são uma fonte poderosa de transformação da realidade quando, a partir do seu manifesto, se pode buscar pessoas, que, ao sonharem juntas, vão poder conduzir mudanças necessárias na realidade para que se possa alcançá-las”. 

Sonho, ferramenta para o despertar

 

Psicólogo Gilson de Paulo Moreira Iannini, professor do Departamento de Psicologia da UFMG, destaca que 'sonhos são reais e no pensamento de vigília, somos constrangidos pelo bom senso, pelos costumes, pela lógica. Nos sonhos estamos livres até mesmo do princípio da não contradição'

Jair Amaral/EM/D.A Press

Será que os sonhos são reais? Há mesmo mensagens e significados por trás deles? Gilson de Paulo Moreira Iannini, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde leciona teoria psicanalítica, doutor em filosofia pela Universidade De São Paulo (USP) e mestre em psicanálise pela Universidade de Paris, explica que “os sonhos são atividades essenciais da vida psíquica e corporal, mental e cerebral, se é que podemos fazer essas separações tão nitidamente assim. O sonho é uma atividade altamente complexa e envolve várias funções importantíssimas: ajuda a fixar memórias, tenta dar sentido às experiências incompreensíveis, permite simular resoluções para os dilemas e assim por diante”.

Mas tudo isso está ligado também à necessidade de aliviar tensões psíquicas, destaca Gilson Iannini. “Nesse sentido sim, como dizia Sigmund Freud (1856-1936), o sonho é uma forma meio distorcida de realizar desejos, que às vezes são meio obscuros para nós mesmos. Além disso, os sonhos podem funcionar como tentativa de dar forma a algo insuportável: quando temos uma dor psíquica, como um trauma, um luto, uma perda, é como se a gente tentasse elaborar, processar, triturar esse material difícil dar conta, difícil de engolir, se quisermos usar esse tipo de metáfora.” 

“Sim, claro! Sonhos são muito reais. Evolutivamente, os sonhos são essenciais aos seres humanos, mas também para os mamíferos em geral. O neurocientista Sidarta Ribeiro propõe que os sonhos funcionam como simulações de resolução de problemas em cenários seguros (o sono é um cenário relativamente seguro). É como se durante o sonho a gente conseguisse imaginar cenários futuros com base em experiências passadas, com a vantagem da maior liberdade imaginativa própria ao sonho. No pensamento de vigília, somos constrangidos pelo bom senso, pelos costumes, pela lógica. Nos sonhos estamos livres até mesmo do princípio da não contradição. Num sonho posso combinar coisas que não se combinam em geral, como um guarda-chuva e uma máquina de escrever”.

Além disso, Gilson de Paulo Moreira Iannini diz que o sonho é real porque, no momento em que se sonha, a energia psíquica/cerebral está empenhada naquela atividade. “Enquanto dormimos, a gente inibe a recepção de estímulos externos. O sonho tenta incorporar em sua narrativa tudo que vem do exterior e que arriscaria a manutenção do sono. Por exemplo, o alarme toca e a gente sonha com um sino de igreja ou com uma buzina de carro, como se o cérebro tentasse incluir dentro do sonho aquele barulho que vem de fora. Vira uma espécie de competição. Se o alarme insistir, provavelmente o sujeito acorda.”

Mas o sonho pode ser eficiente em dominar o estímulo externo, fazendo-o passar como um elemento do sonho, e o sujeito volta a dormir”. Ele explica que coisa parecida pode ocorrer com estímulos fisiológicos: “Por exemplo, a vontade pré-consciente de urinar pode induzir alguém a sonhar, por exemplo, com uma cachoeira ou com chuva caindo. A lógica é mais ou menos a mesma do exemplo acima. A gente tenta domar o estímulo para preservar o sono”.

Desejos, fantasias e traumas

Gilson Iannini enfatiza que, para a psicanálise, nos sonhos as pessoas se deparam com desejos, fantasias e traumas que muitas vezes não conseguem abordar com os limitados recursos do pensamento consciente. “Então, muitas vezes, a gente acorda para continuar a dormir”, quer dizer, às vezes nosso apego apaixonado à “realidade” concreta, à realidade material é o verdadeiro sono... Como se a gente vivesse uma ilusão sem nos darmos conta que vivemos uma vida falsa ou uma ilusória. A pessoa vive um casamento ruim, um emprego ruim, uma vida ruim e por aí vai, como se estivesse “dormindo”. Não é por acaso que às vezes dizemos: “Acorda, fulano! Você não está enxergando que... ”? Em alguns sonhos somos acordados para uma parte da realidade da qual não queremos nada saber. E acordamos para voltar a dormir. A psicanalista argentina Carolina Koretsky escreveu um belíssimo livro sobre isso (O desertar, ed. Autêntica).” 

Leia: É possível decifrar as mensagens dos sonhos?

Para Gilosn Iannini, às vezes, a vida desperta é um escape e, às vezes, a pessoa precisa escutar e ler seus sonhos para acordar para a vida. Daí a curiosidade despertada por decifrar os significados dos sonhos. “Até certo ponto sim. Desde a mais remota antiguidade, há vários sistemas simbólicos que buscam dar sentido aos sonhos. Várias religiões, várias mitologias, de diferentes povos, tentaram decifrar sonhos. O método mais conhecido entre nós é o método freudiano, que ele desenvolveu em 1900, num famoso livro chamado “A interpretação do sonho”. O sonho é interpretado um a um. Freud pensa que um sonho é uma espécie de escrita pictográfica, uma escrita em imagens, que a gente precisa decifrar a partir dos próprios elementos que o sujeito fornece com suas associações. Podemos interpretar sonhos sim, mas desde que a gente entenda que o próprio sonho é uma tentativa de interpretar nossos desejos e angústias. Mas sempre fica um restinho.” 

De forma geral, Gilson Iannini afirma que é como se a pessoa fizesse uma radiografia ou uma tomografia dos desejos, medos e angústias: “Está tudo lá, mas a gente não consegue ler, a não ser por meio de um método que torne legível aquela superfície aparentemente sem sentido das imagens dos sonhos. Esse método é praticado cotidianamente pelos psicanalistas, com resultados bastante interessantes, apesar das bobagens que se diz por aí. Não adianta muito procurar o “sentido oculto” do sonho. Às vezes é melhor mostrar o sentido oculto da realidade, que o sonho vez por outra desnuda”.

Sonhos coletivos

E os sonhos coletivos? Gilson Iannini destaca que o sonho é sempre singular: “Mas, ao mesmo tempo, não somos mônadas fechadas, não somos indivíduos isolados do tecido social. Então nosso “psiquismo” é altamente permeável aos outros. Em momentos mais agudos da história, como guerras, pandemias, crises humanitárias, a gente tende a ter sonhos que acabam se parecendo mais. Temos vários estudos nesse sentido. O mais conhecido foi o livro Sonhos no Terceiro Reich, da jornalista alemã Charlotte Beradt (ed. Três estrelas). Diante de uma novidade, da pandemia por exemplo, quando a gente não tinha repertório simbólico ou imaginário para dar conta daquele perigo que nos pegou de surpresa, começamos a sonhar mais e a compartilhar mais sonhos. Como se a gente tentasse processar um arquivo novo sem ter o software adequado. Nesses casos, os sonhos são importantes porque eles tentam inventar esse software, digamos assim. Eu, Christian Dunker e colegas, coordenamos uma grande pesquisa com sonhos na pandemia, cujos resultados saíram no livro “Sonhos confinados” (ed. Autêntica).”

Pesquida da UFMG

Numa pesquisa que Gilson Iannini coordenou na UFMG, foi detectado um sonho típico da pandemia, improvável antes dela. “Chamamos de ‘sonhos desmascarados’: são sonhos que muitas pessoas tiveram, com variantes individuais óbvias, mas cuja gramática era bastante comum: em geral, a pessoa está no meio de um monte de gente e de repente percebe que está sem máscara (de proteção facial). Nesse momento, apesar de ninguém parecer se importar, a pessoa sente uma espécie de desespero, de terror. Esse sonho se assemelha a um sonho típico que Freud descreveu em 1900: o sonho de estar nu. O sujeito se percebe nu em lugar público, ninguém exceto a própria pessoa parece se preocupar, e o sonhante é tomado por uma sensação de vergonha. A diferença do sonho de estar nu e do sonho de estar sem máscara é a diferença entre a vergonha e o desespero, o que diz muito do momento histórico. Essa parte ainda não está publicada, mas vai sair em breve.” 

Gilson lembra que o mundo vive a era da inteligência artificial (IA), que para ele nem é tão inteligente assim, e muito menos é artificial: “Mas mesmo assim, podemos fazer uma pergunta interessante. A IA é capaz de conversar (podemos conversar com bots de instituições bancárias, de operadoras de telefonia e assim por diante. Podemos simular conversas com o ChatGPT, por exemplo. Máquinas aprendem, por meio de ferramentas de processamento de linguagem natural. A gente ensina as máquinas a imitar o que fazemos. Será que podemos ensinar uma máquina a sonhar? Eu e João Pedro Campos, da IA, estamos fazendo alguns experimentos muito interessantes. As máquinas realmente aprendem se não a sonhar, pelo menos a simular relatos de sonhos bastante verossímeis. O que isso nos ensina? Cenas do próximo capítulo... O livro está quase pronto... 

Como interpretar os sonhos? 

De acordo com a teoria de Calvin S. Hall, psicólogo norte-americano que fez estudos nas áreas de pesquisa e análise de sonhos, avisou que interpretar sonhos requer conhecimento sobre:

  1. As ações do sonhador dentro do sonho
  2. Os objetos e figuras no sonho
  3. As interações entre o sonhador e os personagens no sonho
  4.  Configuração, transições e resultados do sonho  

Elementos do processo inconsciente*

Sigmund Freud foi um neurologista e psiquiatra austríaco, o criador da psicanálise e a personalidade mais influente da história no campo da psicologia, descreveu quatro elementos do processo inconsciente aos quais ele se referiu como “trabalho dos sonhos”: 

  1. Condensação: Muitas ideias e conceitos diferentes são representados no espaço de um único sonho. A informação é condensada em um único pensamento ou imagem. 
  2. Deslocamento: Esse elemento do trabalho dos sonhos disfarça o significado emocional do conteúdo latente, confundindo as partes importantes e insignificantes do sonho. 
  3. Simbolização: Esta operação também censura as ideias reprimidas contidas no sonho, incluindo objetos que simbolizam o conteúdo latente do sonho. 
  4. Revisão secundária: Durante este estágio final do processo de sonhar, Freud sugeriu que os elementos bizarros do sonho fossem reorganizados para tornar o sonho compreensível, gerando assim o conteúdo manifesto do sonho.

* Fonte: www.vittude.com

Sonhar não custa nada. Será?

 

(Rogério Gomes Beato, professor do Departamento de Clínica Médica da Escola de Medicina da UFMG, neurologista, diz que 'existem evidências científicas de que quando uma informação aprendida recentemente é incorporada ao conteúdo de sonhos, mesmo que de maneira abstrata, ela será mais bem aprendida'

Jair Amaral/EM/D.A Press

“Uma definição precisa para o sonho é difícil. No entanto, ele pode ser definido como uma atividade cognitiva caracterizada pela presença de imagens, emoções, memórias, associada a atividade específica do sistema nervoso central durante o sono. Mais recentemente, alguns pesquisadores têm preferido usar o termo “estado mental do sono” para se referir aos sonhos e o definem como todas as percepções, pensamentos e emoções que ocorrem durante o sono.” A explicação é de Rogério Gomes Beato, professor do Departamento de Clínica Médica da Escola de Medicina - UFMG, neurologista, médico do sono com formação em neurologia cognitiva.

Ele conta que nos anos 1950, período da descoberta do sono REM (fase do sono em caracterizada por Movimentos Oculares Rápidos) e de sua associação com a atividade onírica, passou-se a acreditar que os sonhos ocorrem devido a atividade de grupos de neurônios do tronco cerebral, de maneira aleatória, que são ativados durante este estágio do sono. “No entanto, nas últimas décadas, os estudos mostraram que os sonhos estão presentes em todas as fases do sono, e não apenas durante o sono REM como pensado anteriormente. Assim, eles ocorrem também durante as fases 1, 2 e 3 do sono não REM (denominadas atualmente N1, N2 e N3).”

Rogério Gomes Beato explica que a função dos sonhos e o que eles significam ainda são motivo de controvérsia e que ao longo do tempo várias hipóteses foram levantadas para tentar explicá-los. “A primeira hipótese, presente desde a antiguidade, é que os sonhos trazem mensagens dos deuses ou de Deus. Nesta categoria estão os sonhos premonitórios, associados a previsão de acontecimentos, e os sonhos transcendentes, com significado espiritual, ambos de difícil comprovação científica. No fim do século 19, Freud valorizou a importância dos sonhos como manifestação do inconsciente, auxiliando no diagnóstico e no processo terapêutico da psicanálise. Segundo as hipóteses mais atuais, os sonhos estão associados aos processos de consolidação da memória dos eventos ocorridos e presenciados durante a vigília, isto é, durante o período em que permanecemos acordados. O ato de sonhar refletiria, assim, a atividade cerebral associada à reativação de memórias e emoções de experiências prévias, tornando-as conscientes.”

Experiências intensas

No entanto, destaca Rogério Beato, os sonhos não são a reprodução exata das experiências ocorridas durante o período acordado, mas são compostos de fragmentos de material ou situações vivenciadas recentemente, associado a algum outro tipo de conteúdo. “Existem evidências científicas de que quando uma informação aprendida recentemente é incorporada ao conteúdo de sonhos, mesmo que de maneira abstrata, ela será mais bem aprendida. Os sonhos que ocorrem durante o sono REM são associados, em geral, a experiências emocionais intensas e acredita-se que ele favoreça a reativação e a transformação das memórias com conteúdo emocional. Outra hipótese mais atual, mas menos complexa, é de que os sonhos significariam apenas a percepção consciente do fluxo de imagens, pensamentos, e sentimentos evocados no cérebro que ocorrem durante o sono.” 

Para o neurologista, avaliar o conteúdo de vários sonhos pode trazer informações significativas sobre o estado psicológico de um paciente, mais do que avaliar apenas o conteúdo de um determinado sonho: “O conteúdo dos sonhos que se repete também pode trazer informações sobre o estado mental do indivíduo”.

O médico lembra que vários fatores influenciam se um sonho será lembrado ou não: “Podemos citar o momento em que o indivíduo acordou (se no início, no meio ou no fim do período de sono). Os sonhos que ocorrem mais perto da manhã podem ser mais bem lembrados em comparação com os ocorridos no início da noite. Outra variável é o estágio do sono antes do despertar, isto é, se o indivíduo estava no sono REM ou no sono não REM. Os sonhos ocorridos no sono REM podem ser mais bem lembrados. E as características de personalidade também podem influenciar a lembrança ou não dos sonhos”. 

Vigília e pesadelos

Os sonhos ocorrem em todas as fases do sono não REM e do sono REM, e cada uma delas apresenta características neurofisiológicas distintas: “Os sonhos que ocorrem nas fases do sono não REM estão envolvidos na consolidação de memória e durante sua ocorrência, áreas associadas à memória, como os hipocampos, apresentam alguma ativação. Existem evidências de que os elementos neurofisiológicos das fases N2 e N3 do sono não REM estão envolvidos com a consolidação da memória. Os sonhos que ocorrem durante o sono REM, em geral associados a vivências emocionais, estão associados a um padrão de funcionamento cerebral que se assemelha ao padrão do ritmo cerebral da vigília”, esclarece o neurologista. 

Rogério Beato destaca que o relato de pensamentos recorrentes e restritos a um tema ou a um número reduzido de imagens nos sonhos caracterizam a ruminação, presente em indivíduos com insônia ou outro transtorno mental. Já os pesadelos, de acordo com o neurologista, “se ocorrem repetidamente, influenciam de maneira negativa a qualidade do sono e devem ser valorizados. É o denominado Transtorno de Pesadelo, considerado uma parassonia do sono REM. O tratamento visando reduzir sua frequência costuma ser necessário”. 

O neurologista lembra também que, em uma outra situação, os sonhos e pesadelos repetidos podem fazer parte do Transtorno de Estresse Pós-Traumático, que é um transtorno de ansiedade que se desenvolve após evento ou situação de natureza traumática para o indivíduo: “Nessa situação, recomenda-se a avaliação de um psiquiatra para que se estabeleça o tratamento adequado”.

Sonhar em excesso

Rogério Beato menciona que alguns indivíduos relatam que sonham excessivamente: “É o denominado hiperonirismo, situação em que o indivíduo tem grande número de sonhos, podendo ou não se lembrar do que sonhou. A queixa de fadiga associada é frequente. Tal situação pode ocorrer em várias doenças do sono, como a apneia obstrutiva do sono e excesso de movimentos periódicos dos membros”. 

O neurologista conta ainda que o conhecimento atual indica que há diferença no conteúdo dos sonhos nas crianças e no início da adolescência. E poucas mudanças do fim da adolescência até a idade adulta: “O conteúdo dos sonhos permanece estável em termos de personagens, interações sociais, e na maior parte dos elementos depois da idade de 18 anos”.

Rogério Beato acrescenta que existem evidências que sugerem que as características dos sonhos sugerem o funcionamento cognitivo ao longo da vida: “Alguns pesquisadores consideram que os sonhos são a expressão da maturação cerebral, e o desenvolvimento de padrões de sono específicos está ligado ao funcionamento cognitivo e à plasticidade cerebral. Acredita-se que as habilidades visuais e espaciais e as funções executivas representem um papel fundamental para a experiência dos sonhos nos adultos e nas crianças. A memória também pode impactar o conteúdo dos sonhos ao longo da vida, considerando que a lembrança dos sonhos depende da capacidade do indivíduo de organizar suas memórias. Um exemplo disso é a tendência dos idosos se lembrarem do conteúdo dos sonhos relacionados à memória autobiográfica mais facilmente que os indivíduos mais jovens”. 

Sonhos peculiares*

  1. Sonhos criativos: descritos por artistas e cientistas, estão relacionados ao sono REM e trazem informações, algum insight, ou mesmo a solução de problemas.
  2. Sonhos lúcidos: o indivíduo é consciente de que está sonhando, é capaz de acessar sua memória, percebe que as características do ambiente dos sonhos não são reais, e pode chegar a exercer o controle voluntário sobre seu conteúdo.
  3. Sonho descrito: são os sonhos épicos, que têm como características serem vívidos, repetitivos ao longo da noite, levando a sensação de fadiga e de sono não reparador. Seu conteúdo se refere a tarefas cotidianas ou a situações que produzem emoções fortes, podendo se tornar inesquecíveis. 

*Fonte: Rogério Gomes Beato, professor do Departamento de Clínica Médica da Escola de Medicina - UFMG, neurologista

Trés perguntas para...

Renata Mafra, psicóloga clínica

A psicóloga Renata Mafra destaca que 'para a psicanálise, os sonhos têm o poder de revelar uma parte do nosso mundo interno, de quem nós somos, dos nossos desejos e medos. Os sonhos são atividade mental, pensamento, durante o sono'

Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press

1 - Os sonhos auxiliam na formação da memória? Como e por que?

Desde a antiguidade, há evidências de que os humanos não só se interessam pelos sonhos, como os levam a sério. Foi objeto de interesse e de registro desde os primórdios da civilização e, no século 20, é objeto da psicanálise de Freud e Jung. Atualmente, além da psicologia e da psicanálise, a neurobiologia tem se debruçado sobre os sonhos. Seja do ponto de vista histórico-cultural, da subjetividade humana, seja quanto aos seus aspectos neurobiológicos, os sonhos são importantes. A relação entre sonhos e memórias é objeto de estudo e investigação do campo da neurobiologia. Estudos revelam que existe uma relação direta entre o sono e a consolidação de memórias. É possível afirmar que a privação do sono leva a prejuízos na aprendizagem e que a preservação do sono facilita a aquisição de informações. Em exames que medem a atividade eletroencefalográfica, possibilitaram a ampliação da compreensão dos mecanismos cerebrais do sonhar, bem como os achados neuroanatomofisiológicos. Para os povos antigos, os sonhos tinham um poder divinatório e, por isso, serviam para guiar suas vidas e as tomadas de decisões. Para S. Freud, que em 1900 publicou o livro “A Interpretação dos sonhos”, os sonhos tiveram o poder de contribuir para a compreensão do funcionamento mental, do psiquismo humano, para a descoberta do inconsciente e para o entendimento e o tratamento das neuroses. Para a psicanálise, os sonhos têm o poder de revelar uma parte do nosso mundo interno, de quem nós somos, dos nossos desejos e medos. Os sonhos são atividade mental, pensamento, durante o sono. A teoria freudiana do sonho indica que os sonhos são formados por restos diurnos, ou seja, fragmentos de memórias vividas durante o dia, combinados a desejos reprimidos, recalcados e, por isso, inconscientes. As novas descobertas da neurociência confirmam a teoria freudiana. Sabe-se, desde a psicanálise, que o mundo interno não é isolado do mundo externo. O dentro e o fora de nós dialogam continuamente. Por isso, o enredo dos sonhos reflete não só a estrutura de personalidade, como o contexto que se vive, podendo expressar desejos, medos, fobias. Agradáveis ou desagradáveis, os sonhos são caracterizados por uma mistura de emoções, às vezes confusas, às vezes nítidas e claras, podendo ainda antecipar acontecimentos futuros, a despeito de uma intensa ansiedade e expectativa em que o sonhador se encontra.

2 - Sonhos e pesadelos. Qual a diferença, significado, o que representa e como lidar?

Para a psicanálise, os sonhos são uma das formas de manifestação do inconsciente. É formado por restos diurnos, ou seja, situações vividas durante o período de vigília associados a desejos inconscientes, reprimidos/recalcados pela consciência. Para Freud o pesadelo, ou sonho de angústia, é um tipo de “sonho interrompido”, “um sonho que não se deixa sonhar”. O despertar durante um pesadelo deixa “a mente livre de prosseguir em sua função de informar a respeito dos desejos inconscientes”. A intensidade das emoções, a dificuldade de lidar com situações novas, a sensação de desamparo vivido por muitos, nos mobiliza internamente. Essa foi uma temática muito estudada por Freud, que viveu a gripe espanhola e a 1ª Guerra Mundial, sonhos traumáticos e neuroses de guerra.

3 - O sonho é uma ferramenta para solucionar problemas, melhorar características, ter autoconhecimento? Como?

Situações de violência, casos de vida e morte, acidentes graves, violência sexual, ou seja, situações emocionais intensas reverberam nos sonhos. Além disso, os sonhos e os pesadelos podem ser uma forma de tentar lidar com situações que seriam potencialmente danosas na vida real, porém experimentadas sem risco no sonho, contribuindo para a resolução de algum conflito interno. Portanto, apesar de desconfortável, um pesadelo não é necessariamente ruim. Lembrando que no sonho são permitidas situações que na vida real não são. Sonhos são sim uma forma de autoconhecimento, eles dizem da nossa verdade, da nossa história, do mais íntimo em termos de medo, desejo e expectativa, nele somos produtor, roteirista, ator, enfim, exerce uma função completa e é bacana porque é uma construção por meio de imagens de uma série retratos que temos de si, do outro, da vida, cheio de significado, função, finalidade. Potente para um trabalho analítico e psicoterápico. Quantas experiências a gente pode digerir, refletir, transformar e dedicar nos sonhos. É importante destacar que na vida de acordar e olhar para o celular, a gente não presta atenção nos sonhos. Sidarta disse (Sidarta Ribeiro, neurocientista, biólogo, professor titular e vice-diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte), recomenda, assim como falou Freud, acordar e anotar o sonho para que cada um possa entrar em contato com o que o sonho está dizendo sobre nós, nossa profundidade e experiência. Além dos sonhos terem todos os significados, seja na psicanálise, na neurobiologia, nas tradições filosóficas e teológicas ou na própria vida, Sidarta, um neurocientista, escreve um livro recente destacando os sonhos que se sonha acordado, que são os desejos. E ao falar dos sonhos manifestos, ele declara o sonho da sustentabilidade do planeta. Então, sonhos manifestos são uma fonte poderosa de transformação da realidade para buscar pessoas para, ao sonhar juntas, conduzir as transformações necessárias na realidade para que se possa alcançá-las. 

Alguns dos sonhos mais comuns* 

Um morador de Tóquio, no Japão, sem nenhuma ligação, tem o mesmo sonho que uma mulher na Cidade do México, que também é a mesma lembrança de um jovem na Cracóvia, na Polônia. Sim, há relatos de pessoas de lugares distantes e culturas diferentes que descrevem sonhos parecidos. Conheça alguns dos sonhos mais comuns, e se tem algum na lista...

  • Dentes caindo
  • Ser perseguido;
  • Ficar sem roupa em público;
  • Não estar preparado para um exame teórico ou prático;
  • Voar;
  • Veículo sem controle;
  • Encontrar uma porta secreta;
  • Estar procurando por algo;
  • Ser perseguido por fantasmas;
  • Ex-namorado (a) ou ex-marido (ex-mulher);
  • Ficar invisível;
  • Ser devorado por vermes;
  • Perder o sapato;
  • Não ter ninguém no local de trabalho;
  • Túnel sem saída;
  • Ser cercado por cobras;
  • Ser sequestrado por alienígenas;
  • Encontrar um velho amigo;
  • Se afogar e afundar na água;
  • Sonhar com aranha;
  • Ficar preso no elevador;
  • Engravidar;
  • Se casar;
  • Ser perseguido por zumbis;
  • Ficar preso na lama;
  • Encontrar parentes mortos;
  • Trair ou estar sendo traído;
  • Pegar um trem;
  • Um ente querido falecer;
  • Não conseguir encontrar o caminho de casa;
  • Ganhar na loteria;
  • Não ser capaz de se mover;
  • Estar com uma doença grave;
  • Acidente aéreo, especialmente com o avião caindo;
  • Vestir a roupa errada;
  • Estar dentro de uma casa abandonada ou passando por ela;
  • Cair ou ver alguém caindo.

*Fonte: www.vittude.com

Por que sonhamos?* 

  1. Preparar o cérebro para situações de risco
  2. Fortalecer a memória
  3. Esquecer pontos irrelevantes
  4. Manter o cérebro ativo
  5. Manter o cérebro ativo
  6. Manter a saúde dos neurotransmissores em dia

*Fonte: Vida Saudável Einstein

Os animais também sonham?* 

 

Acha que já viu seu gatinho sonhando? Ela está quieto e, de repente, dá um salto, se mexe... Será que é uma reação ao sonho?

Gundula Vogel/Pixabay

Se tem um cão ou gato em casa, é provável que já tenha observado que, às vezes, durante o sono, seu pet tem pequenas tremedeiras ou espasmos — ou até parece sonhar. Também é comum que emitam sons enquanto dormem, como se estivessem reagindo a estímulos. A ciência, em geral, acredita que, sim: animais não-humanos sonham. No entanto, ainda não há um consenso sobre isso, e não se sabe qual seria o conteúdo desses sonhos. 

*Fonte: Vida Saudável EinsteinFonte: www.vittude.com

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